A História do Cinema contada em carta ao público...

Esta é a História do Cinema numa carta ao público...

Este é um monólogo do próprio cinema contando sua história...

Atenção: enquanto ler o texto, escute se puder Chopin - Nocturne op.9 No.2

- Cinema: um filósofo chamado Plotino certa vez disse que “tudo é símbolo”, eu também já fui um embrião, um embrião no ventre da minha mamãe história... Ah... não faz muito tempo...

No inicio eu era apenas uma imagem captada, um borrãozinho que desaparecia quando menos esperava, fui captado pela primeira vez por um senhor francês, seu nome era Joseph Nicéphore Niépce, ele me captou em 1823 como uma “ultrassonografia” só que sem eco, foi a primeira fotografia... sem ela ninguém saberia da minha existência... foi na Fotografia que fui gerado... foi meu primeiro vestígio.

Eu chutava com força, me movimentava muito no útero, queria logo nascer, estava com pressa, quem me contou isso foi o senhor Louis Jacques Mandé Daguerre, ele cuidou de mim com um aparelho que ele inventou, um tal de “Daguerreótipo”. Ele faleceu de ataque cardíaco antes de me ver nascer.

No meu enxoval em 1832, adaptaram para mim umas roupinhas, as primeiras que eu usei, um rapaz belga, formado em física e super curioso chamado Joseph Plateau criou o Fenacistoscópio, tinha a minha cara... uma pena ele ter olhado tanto tempo diretamente para o sol e ter perdido a visão... Outro simpático matemático, o inglês William George Horner em 1834 inventou algo bem divertido e me deu de presente, o chamado Zootrópio. Oito anos depois Soren Kierkegaard publicaria “O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates”.

Eu era como os primeiros versos tímidos de Enheduana na Mesopotâmia de 2285 a.C, tão simples, mas portando o realismo do afresco do pintor italiano Masaccio “A Expulsão de Adão e Eva do Paraíso” de 1425... eu me nutria de sabores vários, meu liquido amniótico proporcionava as mesmas sensações provocadas pelos poemas de Wolfram Von Eschenbach, ou nas imponentes peças da dramaturga Hroswitha de Gandersheim...

Eu estava nascendo, de parto normal, em 1872, o fotógrafo inglês Eadweard Muybridge foi contratado para provar que um cavalo ao galopar chegava tirar as quatro patas do chão, foi preciso me fotografar instantaneamente com 24 câmeras, assim o senhor Eadweard após uma sequencia de fotos aceleradas conseguiu criar uma animação a partir de fotos. Ele me assistiu na forma do famoso “The Horse Motion”, eu estava ali. Uma pena a esposa de Eadweard tê-lo traído com um Major, mas isso é coisa do destino... acontece...

Eu nem mal havia nascido e já estava sendo estudado, o pesquisador era Étienne-Jules Marey, ele estudou os movimentos que eu poderia captar um dia, estudou os movimentos das asas de um pelicano... estudou os movimentos do gato que cai sempre em pé e os fotografou...

Meu desenvolvimento foi graças a meu primeiro amigo, um homem humilde de Nova York chamado George Eastman, ele criou o rolo de papel fotográfico, ele criou a “película fotográfica”, ele também construiu um império, a Kodak. Uma pena meu amigo George Eastman ter se suicidado com um tiro no peito.

Eu já estava quase pronto para ser apresentado ao mundo, era o senhor Louis Aimé Augustin Le Prince que ia me mostrar num filme de 12 segundos, porém ele entrou num trem no dia 16 de Setembro de 1890 e nunca mais foi visto... sumiu, nunca mais ninguém teve noticias dele e me deixou escondido... Nessa época o mundo já conhecia a obra “Assim Falou Zaratustra” de Nietzsche... mas ainda não me conhecia.

