Poesia Descalça e suas firmes pegadas de beleza

Prefácio do livro "Poesia descalça"

Após presentear-nos com “2056 - Cenários do Brasil e do Mundo” (Ed. Oeste, Brasil, 2002; que também foi lançado na Espanha e Alemanha - onde foi traduzido) e “Naquela Cabine...” (Ed. Uniderp, 2003; este em co-autoria com Nena Sarti), o versátil escritor Darci Cunha – que, radicado em Campo Grande (MS), é natural de Arroio Grande (RS) – chega agora com o seu 3º livro: POESIA DESCALÇA. Publicação esta que, como era de se presumir, vem oxigenar a literatura sul-mato-grossense e agregar qualidade ao patrimônio da arte poética.

E foi com muita honra que recebi (e aceitei) o convite para a elaboração destas considerações prefaciais, posto que já não é de hoje que constato em Darci Cunha a presença de uma inspiração lúcida, racional, bem talhada e fértil. Uma inconsútil potencialidade humanística e filosófica capaz de cristalizar também rebentos poéticos de grande valor.

Destarte, debrucei minhas desnudas retinas sobre as páginas de Poesia Descalça e – neste fascinante mister, exercitando-e-excitando vagarosamente meu universo sensitivo – logo pude perceber que, a cada verso, a cada estrofe e a cada poema, algo-assim-quase-misterioso transportava-me mais e mais para uma ambiência supra-real, uma intangível e afortunada seara endopsíquica, onde tudo gravita em torno das transcendentes sutilezas, além dos elementos extra-estruturais da obra e da epiderme conceitual das cousas, além do convencionalismo literal dos nossos sentidos e, de quando em vez, além da linguagem (isto é, no plano da metalinguagem). E aqui recordo, não por acaso, a sábia e conhecida assertiva: poesia de verdade é aquela que provoca no leitor os mais inesperados vôos.

Merece destaque também, nesta maiúscula obra, a presença das sinopses paratextuais (que ladeiam os poemas, particularizando-os e, num transbordamento significativo, acrescentando-lhes um panorama de peculiaridade estética).

Com precisão e naturalidade, Darci entremeia – em considerável parte deste seu livro – aspectos filosóficos com recursos poéticos (ou vice-versa); conjumina a visão metafísica do inconsciente conscientizado com a fluidez objetificada do cotidiano; sincroniza as infinitudes do imaginário com a inevitável realidade táctil do rotinomundo. E, assim, reordenando o processo de iconização do símbolo/signo lingüístico, ele amplia magnificamente a valência semântica da sua arte. Tudo convergindo para a essência do pensamento heideggeriano que apregoa: “A verdade, como clareira e ocultação do ente, acontece na medida em que se poetiza”.

Encontramos, neste volume, um eu lírico que se expressa e vai buscar o etéreo sentido do belo através de várias acepções, num amálgama de ponderações e estilos, e sempre desarraigado dos convencionalismos tradicionais. Elementos como a desilusão, o tempo, a dor, a elegia, o desejo, a condição humana, a vida em devenir, a amizade, a lembrança, a ausência e o amor, aparecem escandidos com o fino vigor simbólico das palavras e das poesias, impregnando de eterno o efêmero.

Bem na linha daquela asserção de Guimarães Rosa: “Em meus textos quero chocar o leitor, não deixar que repouse na bengala dos lugares-comuns, das expressões acostumadas e domesticadas; quero obrigá-lo a sentir uma novidade nas palavras”, Darci Cunha insere, em vários poemas (até mesmo em alguns com tonalidade romântica), uma fortíssima dosagem de efeitos surreais, espectros polissêmicos que nos impulsionam – num misto de encantamento e perplexidez – a lê-los repetidas vezes, sempre se descobrindo, em cada palavra metamorfoseada, em cada imagem e em cada verso, a irrefutável virtuosidade do seu autor (vide “Ponha o tênis!” - pág. x; “Poetisa-pó” - pág. x; “Paralelo às pombas” - pág. x; “Pegadas de Pablo” - pág. x; “Champanhas na janela” - pág. x; “Caminhos” - pág. x; “Andorinhas do Palácio” - pág. x; “Saga de um homem só” - pág. x; “Armários” - pág. x; “Agonia” - pág. x; e “Imagem e semelhança” - pág. x).

