Wannah - Parte II

Ei, cara-de-pedra! Acho que chegou sua vez.

Índio encarou Pedro Santos e recebeu um sorriso sarcástico de volta.

Chegou a sua hora, cara-de-pedra. Acabaram-se as negociações. Acho que vamos ter que invadir.

Índio deu de ombros como se o que fosse fazer e o que resultaria daquilo não importasse para ele.

Arrume sua equipe e acabe com eles, disse Pedro Santos.

Os brancos nunca pedem nada, apenas mandam. Gostam de dar ordens mas nunca de as receber. Um wannahmarisi nunca recebe ordens de alguém. Quando um deseja que se faça algo em comum, ele o pede com delicadeza, com educação. Geralmente a oferta é aceita também por educação mas eles são livres para decidir se farão ou como será feito.

Trabalho sozinho, disse Índio.

Pedro Santos riu debochadamente dele.

O herói solitário, hein? Isso acabou faz tempos, cara-de-pedra. Agora trabalhamos em conjunto.

Índio não mudou sua expressão facial. Era porisso que Pedro Santos o chamava de cara-de-pedra. Ele não conseguia ver nele o que se passava em seu interior e ele, Índio, não queria mostrar a ninguém nenhum de seus sentimentos. Os brancos nunca os entenderiam.

Você quer resultados, não?

Pedro Santos coçou a barba curta, de um dia, ainda por fazer.

Está bem mas a responsabilidade é sua. Já tenho um discurso preparado para a imprensa e minha chefia se você falhar. Preciso tirar o meu da reta.

Índio aquiesceu.

Mas, sem câmeras. Tire a imprensa daqui. Você sabe que com elas eu serei o herói e sem elas você pode dar a versão que quiser. Não preciso de público, disse Índio.

Pedro Santos fez que sim. Chamou o sargento e lhe deu ordens para retirar qualquer repórter intrometido, fechar o espaço para qualquer helicóptero e afastar os curiosos.

Depois do alvoroço da retirada dos repórteres, Índio deu-lhe as costas para iniciar seu serviço.

Você vai morrer, cara-de-pedra.

Todo mundo morre um dia, disse Índio sem se voltar.

Branco idiota! Sempre querendo se mostrar superior e dono de todas as verdades. Enquanto caminhava para os fundos do sobrado, Índio viu uma mulher morena, parada, olhando para ele. Ela não parecia estar pisando no chão e sim flutuando. Era ela! Também tinha vindo caçar. A noite não terminaria para aqueles que estavam dentro do sobrado.

Rodeou os jardins da casa procurando um bom local para subir. Os assaltantes tinham fechado todas as janelas para evitar a entrada da polícia mas a casa não era muito defensável. Tinha muitas janelas e portas, alem de balcões sob elas e os assaltantes eram poucos. Talvez dois ou três. Seria necessário um batalhão para impedir que alguém entrasse na casa.

Eles tinham entrado para roubar e o alarme soara silenciosamente. A empresa de segurança avisou a polícia e eles ficaram retidos dentro da casa. O problema é que mantinham uma refém. Tentaram todas as negociações possíveis e todas elas falharam. Um deles não queria ser preso de forma alguma. Devia ter tido seus traumas na cadeia e não queria voltar para lá.

Índio escolheu um local que lhe daria vantagens por ser fácil de subir e ao mesmo tempo com pouca luminosidade. Tirou a camisa e os sapatos. Sentia-se mais cômodo sem eles. Antes de começar a subir, olhou em volta e viu uma névoa começando a se espalhar atrás de uma árvore do jardim. Riu por dentro.

Colando-se o mais que podia nas paredes, foi buscando pontos aonde pudesse apoiar seus pés e mãos. Quando se sentia firme, buscava outro ponto de apoio para uma das mãos e se elevava um pouco. Era quase como caminhar, só que na vertical.

Chegou até um dos balcões, abaixou-se o máximo que pode e tentou escutar sons que pudessem indicar a presença de algum deles. Tudo parecia tranqüilo. Tirou um pequeno aparelho do bolso da calça e enfiou-o na fechadura. Sentiu ela se abrir. Empurrou lentamente a porta, buscando, na escuridão, algum perigo. Rastejando, entrou no quarto. Foi até a porta e abriu-a, exatamente como fizera com a do balcão.