Dois mecenas, dois irmãos franceses de sobrenome Lumière, Auguste e Louis Lumière me ensinaram a dar os primeiros passos com um equipamento chamado “Cinematógrafo”, eles me proporcionaram o meu primeiro contato com o público, num evento lindo no dia 28 de Dezembro de 1895, no Salão Indiano, subsolo do Le Grand Café, no Boulevard dês Capucines, as pessoas pagaram 1 franco cada uma para me assistir pela primeira vez, foram pequenos trechos de gravações sem som, entre elas a famosa “La Sortie de I’usine Lumière à Lyon” (A saída da Fábrica Lumière em Lyon) de 45 segundos.

Eu adorei me exibir para as pessoas e os irmãos Lumière me exibiram a elas cada vez mais, quando filmaram o inesquecível “L’Arrivée d’um train em gare de La Ciotat” (A Chegada do Trem na Estação) de 1 minuto, me senti majestoso... o público nunca tinha visto nada igual em sua vida. As pessoas me viam tão lindo, parecia tão emblematicamente arte como a arte das tecelãs de macramê na Inglaterra Vitoriana.

O público me vendo pela projeção de um cinematógrafo, lá estava eu usando apenas um “subligáculo” a luz transparecia meu movimentos. Eu era belo como a filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, era inovador como Guido de Arezzo quando deu nome as notas musicais (dó, ré, mi, sol, lá, si), eu era avassalador como a fúria de Artemisia Gentileschi após seu estupro pintando a obra “Judite decapitando Holofernes”, colocando em tela toda a raiva que sentia de seu estuprador Agostino Tassi.

Eu segui me desenvolvendo, em 1889, o rapaz escocês William Kennedy Dickson que trabalhava para Thomas Edison criou outra espécie de câmera da época, o cinetoscópio, para me exibir mais lindo... era meu brinquedo novo... minha primeira casa foi um teatro, lá me ensinaram a mágica, os primeiros efeitos especiais... a fantasia, o espetáculo, sabe quem me ensinou? Foi Georges Méliès, ele era dono do teatro Robert-Houdin, lembro como se fosse hoje da minha primeira apresentação de ficção cientifica, o filme “Le Voyage dans la Lune”, era 1902...

Ah... meu primeiro faroeste americano (Western), foi “Kit Carson” de 1903, foram 21 minutos de pura ação... ali se iniciava o jeito americano de me consumir com ação... Lembro também de “The Great train Robbery”, eu era tão jovem... mas todo mundo já me conhecia...

Charles Pathé, conhece? Foi ele que me contou os grandes clássicos, um grande empresário que me colocou para interpretar as primeiras histórias como Ali Babá e os 40 ladrões em 1907, Cinderela e “La Vie et la Passion de Jésus Christ”, a produtora de Pathé tinha como símbolo um galo, alias o símbolo da França é o galo porque a palavra “gallus” do latim assemelha-se muito com a forma que eram chamados os antigos povos da França, os “galois”, “tudo é símbolo”.

Quando minha fama mirim se consolidou passei a ser disputado por todos os amigos que se beneficiavam de mim, criadores, distribuidores de minha arte, nos Estados Unidos me queriam muito, na França eu era muito amado, o senhor Thomas Edison processava outros colaboradores de minha arte, no fundo ele se achava o dono dela, infelizmente muitos me deixaram ao ser processados por ele, ele ganhou muito dinheiro pelo meu trabalho... os donos de “Nickelodeons” me salvaram das garras dele, eu era muito jovem ainda para saber a dimensão que eu teria...

Eu jamais imaginei que na numeração das artes eu seria a sétima arte, me sinto como os Principados na Hierarquia dos anjos de Pseudo-Dionísio, o Areopagita. Em tudo eu vejo arte, ela emana de mim quando eu conto histórias em tela... fiquei encantando quando li pela primeira vez sobre a “Haute Couture”, a alta-costura é minha conterrânea, assim como eu foi gerada na França, o inglês Charles Frederick Worth foi quem a criou... A Moda é arte, o Prêt-à-Porter deve tudo a Pierre Cardin, a Yves Saint Laurent (o homem que criou o smoke feminino), o que seria da ousadia sem o “rosa-choque” inventado por Elsa Schiaparelli? Que pena que Pietro Perugino nunca poderá pintar sua esposa num modelito de vestido Chemise de Cristóbal Balenciaga...

