CRENTE SEM FANATISMO: DE CARNE E OSSO — Ensaio Teológico II(12) A visão polarizada da humanidade: uma crítica teológica

Os cristãos apresentam uma visão bastante polarizada da humanidade, dividindo-a em categorias de homens bons e maus, sábios e tolos, eleitos e réprobos. Essa abordagem, embora possa parecer simplista, levanta questões importantes sobre o discernimento e a discriminação pessoal. Neste ensaio, pretendo criticar essa visão sob uma perspectiva teológica, recorrendo a citações bíblicas e de grandes pensadores que apontam para uma compreensão mais complexa e dialógica da condição humana.

Em primeiro lugar, a ideia de que há uma divisão clara entre os filhos de Deus e os filhos do diabo, os eleitos e os réprobos, os nascidos de novo e os duas vezes mortos, é uma simplificação que ignora a diversidade de crenças, culturas e experiências humanas. Não há uma única religião ou moral que possa definir quem é bom ou mau, pois cada uma delas tem seus próprios critérios, dogmas e interpretações. Além disso, as religiões e as morais não são estáticas, mas mudam ao longo do tempo e do espaço, conforme as circunstâncias históricas e sociais. Como afirmou o filósofo francês Michel Foucault, "não há nada de absoluto no que diz respeito à moral" (Foucault, 1984, p. 287). A Bíblia também reconhece a complexidade da condição humana, ao afirmar que "todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus" (Romanos 3:23) e que "não há nenhum justo, nem um sequer" (Romanos 3:10). Portanto, não cabe ao homem julgar quem é bom ou mau, mas somente a Deus, que sonda os corações e conhece as intenções (1 Samuel 16:7).

Em segundo lugar, a ideia de que o homem mau se entrega pela sua boca perversa, que se contradiz, desdenha as coisas sagradas, critica a autoridade, menospreza os outros, elogia a si mesmo, presume que está certo, promove a vaidade e zomba das convenções, é uma generalização que desconsidera o contexto e o sentido das palavras. O que é perverso para uns pode ser justo para outros; o que é sagrado para uns pode ser profano para outros; o que é autoridade para uns pode ser opressão para outros; o que é menosprezo para uns pode ser crítica para outros; o que é elogio para uns pode ser reconhecimento para outros; o que é presunção para uns pode ser confiança para outros; o que é vaidade para uns pode ser autoestima para outros; o que é zombaria para uns pode ser humor para outros. Como disse o linguista brasileiro Marcos Bagno, "a língua não é um sistema fechado em si mesmo, mas um fenômeno social dinâmico" (Bagno, 2007, p. 17). A Bíblia também alerta para o perigo de julgar pelas aparências ou pelo falar dos homens, ao dizer que "o homem vê a face, mas o Senhor vê o coração" (1 Samuel 16:7) e que "nem tudo o que reluz é ouro" (Provérbios 27:21).

Em terceiro lugar, a ideia de que um homem sábio pode discernir e identificar homens maus, rejeitando-os e evitando-os, é uma atitude que impede o diálogo e a convivência entre as diferenças. Ao invés de marcar e isolar os homens maus, um homem sábio deveria buscar compreender as razões e as motivações por trás de suas ações, tentando estabelecer pontes de comunicação e cooperação. Ao invés de escolher o caminho da compreensão para sua vida solitária, um homem sábio deveria escolher o caminho da complexidade para sua vida compartilhada. Como propôs o sociólogo francês Edgar Morin, "a complexidade humana exige uma abordagem multidimensional e transdisciplinar" (Morin, 2005, p. 15). A Bíblia também incentiva a interação com os diferentes, ao ensinar que "o ferro afia o ferro, e o homem afia o seu companheiro" (Provérbios 27:17) e que "como o óleo e o perfume alegram o coração, assim o amigo encontra doçura no conselho cordial" (Provérbios 27:9).

Portanto, concluo que a visão polarizada da humanidade apresentada pelos evangélicos é insustentável sob uma perspectiva teológica, que leva em conta a complexidade humana e a relatividade dos valores. Não há uma dicotomia entre homens bons e maus, mas uma multiplicidade de nuances e contradições que caracterizam a condição humana. Não há uma única fonte de sabedoria ou conhecimento, mas uma diversidade de perspectivas e interpretações que enriquecem o pensamento humano. Não há um único caminho da verdade ou da salvação, mas uma variedade de trajetórias e experiências que desafiam o homem a se reinventar constantemente.