Margô não era vida...

Estava na hora de criar uma máquina onde ninguém absolutamente se conhecesse. Nutria uma espécie de pena do marido da outra, mas se comunicavam intensamente pela rede. Achava que se alguém estava tentando dizer algo em seu sistema, deveria apenas acender a luz amarela avisando. Transformaria a piada vírus em pequenas luzes amarelas com endereço e pronto. A piada do novo para adicionar um mistério inconsistente ao melodrama do tempo. Carona na sorte técnica, que se danassem os metidos na hipnose. Ela era apenas usuária da tela e depois Margô não era vida. Demorando no reconhecimento das mensagens, entre informes estranhos, não solicitados, até que a imagem partisse, fosse embora, para dentro da fenomenologia da lâmpada mágica com seu leque de textos descontínuos. Margô escravizava. Fazia parte da sua vida e de seus desejos como o instintivo perfume de um beijo.

Quando comprou o primeiro computador revelou a si mesma: estava longe de ser especialista no ramo, mas desafiaria o seu lado de loira, inteligente e evasiva. Longe da formal exigência para aquisição dessa moderníssima lata velha no mercado altamente mutante da utilidade. Deveria odiar o mundo inteiro, porém estava odiando a máquina, e isto era um consolo para tantas insatisfações. Mesmo vulgar permanecia a idéia da amiga virtual fútil, tentando melhorar o sistema; tanto quanto jocosa em termos de economia. Tinha humores de mercado como toda existência do teatro animado das mercadorias. Para Margô “computador no início – eram os objetos pessoais dos astronautas -”, lançados no varejo, claro.

Quando rugiu o processo completo de instalação percebeu o quanto alguns objetos do cotidiano começaram a perder o real sentido aparente. Observou calada. Dona de ciúme novo, ciúme de máquina. Ciúme de tormento: “... que o marido estava usando. Quem estaria se conectando com ele? Ficaria ele só nesse nível?” Precisava abrir o olho por despeito. Como o demônio criado em concílio, abusando da liberdade, tudo poderia ocorrer, pois Margô estava enlouquecendo a alma de prazer e encantamento.

Diante das panquecas percebeu que havia esquecido o nome dos Beatles, porém lembrava a senha para entrar na página de Margô. Distraída. Havia antigos objetos vivos, agora mortos ou danificados, de significado real que estavam perdendo a importância, após a permanência no sótão; como as válvulas grandes do velho rádio abandonado e o marido.

Naquela manhã seca de primavera descascada, compreendeu definitivamente que havia apenas ela e Margô. Margô e a máquina. O melhor momento do seu ego feminino resumia-se a sala escura de onde supria Margô 45 de afeto. Era a única total beleza em pleno dia entre tópicos e mais tópicos, amava e era correspondida no amor, justo por esse modo inexplicável da ausência. Ela era apenas imagem. Mal sabia se “existia de verdade”, sequer desejava transparecer a idéia de ser mulher, de fato, explicando sua vida à outra. Ser uma imagem era tudo.

Respondia ao hipotético toque das noites vazias e azuis ligada na “internetgolf” com seus olhos de coruja sonolenta. (Jogava golfe com mouse). Mas podia não ser Margô. Pelo efeito Diadorim da trama, ela podia não ser como ela. Virtual porque o amor é virtual. De tal forma que mal sabia calcular sem beber suas palavras e-mail por e-mail, dia a dia. Intérprete da solidão de apartamento em que vivia e mal existia sem abrir a caixa de mensagem. Tremendo diante do espelho, temendo que pudesse ter morrido. Ou pior: fosse outra pessoa no teclado. Fosse o J. F. Ramalho chegando cansado do trabalho, provocando sustos.

- E se fosse um disfarce do próprio J. F. Ramalho, seu marido de cartório?

Seu único interesse afetivo além das lesmas e caracóis na área da botânica (sua admiração pelas lesmas por tardígrafas na linha preliminar da gosma) era Margô.

La belle e fútil Margô. Todo o seu dia girava em torno daquele instante de micro. Encantada pelas frases curtas, digitadas lentamente, sem ao certo saber se estava ou não, escondida na teia refinada das novas idéias ou coisas. Sem saber a classe em que vivia. No ar e com ela. Devia contrariar a beleza inútil, culpar os programas roteirizados do convívio fácil, pela calamidade noturna de A até Z. Fugia da novela para o micro. Margô definitivamente era sem endereço. Jamais conheceria Margot. Havia tratado disso ao definir que nunca, em tempo algum... E estava viva apenas ligada por um fio, pelo amor de máquina. Por mais que dissesse a si mesma: Margô não era vida! Um bip. Era mais uma das frases insensatas do cotidiano. Ela estaria para sempre perdida dentro da máquina iluminada.