Em 1910 eu crescia rapidamente, Nova York não conseguia mais dar conta das minhas produções, meu tamanho era imenso, os amigos produtores deram um jeito de me levar para a California na Costa Oeste, aquele lugar caiu como uma luva, Los Angeles me acolheu, me apelidaram com o nome de um subúrbio conhecido como Hollywood, lá todo mundo queria trabalhar comigo...

Eu sou um menino travesso e adoro assustar as pessoas, o gênero Terror as minhas telas teve origem na Alemanha, o primeiro filme dito “terror” foi o “Der Andere” de 1913, um filme sobre dupla personalidade num mesmo homem... o segundo foi “Der Student Von Prag” de 1913 e o último da primeira trilogia do terror alemão foi o aclamado “Der Golem” de 1915. Depois da minha trilogia de terror, o mundo inteiro passou a amar os mortos-vivos, vampiros, assassinos em série, entidades... essa é mais uma faceta minha... uma pena que eu ainda não sabia falar nessa época...

Os irmãos Warner que fundaram a Warner Brothers me ensinaram a falar, minhas primeiras palavras foram no filme “O cantor de Jazz” de 1927, que saudade da minha adolescência...

Tantas pessoas talentosas brilharam nas minhas telas... Lillian Diana Gish deixou marcas em mim, como esquecer Mary Pickford? Greta Garbo foi meu amor de juventude... Katharine Hepburn vossa majestade nos olha de seu trono, Joan Crawford, seu livro “Mamãezinha Querida” me pareceu tão real... os inseparáveis Ginger Rogers e Fred Astaire nos musicais, Elizabeth Taylor excitou muitas pessoas na platéia com sua eterna Cleópatra... Grace Kelly a eterna princesa de Mônaco. Ingrid Bergman tão sofisticada, Vivien Leigh eu vi crescer... Isabelle Huppert e seu iceberg em a “Professora de Piano”, Sophia Loren, a inesquecível Janet Leigh no Psicose.

Um baixinho de 1,65 que me emocionou tantas vezes o querido meu amigo Sir Charles Spencer Chaplin, confesso que estava chorando no “Vida de Cachorro” de 1918 ao vê-lo nos meus arquivos... eu vi Marlon Brando e os suspiros das moças na época, o fenômeno Orson Welles.

Eu vi a Primeira Guerra Mundial de perto, depois a Segunda, eu vi o Surrealismo me invadir em “Um Cão Andaluz” de Luis Buñuel, eu vi “Carlitos Dançarino”, eu transmiti “O Nascimento de Uma Nação” de 1915, eu estava lá em “Escravo de Uma Paixão”, eu mostrei ao mundo a primeira versão de “Ben-Hur” de 1907, eu aterrorizei no “O Gabinete do Dr. Caligari”, eu sofri junto ao “O Martírio de Joana D’Arc”, foi de mim que verteu “A Canção do Mercador Kalashnikov”, eu me enchi de orgulho de “Stalker” de Andrei Tarkovsky, me exaltei com “O Ultimo Tango em Paris”, dormi vendo “Das Boot”, sorri no “Cantando na Chuva”, passou por mim a “A Megera Domada” baseado na peça de Shakespeare, “Drácula” de 1931, “Frankenstein”, “O homem invisível”, o “King Kong” de 1933, “O Vento Levou”, “O Mágico de Oz” de 1939, “Cidadão Kane”, “A mulher faz o homem” ... eu sempre estive lá... na luz, no texto, na câmera e na ação...na loucura de “Os Demônios” de 1971. Na erudição de “Les 400 Coups”, na paixão de “Bravehart”

A minha arte tem raízes tão profundas como à arquitetura gótica que nasceu da minha terra, França em 1135... A beleza dos meus clássicos é como a beleza da primeira catedral Gótica, a Basílica de Saint-Denis, a forma como estruturo cada montagem de texto em forma de colcha de retalhos se aproxima da perfeição dos vitrais da Capela Sainte-Chapelle, quando quebro a quarta parede parece que estou vendo a “planta baixa” da catedral de Colônia na Alemanha, ou da catedral de Milão, ou a de Santiago de Compostela. As trilhas sonoras da minha existência são como as notas tocadas por Antonio Vivaldi. Tenho a vibração de Aram Khachaturian, tenho o delírio de grandeza de Richard Wagner, tenho a devoção de Johann Sebastian Bach, a virtuosidade de Franz Liszt, a tenacidade de Rimsky-Korsakov e o medo como o de Dmitri Shostakóvitch e a serenidade de Edvard Grieg.

