Wannah - Parte III

Terroristas? Perguntou Índio

Pedro Santos deu o seu sorriso branco de escárnio e ironia.

Não. Apenas um construtor querendo economizar e um engenheiro achando que pode transgredir as leis da física.

Índio olhou o que sobrara de um edifício. Os brancos eram tantos que tinham que viver empilhados uns sobre os outros. De vez em quando, suas construções tornavam-se armadilhas e abatiam-nos como eles abateram os búfalos nas antigas pradarias. Os lugares aonde viviam tornavam-se as causas de suas mortes.

Não fazia nem uma hora que o edifício ruíra. O pó ainda não se assentara e as equipes que chegavam não sabiam o que fazer. Os bombeiros discutiam como começar e polícia tentava estabelecer um perímetro para afastar os curiosos. Muitas equipes de televisão já se posicionavam, tentando se estabelecer nos melhores pontos. O prejuízo de outros era o lucro da mídia. Ela vivia disso.

Algumas máquinas chegavam mas ficariam apenas na prontidão esperando o trabalho manual terminar. Quando alguém dissesse que não haveria mais possibilidade de alguém estar vivo, elas entrariam em ação, retirando os grandes blocos de concreto, rasgando os ferros e, quiçá, alguns corpos ainda com vida.

Muitos gemidos se espalhavam pela área. Uns eram de pessoas semi-soterradas que outras ajudavam a se livrarem dos destroços. Muitos eram de gente que tinham alguém preso entre eles. Alguns, mais distantes, vinham do amontoado de entulhos que se formara. Para esses, manter viva sua dor poderia implicar em salvação.

Algumas pessoas foram oferecendo-se para ajudar nas correntes que se formavam para a retirada do que sobrara do prédio. Dois policiais aproximaram-se de Pedro Santos quase sem jeito. Um deles era Rogério, com perfil e corpo de astro de cinema. Rico, loiro, alto, bonito, contrastava sua imagem com a de Índio, cobreado, não muito alto, atarracado e pobre. Corriam pelo departamento piadinhas sobre sua falta de critérios em escolher seus parceiros sexuais. Mas não era uma coisa com a qual Índio se importava. Ele era um dos poucos que não o hostilizavam nem lhe dava apelidos. Outro, Adilson, parecia ter vindo de um planeta muito, muito distante. O uniforme encobria as marcas que as agulhas desenhara em sua pele. Exceto algumas partes como suas mãos, pescoço e cabeça, as demais eram filigranadas com desenhos irremovíveis de artistas desconhecidos. Eles pediram permissão para Pedro Santos para poder trabalharem nas correntes. Pedro Santos deu de ombros. Eles tiraram seus coletes à prova de bala e foram em direção ao chefe dos bombeiros, que tentava manter aberta uma planta do edifício aos seus pés, que o vento, constantemente, queria esvoaçar.

Não vai ajudar, Índio?

Índio olhou-o para tentar perceber algum sarcasmo em seu rosto. Naquele momento não encontrou.

Não sou pago para isso. Vou ficar na vigilância, respondeu Índio.

A face de Pedro Santos retomou sua costumeira contração de desprezo por ele.

Tudo bem, disse Pedro Santos dando-lhe as costas e indo para lugares aonde as câmaras da mídia poderiam focaliza-lo.

Índio foi percorrendo o perímetro, olhando ao redor, tentando decifrar as emoções que por ali permeavam. Elas eram muitas. Tinha, ali, os mórbidos, os curiosos, os revoltados, os condoídos, os satisfeitos por não terem sido eles próprios vítimas, os pesarosos, os incrédulos, os que queriam apenas tirar proveito da situação, os que ajudavam. Índio pensou que nenhuma aldeia destruída no meio da floresta teria aquela gama e quantidade de pessoas a se exprimirem de acordo com seu eu. Para os brancos sobreviventes existiriam memórias e, talvez, entrevistas. Para os brancos que morressem, uma placa com bonitos dizeres em sua memória. Para as carcaças dos búfalos abatidos em antigas pradarias e para as aldeias perdidas nas florestas existiam apenas olhos dos animais necrófagos e oportunistas. No máximo, uma criança chorosa percorrendo a aldeia, que se escondera e se salvara de um massacre, procurando um rosto vivo. Ou um filhote balindo tentando atrair a atenção de uma mãe, de patas ao chão, sem a pele, transformada em uma carcaça sangrenta.