Da leva de poemas escritos por Darci Cunha em seu recente e produtivo passeio turístico-literário pela Espanha, ele selecionou seis para constar nesta edição: “Águia Fecunda” - pág. x; “Andorinhas do Palácio” - pág. x; “Os meninos já foram” - pág. x; “Vento oportuno” - pág. x; “Granada dos poetas” - pág. x; e “Plaza de toros” - pág. x. Este último, belíssimo (aliás, como os demais), realça-se pela intensa carga emocional que – com extrema sensibilidade e maestria – o bardo sul-rio-grandense explicita ao longo dos versos que retratam as nuanças de um ‘espetáculo’ brutal que faz parte da cultura de um país e da tradição de um povo: as touradas, onde “Tudo é vermelho. / Caras, bocas, apostas. / Touro sem toureiro, arena vadia / Toureiro sem touro, alma vazia. / Festa assassina”. Assim – diante daquele macabro balé tauromáquico (aquele rito de crueldade desigual, onde a valentia confunde-se com a covardia), e em meio ao toque de clarins, urros de ‘olés’ da turba insana e o rufo característico dos taróis – o nosso vate, fazendo uso da sua inseparável arma: a pena poética, arremata e registra: “ ... Touro é fetiche, / olé das senhoras, / madame penteado. / Ao som dos tambores / poema se lança, / caneta cravada, / arena papel”.

As evocações do passado, a retrovivência, o tempo-nostálgico e o sentimento telúrico também se fazem presentes em Poesia Descalça. Isto podemos atinar em “Caminhos” - pág. x: “No reviver dos passos / quero os mesmos caminhos / abraços maduros / suaves carinhos (...)”; “Igualdade Social” - pág. x: “... aquela voz que se ouvia / a mesma de tantos sonhos / vinha de longe, talvez de dentro / talvez da infância (...)”; “Saudades” - pág. x: “Pó, parceiro do vento / do Rio Grande leva o menino / seguindo, talvez, centelhas do tempo / alma a cabresto, olhar de punhal / mão em acenos, coração em missal / atalhos do norte, cortante destino / (...); e “A rua que mora em mim” - pág. x: “... Quem me vê brincando assim / céus e jornais me cobrindo / imagina que estou saindo / dum quadro de ficção. / Mas sendo real ou não / como quem sonha e apronta / brinco de faz-de-conta / na rua que mora em mim”.

Outrossim, de forma iluminada, Darci Cunha exalta, neste compêndio, o poder divineterno da canção e a transcendental constância do ser-poeta e da poesia, como se verifica em “Canto” - pág. x: “... / O canto imortaliza o homem, / sem negar sua existência finita / (...)”; em “Imortal” - pág. x: “... Dei sumiço ao poeta. / Não deixei impressões no sótão. (...) Na próxima ceia talvez / no rastro da musa apareçam / pegadas verbais, / supostos sinais, / imortais do poeta”; e em “Reponte de letras” - pág. x: “... / Do mundo serei o verso, / do silêncio, o corretivo, / da poesia um monumento vivo / será nosso Deus, um poeta”. Ademais, o mesmo poeta que tece o elegíaco-filosófico poema – ou seria “una canción desesperada”? – “Pegadas de Pablo”, pág. x (“... Versavas o vento / em areias chilenas. / Domínio de ausências. / Pegadas de Pablo... / Chãos do amanhã, / poemas nus vagueiam descalços ...”), também patenteia, com singular dedicação, justos tributos para contemporâneos de arte (“Contemplação da Rosa”, pág. x, uma homenagem ao poeta e seu coestaduano Joaquim Moncks; e “Viola Morena”, pág. x, para o emérito bardo-violeiro sul-mato-grossense Geraldo Ramon).

Algo relevante e que deveras causa deleite quando se lê Darci Cunha, tanto em verso como em prosa, é a originalidade da sua verve (sempre em ascensão), o diapasão da sua torrente ideativa, a refulgência das vívidas imagens, o lídimo ineditismo e a textura primorosa das suas composições. Um sei quê naturalmente diferenciado, avesso à mesmisse e ao óbvio, que consubstancia um material literário de admirável potencial.

Em Poesia Descalça, vemos um escritor que sabe plenificar suas idéias de acordo com os arcanos medulares da sua intuição e as exigências naturais do seu tempo. Um poeta de imperecível imagística, que impressiona quando arpeja a suave lira do amor, manifesta ciosamente a policromia dos cenários lúdicos e ternos, ou quando dedilha a harpa das cognições filosofais, exprimindo a hermenêutica do mundo circunstancial e a tecedura cronológica da existência. Um poeta (de poesia vigorosa, fidedigna, límpida, descalça) que, conhecendo a quintessência do código órfico, tem a coragem de escolher um caminho próprio – e, certamente, seguirá nele! Vocação e competência não lhe escasseiam.

Da obra de Darci Cunha, o belo emana espontaneamente, sem apelo nem esforço. Emoções e outros prazerosos sentimentos brotam simples (quais fluentes acordes de flauta doce que nos chegam, de mansinho, pelas frestas da alma) e fortes, como a efígie de um parto que nos contempla e se aloja muito além de nossas retinas.

Poesia Descalça: um livro que veio para deixar firmes pegadas de beleza por onde passar, e para provar que o seu autor, o escritor Darci Cunha, – além do exímio prosador que já mostrou ser nas suas obras anteriores – é também um poeta que maneja o verso com desenvoltura e correção.

É ler para crer!

RUBENIO MARCELO

(Membro e Secretário-Geral da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras)

Darci Cunha
Enviado por Darci Cunha em 29/10/2007
Código do texto: T715249
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