Eu fiz tantas homenagens às mulheres em “Pretty Woman” de 1990, tanta gente dançou comigo em “Dirty Dancing” de 1987, conscientizei com “A Lista de Schindler”, proporcionei momentos intensos com “Um Estranho no Ninho”, feri com “Funny Games” de Michael Haneke, revoltei com “Lolita”, fiz muita gente rir com “Endiabrado”, “A Noviça Rebelde” tem a minha cara, tenho em mente a ultima cena de “Geminis” de 2005, uma das cenas mais fortes que já presenciei... Vibrei com a obra “Perfume: a história de um assassino”, a saga das essências... da pele e do perfume. Eu assombrei com a atuação de Bruno Ganz em “Der Untergang”. Eu fui rebelde na contracultura em “Laranja Mecânica”, revelei o “Poderoso Chefão”, lancei “Carrie, a estranha” de 1976, nadei com “O Tubarão” de 1975, causei transtornos com “Amargo Pesadelo”, escandalizei com “O Jardim de Cimento”, me deleitei com a exuberância da história de vida de Wladyslaw Szpilman em "O Pianista", acabei roendo as unhas no desfecho de "Vanilla Sky", vandalizei violentamente com “Lake Eden” de 2008.

Eu cheguei ao Brasil em 1949, me hospedei numa companhia cinematográfica chamada “Vera Cruz”, o povo humilde me acolheu, fiz sucesso com “O Cangaceiro”, “Sinhá Moça”, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Vidas Secas”, “Macunaíma”...

Eu estou em todos os lugares, estou na Índia, em “Bollywood”, onde cerca de 1,3 bilhão de pessoas me amam... eu estou na Nigéria, em “Nollywood”, onde 196 milhões de pessoas ficam ansiosas para me ver. Estou na China, o segundo país do mundo que mais vende ingresso para me assistir e tem uma população de 1,4 bilhão de entusiastas.

Tenho receio de perder o “ultimo” cineasta erudito ocidental, o dinamarquês chamado Lars Von Trier, o ultimo erudito, o mais inteligente atualmente da minha arte, o ultimo a evitar se contaminar com o as formas superficiais, banais, sem conteúdo e clichês que muitos replicam de mim por aí... Lars com todo seu quilométrico e estratosférico conhecimento rígido da literatura mundial faz jus a minha arte... com obras como "Ondas do Destino", “Dogville”, “Melancolia”, “Anticristo”, “Dançando no Escuro”, “Ninfomaníaca” e “A Casa que Jack Construiu”, todos obras primas de gigantesco olhar crítico sobre a humanidade. Vemos sua elevada cultura quando ele replica em cena com atores a pintura de Eugène Delacroix “A Barca de Dante”no final do filme “A Casa que Jack Construiu”.

Todos os dias eu estou me desenvolvendo, sou ainda jovem e há muito de mim para ser escrito, você ainda me assistirá muito em tela... Quem eu sou? Eu sou o Cinema...

Obs:alguns filmes são de gosto clichê do autor, gosto pessoal, outros são clássicos que fizeram a história do cinema, não foi possível incluir todas as obras clássicas do cinema como filmes em Italiano, Russo, Francês, Dinamarquês, Sueco,Norueguês, Turco, Holandês, Coreano, Espanhol e Cinema do Reino Unido. Tenho plena noção de que faltaram muitas obras importantíssimas para a estrutura do estudo de cinema. O Texto aqui em questão não tem nenhum compromisso com rigidez acadêmica. É um dialogo pessoal do Cinema contando um pouco sobre si em uma conversa informal.

Eden Mendes
Enviado por Eden Mendes em 06/06/2020
Reeditado em 06/06/2020
Código do texto: T6969126
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