Caracolândia

O Submundo Trevoso dos Oceanos

 

O peixe caracol é considerado um dos peixes mais feios do mundo. Suas características se desenvolveram para que ele se adaptasse ao ambiente onde vive, onde impera a escuridão total, a escassez de alimento e uma pressão oceânica em torno de 800 atms, equivalente ao peso de um elefante adulto. Para se entender o que isso significa basta dizer que ao nível do mar a pressão atmosférica é de apenas um atm, a maior do planeta experimentada pelo ser humano sobre a Terra.  Abaixo do nível do mar, no entanto, cada dez metros de profundidade adiciona um atm de pressão oceânica. As profundezas abissais do oceano, onde vive o peixe caracol tem uma profundidade de até dez mil metros, podendo a pressão oceânica chegar a mil atms.

 

Comparado ao habitat do peixe caracol, o ser humano vive num paraíso! É o que atesta a história de Cara-coragem, um peixe caracol que resolveu desbravar as águas rasas do oceano.

 

Um dia, nas profundezas escuras de Caracolândia, um peixe caracol convidou seu amigo, para um passeio nos níveis mais sutis do oceano. Iriam subir até onde conseguissem, para uma exploração oceânica nunca feita antes pelo clã dos Caracóis. Cara-colado, o peixe amigo descartou o convite alegando temor de enfrentar o desconhecido e indisposição a saídas de seu ambiente já familiar e acolhedor, aliás o único que conhecia. Mas tanto insistiu Cara-coragem, o peixe convidante, que o amigo acabou cedendo. 

 

A viagem começou na zona escura e de energia pesadíssima que habitavam, fatores incorporados à cultura dos Caracóis por milhares de anos, o que os impedia de se darem conta de que carregavam um elefante nas costas. A cada investida mar acima, percebiam um pequeno aumento na facilidade com que se moviam, devido à redução progressiva da pressão oceânica. Foi entusiasmante! Passaram a subir a uma velocidade maior e logo estavam dançando como bailarinos na leveza do que tinha se convertido de elefante adulto em filhote de elefante.

 

A pequena liberdade de que agora desfrutavam refletia de maneiras diferentes nos dois Caracóis. Cara-colado sentia-se desprotegido. Não conseguia controlar seus movimentos, agora mais livres, temendo perder o rastro para o caminho de volta. Via também essa mudança de ambiente como uma fantasia pouco ligada à sua realidade do dia-a-dia sobre a qual sempre tivera controle.

 

Cara-coragem, no entanto, apreciou enormemente o gosto da liberdade. Estava desvendando novas possibilidades, e, acima de tudo, estava entendendo que suas limitações eram apenas relativas ao ambiente que frequentava. No fundo do abismo era lento, pesado e a única liberdade que tinha era a de compartilhar as guloseimas depositadas nas profundezas que habitava.

 

A despressurização natural progressiva encantava Cara-coragem, cada vez mais ágil em sua dança aquática mar acima, e fazia crescer a ansiedade em Cara-colado que, confuso, tentava arrastar Cara-coragem de volta para casa. Deslumbrado com a leveza e a liberdade que sua ascensão proporcionava, Cara-coragem incentivava Cara-colado:

 

- Cara, este é um mundo novo para nós, mas ele está aí desde sempre! Por que temê-lo se ele nos oferece a liberdade que nunca tivemos?

 

- Porque isto não é a nossa realidade. Aqui ficamos sem chão, não temos onde nos apegar para nos proteger.

 

E, assim, o amigo voltou assustado e descrente para as profundezas. Cara-coragem, no entanto, prosseguiu. Subia cada vez mais rápido devido à redução gradativa da pressão oceânica.

 

Aos poucos, passou a perceber que conseguia enxergar uma luz fraca e difusa, em meio à imensidão do oceano. Nunca antes tinha tido esta experiência e por isso não sabia o que era aquilo. Notava os contornos de outros animais que se moviam a esta profundidade já não tão extrema, alguns destroços largados no mar, plantas estranhas e paredes submarinas. A sensação de êxtase que o dominou refletia bem sua certeza de que o mundo era muito mais que um abismo pesado e escuro. Não haveria como explicar em palavras essa outra realidade ao seu amigo assustado e nem a seus parentes, pois a compreensão dessa maravilha dependia da experimentação.

 

À medida que galgava níveis mais leves do oceano se dava conta de que a luz aumentava, fazendo-o entender que tudo o que agora conseguia ver só lhe era mostrado pela existência da luz que refletia no ambiente. Lembrou-se então das lendas contadas pelos sábios anciãos sobre um mundo distante onde imperava a luz, a leveza e a alegria, histórias que ninguém conseguia entender e nas quais ninguém acreditava.

 

Já se perdia a conta do tempo em que estas narrativas foram trazidas, talvez por peixes que antes de Cara-coragem ousaram explorar as alturas; ou, teve que admitir, por peixes que habitavam as alturas e que haviam explorado as profundezas para mostrar ao mundo das trevas as oportunidades que os aguardavam na leveza das águas rasas.

 

Seu entusiasmo transbordava e o êxtase que experimentava o fazia rir e chorar ao mesmo tempo. Passou então a observar o efeito de sua ascensão oceânica em si mesmo. A luz, à medida que se tornava mais intensa, ofuscava sua visão, acostumado que estava às profundezas escuras; seu próprio corpo estava diferente, não só pela agilidade que conquistara nas águas menos densas do oceano, mas também pelo bem-estar que a pressão oceânica reduzida proporcionava. Sua expressão, antes sinistra e deprimida, tornava-se agora radiante, exibindo todo o deslumbramento pelo novo mundo de luz ao qual podia ter acesso.

 

Quando pensava em como era a vida nas trevas do abismo pesado em que vivia antes, sabia que não poderia jamais voltar. Não havia como retroceder. Tinha abandonado o apego à segurança de um mundo familiar, a comodidade da rotina sem surpresas e a dependência do convívio com parentes e amigos cuja consciência não conseguia superar as amarras do peso e da escuridão. Sua vida passou a ser um projeto de ascensão. Queria ver, o quanto pudesse, até onde poderia chegar.

 

Enquanto isso, os parentes e amigos de Cara-coragem exibiam sua mágoa e seu repúdio por terem sido abandonados. Não se conformavam com a mudança de comportamento de um peixe caracol que nasceu e cresceu em uma cultura de tradição milenar. Era uma traição, uma ofensa indesculpável aos antepassados que por éons preservaram os costumes e convenções cujas origens se perdiam no tempo.

 

Em protesto à afronta de Cara-coragem, Caracolândia reuniu todos os seus habitantes em manifestação contra a ingratidão e a insanidade do peixe aventureiro, como forma de evitar que tal desmando ocorresse novamente no futuro.

 

Mas... no íntimo, cada peixe deixado para trás por Cara-coragem admirava sua audácia e sua ousadia e se deixava tomar por uma atração inexplicável de fazer o mesmo. Só não faziam porque o medo ainda era mais forte e porque os dogmas culturais os impediam de sequer conversar a respeito. No entanto, a semente foi plantada e a verdade é que Caracolândia nunca mais foi a mesma...

 

Quanto a Cara-coragem, nunca mais se ouviu falar dele. Apenas passaram a circular boatos de que seu espectro luminoso rondava a comunidade trevosa, seduzindo seu clã a seguir seus passos.