Nos rostos que se multiplicavam ao redor do edifício ruído, uma ruiva chamou a atenção de Índio. Tinha um rosto tão suave e bonito que seria impossível descrever. Essa suavidade se transmitia ao seu redor quase tirando os contornos do mesmo. Seria ela? Wannah? O que faria aqui? Tentou se aproximar mas ela se foi como uma neblina que desaparece ao sol.

Índio voltou-se para o edifício ruído. Algumas das pessoas que eram retiradas dos escombros, tinham seu caminho, na maca até a ambulância, floreado com palmas. Palmas para elas, por terem sobrevivido e aplausos para aqueles que se esforçaram em dar-lhes mais um tempo de vida. Em uma das correntes, Rogério e Adilson já estavam vertendo suor pelo esforço, compenetrados em um trabalho que parecia não ter fim.

Índio completou sua volta ao redor do perímetro e dirigiu-se para seu carro. Apesar do calor forte, ajeitou-se o melhor que pode na sombra rala, puxou o banco para trás e, depois de devaneios, dormiu.

A noite já existia quando acordou. As luzes já estavam substituindo o sol. O número de pessoas que estavam procurando vítimas e retirando escombros parecia ter aumentado em muito, assim como os curiosos. A aparente desorganização inicial parecia ter desaparecido dando lugar a uma frenética seqüência de atividades. A mídia desfilava pela suas câmaras uma série de políticos e chefes de equipes, alem de uma interminável história do fato, que se repetia incessantemente. Os números e estatísticas que divulgavam não se coadunavam entre si, como se quisessem aumentar as proporções da tragédia para aumentar o impacto junto ao público.

Andando ao redor, Índio viu uma morena de rosto suave e etéreo. Percebeu-a desfazendo-se em uma neblina, que se infiltrava aos poucos pelas pedras de concreto e deslizava para baixo dos entulhos. Era ela! Wannah tinha vindo cobrar sua parte no desespero dos que estavam soterrados! Ela estava com fome e vinha retirar energias daqueles que estavam com o pavor incrustado na alma.

Índio respirou fundo. Não havia o que fazer. Ela era como ele: um animal procurando caça. De qualquer modo, muitos dos que estavam embaixo dos destroços já não teriam mais chances de viver. Por essa noite, ela poderia se fartar.

Mas não, Wannah! Não somos carniceiros! Precisamos de sangue corrente e cheio de medo. Não esperamos em cima de uma árvore até que o predador se farte de uma carcaça para depois podermos comer o que restou. Precisamos da astúcia da aproximação, da corrida e do prazer em sufocar a vítima até ela parar de se debater.

Não muito longe dali, Adilson e Rogério dormiam, deitados em um pano estendido em um gramado, com os rostos cobertos de óleo que o suor, depois de evaporar sua água, deixara. Índio retornou ao seu carro e foi para seu apartamento. Por hoje, deixaria Wannah se fartar dos combalidos mas amanhã, pela noite, lhe daria uma refeição digna de uma caçadora.

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Já era começo de madrugada quando Índio estacionou seu carro próximo a uma favela. Já conhecia bem o local e sabia o que procurar. Não era muito difícil: todo policial sabe aonde os bandidos se escondem. Se eles não vão buscar é por causa de uma burocracia infernal e, às vezes, por falta de coragem ou então, muito pior, em função de acordos execráveis.

Quando chegou ao sopé do morro, escolheu um local aonde a escuridão afastava os transeuntes. Tirou sua camisa e seu sapato. Sentia-se melhor assim. Checou se a Taurus estava no coldre e se a Glock continuava em seu lugar, atrás, na cintura, nas costas. Apalpou a perna para sentir a faca de caça e foi se esgueirando nas melhores sombras que a noite podia produzir. Era fácil demais. As janelas e portas se fechavam ao por do sol e o que acontecia fora daquelas casas e barracos erguidos em ruas tortuosas não era da conta de quem estava dentro. Aquele ditado que dizia que a curiosidade tinha matado o gato era lei por ali.

Devagar e sem ruídos, foi aproximando-se da casa que melhor se estendia por aquele morro. Seria um castelo se fosse em tempos medievais. Sua posição possibilitava uma boa visão e grande defesa. Era um eterno reduto de marginais, que se revezavam na moradia quando um novo grupo assumia o controle do tráfico.

Dois guardas controlavam a única passagem para ela. Estavam desatentos, confiantes nas Aks que traziam penduradas no ombro. Uma aproximação por trás, uma faca enfiada na costela e mãos apertando a boca para evitar gritos, derrubou o primeiro. O segundo, um pouco mais distante, só percebeu que Índio estava lá quando um golpe fez sua laringe estalar, quebrando o conduto que levava ar para seus pulmões. Caído no chão, nunca chegou a ver o rosto de quem o matara, apenas seus pés.