No corredor, foi colando-se às paredes e auscultando pela madeira da porta. Primeiro tinha que achar a refém. Se conseguisse deixa-la a salvo, o resto seria fácil. Não que se importasse com ela. O problema era que a imprensa e Pedro Santos fariam picadinho dele se ela morresse ou se ferisse gravemente. Ela era só mais uma branca no meio de um oceano de brancos.

Por fim, escutou algo parecido com gemidos dentro de um quarto. Lentamente, abriu a porta. Na penumbra pode divisar uma jovem amarrada em uma das camas, com os braços e pernas amarrados, abertos, nos quatro cantos da cama. Um trapo colocado em sua boca, preso por um lenço ou pedaço de pano, apenas permitia que ela soltasse gemidos sufocados. Pelo que pode divisar de sua expressão aterrorizada, devia ter sido seviciada.

Fez um sinal com a mão pedindo silêncio. Mostrou a ela seu distintivo de polícia, buscando tranqüiliza-la. Puxando de uma faca de caça que trazia presa em sua perna, cortou as cordas que a prendiam mas manteve a mordaça. Não queria que sua presença fosse denunciada por algum grito ou choro de desespero.

Conduziu-a até o corredor e fez sinal para que ela saísse por onde ele entrara. Ela estava em pânico e quedou-se sentada no chão, segurando as pernas, quase em posição fetal. Ele fez, novamente, sinal de silêncio para ela e prosseguiu. Mais tarde cuidaria dela. Por enquanto, ela estaria salva. Agora ele tinha coisas mais importantes para fazer.

Respirou fundo e pausadamente. O ar deu-lhe a gana de procurar a caça. Sentiu-se forte como uma fera que procura carne para saciar a fome mas que precisa também saciar sua sede de caça.

Colado às paredes foi deslizando macio, sem ruídos. A surpresa é o fato fundamental para que a vítima se torne efetivamente uma vítima. Quando chegou à escada que conduzia ao térreo, colocou-se de bruços e foi deslizando por sobre ela, como uma serpente. Parou algumas vezes à procura de ruídos, tentando usa-los para localizar suas presas. Aparentemente eram apenas três. No fim da escada, permaneceu junto ao chão. Dois deles estavam na sala, abaixados, tentando vislumbrar algo pelas janelas. Estavam distraídos demais para percebe-lo. Usando a parede para ser menos visível, foi até os fundos, aonde um deles tentava, também, ver o que acontecia lá fora.

Foi fácil demais. Uma aproximação lenta e um braço apertando um pescoço desprevenido. Um pouco de força e “crec”: um branco a menos no mundo dos vivos. Que sua alma fosse para o inferno deles, com todas as suas chamas. Depositou o corpo no chão lentamente. Não queria alertar os outros.

Voltou vagarosamente para o corredor. Um deles começou a agitar-se demais, gritando para os policiais, mandando-os embora, como se isso fosse acontecer. Índio, com medo de ser visto, recuou mais um pouco e colou-se o mais que pode na parede. Olhou para trás, pensando em voltar para poder se esconder melhor.

Uma nevoa começou a invadir a cozinha. Era ela, que vinha reclamar sua parte na caçada! Índio olhou aquele rosto suave que seria lindo demais se não tivesse olhos que mostravam seu interior. Era o imo de qualquer predador que buscava prazer em observar, encurralar e retalhar sua vitima. Ela sorriu para ele enquanto passava. Índio gostaria de toca-la no rosto, sentir a sua beleza, mas conteve-se. Não se põe a mão no fogo sem queima-la, por mais lindas que sejam as chamas.

Índio acomodou-se no seu lugar achando que seu trabalho seria concluído por ela. De repente, ela começou a subir a escada. Ele percebeu o que iria acontecer. Ela queria medo. Ela queria pânico e pavor e eles estavam lá em cima, enroscados na alma da moça, que ainda devia estar alucinada com o que lhe acontecera e com o que imaginava que estava acontecendo. Não era isso que ele queria mas Wannah não tinha a mesma moral que os humanos. Ela apenas queria caçar, alimentar-se de suas presas preferidas e, naquele momento, não eram aqueles dois e, sim, a refém que ficara lá em cima. Índio precisava fazer alguma coisa.