Com a mesma simplicidade, eliminou o guarda na frente da casa e o vigia dos fundos. Entrou pela cozinha, avaliando a posição dos que estavam lá dentro. Um deles dormia em frente a uma televisão ligada. Riscou seu pescoço com a faca. O bandido ainda tentou segurar as correntes de sangue que saíam de sua garganta e terminou contorcendo-se na inutilidade do gesto.

Índio abriu a porta de um dos quartos. Um deles ali dormia. Devagar, abriu a porta de outro quarto. Um sujeito e uma moça nua deviam estar no sono daqueles que se fartaram de sexo. O outro quarto estava vazio. Devagar, retornou ao quarto do solitário. Ele terminou seus sonhos em uma mancha vermelha que lhe tirou a voz e depois a vida.

Índio puxou a Taurus 9 mm. Agora podia fazer barulho. Deu um chute na porta do quarto, fazendo os corações sobressaltados deles arremessarem-nos de pé ao chão. O bandido ainda tentou pegar uma arma que estava ao seu lado. Índio deu-lhe um tiro de aviso. Agora não era a hora dele morrer. Daqui a pouco mas não agora.

A moça recuou até o canto da parede. Índio apontou-lhe a pistola, fazendo-a cobrir o rosto com as mãos e encolhendo-a até onde seu medo lhe permitia. Ela nunca ficara tão pequena. Índio retirou o lençol da cama e jogou-o por cima dela. Agora ela parecia um pequeno fantasma soluçante e implorante.

O bandido tentou negociar, oferecendo dinheiro e pó. Índio deu um tiro muito próximo a ele, fazendo-o calar-se. O pequeno fantasma soluçante tornou-se menor ainda. Índio conduziu-o até a sala. Distanciou-se um pouco dele, guardou a Taurus no coldre e colocou a faca de caça na mão direita. O bandido olhou para o comparsa caído no chão, rodeado pelo próprio sangue e entendeu o que lhe aconteceria. Rapidamente, foi até a porta, abriu-a e atirou-se pela rua.

Índio não se fez de rogado. Retomou a Taurus e fez uma bala chegar próxima aos seus pés. A corrida tinha começado.

Pela ladeira abaixo, o bandido voltava seus olhos para ver sempre se o seu perseguidor continuava no encalço. Ele devia deixar de perder esse precioso tempo e usa-lo para sua fuga, porque Índio não lhe sairia do seu rastro.

Foram correndo por ruas tortuosas e de difícil acesso. Volta e meia, Índio arriscava um tiro perto do bandido, nunca o suficiente para acerta-lo.

Enquanto corria, Índio buscava com os olhos o que tinha vindo procurar. “Onde você está, Wannah? Sem você isso não tem graça”.

Por fim, chegaram às ruas planas abaixo do morro. Uma deles foi o caminho que o bandido escolheu. Se fosse em um bairro melhor, seria até agradável, com suas árvores plantadas em sua calçada.

Exausto, no meio da rua, o bandido parou, tentando ver se despistara seu perseguidor. Índio surgiu no meio dela, guardando a pistola e voltando a manter a faca em sua mão direita. O bandido respirou fundo e retomou sua corrida.

À sua frente surgiu uma loira de rosto suave e etéreo. Ele não iria se dar ao trabalho de se desviar dela. Tentou empurra-la para o chão mas foi seguro por mãos cravejadas de ferrões. Ela ergueu-o do solo, apreciando seu pavor. Lentamente, foi comprimindo seus espinhos até faze-los se tocarem dentro de corpo dele. A dor latejou. Ela sorriu e de sua boca foi saindo um estômago negro cheio de dentes voltados para baixo. Ele gritou o quanto pode mas ela não tinha pressa. Lentamente foi envolvendo-o e injetando-lhe sucos corrosivos. Quando terminou, ele era uma carcaça rígida, sem expressão, no meio de uma rua deserta, cheia de moradores acordados mas sem coragem para ver o que acontecia.

Quando Wannah jogou-o no chão, Índio se aproximou dela. Ela sorriu-lhe como se o agradecesse e foi andando para longe, como se flutuasse, até desvanecer-se em uma névoa.

ccaiusc
Enviado por ccaiusc em 07/05/2022
Reeditado em 08/05/2022
Código do texto: T7511302
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