Ele abandonou sua segurança e fez-se presente, de arma em punho, chamando a atenção deles.

Vagabundos! No chão! Larguem suas armas.

Eles se voltaram, surpresos. Depois que avaliaram a situação, quiseram reagir. Índio não se fez de rogado. Atirou em um deles, na altura do ombro, jogando-o no chão. O outro, percebendo a situação, deixou cair a arma. Índio olhou rapidamente para a escada e viu um resto de nevoa se encaminhando para o corredor. Ainda não fora o suficiente. Precisava fazer mais.

Aproximou-se do que estava de pé e atirou-o de bruços ao chão. Pegou sua faca de caça e encostou-a na testa, puxando a cabeça dele para trás, pelos cabelos. O assaltante percebeu suas intenções e começou a gritar, pedindo piedade e perdão. Índio fez um pequeno risco na carne, fazendo o sangue sair e atingir os olhos dele. Ele começou a gritar mais por piedade, implorando pela vida e pelo seu escalpo. O que estava no chão, fora de combate, gritava, pressentindo que seria o próximo.

Índio olhou a escada e viu a nevoa rolar por ela. Aos poucos, uma forma de mulher, com rosto suave, foi se formando. Índio encostou a faca na garganta do sujeito, fazendo-o gritar mais. Wannah caminhou para ele. Índio se afastou para deixa-la passar. Ela sorriu para ele, antes de atacar o homem.

Ele viu seus braços se estenderem para aprisionar e levantar o sujeito no ar. Viu o rosto dele transformar-se em uma máscara de horror, enquanto ela vomitava seu estomago negro e o envolvia com ele. O que estava chão virou-se de bruços, tentando se arrastar para longe dali. Seu ferimento apenas o deixou avançar alguns centímetros e o fez desistir pela dor. Ele fechou os olhos com as mãos, tentando não ver o que se passava.

Índio se deleitou com a situação.Era um pequena vingança de seu povo contra os brancos.“Isso, branco, era pelos Wannahmarisi e todos os povos que vocês trucidaram. Isso, branco, era pelas doenças que nos trouxeram, pelas roupas infectadas de varíola que nos deixaram, pelas terras que nos tomaram, pelos nossos animais que vocês mataram. Isso, branco, era apenas um acerto de contas de nossa raça. Isso, branco, era pelas nossas florestas que vocês nos tomaram e destruíram.Isso, branco, era pelas nossas mulheres, pelas nossas crianças e por todos de nós que vocês mataram.”

Índio esperou ela terminar, maravilhado pelo seu poder. Quando ela chegou ao fim, retomou sua forma humana, de mulher com um rosto suave. Ela passou por ele, sorrindo tão docemente que ele retribuiu com o melhor sorriso que seu rosto de pedra poderia dar. Depois, ela se envolveu na sua nevoa e desapareceu.

Índio gritou para os que estavam de fora que tudo estava terminado. Quase pelado, foi motivo de riso de seus colegas. Não se importava com o sarcasmo daqueles brancos idiotas que escondiam seus corpos horrorosos atrás de panos.

Pedro Santos apareceu depois de dar uma olhada dentro da casa.

Bom trabalho, cara-de-pedra. Dois mortos, um ferido e uma refém salva. Nada mal, cara-de-pedra.

Índio achou que era um quase elogio, embora sentisse a mistura de escárnio e desprezo naquelas palavras.

Bom pra você. Agora você pode chamar a imprensa e ter seus minutos de fama.

Com certeza. Pra você o trabalho e as glórias para mim e meus chefes. Uma troca justa, não?

Sim. Cada um tem aquilo que precisa ter, terminou Índio, dando-lhe as costas

Índio foi até o local aonde deixara suas roupas. Vestiu-as como um certo nojo, embora a noite estivesse esfriando. Ainda não se acostumara com elas, mesmo que as usasse desde que saíra de sua aldeia.

A noite não tinha sido má. A adrenalina ainda fumegava seu corpo e ele gostava disso.

Ao longe, uma loira se afastava devagar, andando pelos seus pés mas parecendo que flutuava no ar.

ccaiusc
Enviado por ccaiusc em 25/04/2022
Reeditado em 25/04/2022
Código do texto: T7502955
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