O DEFUNTO NO SACO

Quando ainda trabalhava numa das divisões da Sabesp, no Largo da Saudade, em frente ao cemitério do Saboó, em Santos-SP, ouvi uma história, do tempo dos "Afonsinhos", tenebrosa e, ao mesmo tempo, muito engraçada. Tentando usar a linguagem da época, vou lhes relatar da forma como me contaram.

Era de costume as famílias mais pobres, envergonhadas por não disporem dos recursos necessários, recorrerem a alguns artifícios para transportarem e enterrarem os seus entes queridos.

Após ser velado em casa, parentes e vizinhos colocavam o defunto semi-dobrado dentro de um saco - desses iguais "aos de farinha".

Durante o fusco da madrugada, agarrados às "orelhas do saco", os contratados transportavam o falecido em silêncio. A pé, lá iam eles pelas ruas escuras da cidade até as portas do cemitério mais próximo.

Encostados ao longo do muro caiado, ali ficavam aguardando a chegada da família com o atestado de óbito. Com tudo acertado pela administração, levavam o defunto para enterra-lo numa cova rasa.

Na Avenida Martins Fontes, ao lado do cemitério do Saboó, havia um bar e mercearia de secos e molhados, cujo nome era Bombardeio.

O seu dono, um velho portuga de nome Joaquim Cruz, todos os dias abria as portas do seu estabelecimento por voltas das 04h30min, e ali ficava aguardando a chegada das mercadorias encomendadas por ele.

Aguardando abrir o portal do cemitério, os carregadores de sacos fúnebres, como de costume, quando viam o portuga abrir as portas de sua mercearia, iam para lá e deixavam os sacos do lado de fora, próximos à soleira da porta. Para "matar o tempo", eles adentravam à mercearia, a única aberta nesse horário, e consumiam cachaças, conhaques e cervejas, enfim, "bebiam o defunto".

O portuga sempre reclamava e proibia, com razão, a presença de defuntos mal cheirosos dentro de sua mercearia, mas, nada podia fazer quando chovia. E esse foi o caso.

Lá pelas 05:h00 min, quatro homens fortes, carregando um saco, chegaram a mercearia do portuga. Entraram e puseram "o" do defunto ao lado dos sacos de batatas, cebolas, arroz, feijão, bacalhaus, etc e tal. Pediram bebidas ao portuga e ficaram discutindo sobre o peso do falecido. Bebendo cachaça, eles ficaram aguardando o dia amanhecer para sair. Após algum tempo ali, cada um deles, ao ficar bêbado, pagava o portuga e se retirava de fininho, pondo fé que os outros, ali presentes, guardariam o defunto até família dele chegar. Assim se foram, um-a-um até restar somente um que ficou dormindo no balcão.

Quando o movimento de sua mercearia aumentava, o portuga "expulsava" os bebuns e só atendia aos seus fregueses habituais - gente humilde, moradoras dos morros próximos; Saboó, Balança a Saia, etc.

Lá pelas 06h30min, como acontecia todos os dias, estacionou um pequeno furgão à frente de sua mercearia: era o compadre dele com o seu ajudante, vinham buscar os mantimentos fornecidos pelo portuga para o seu estabelecimento, no Morro da Nova Cintra. Já acostumados com essa rotina, os dois logo começaram a transportar os sacos de mantimentos para o furgão - aqueles já anteriormente separados pelo portuga. Tudo ocorreu dentro do esperado e na tranqüilidade. Após o carregamento, eles sempre tomavam café e trocavam idéias juntos. Quando o pagamento das mercadorias era efetuado, o portuga os despachava e voltava a luta.

Chegando ao Morro da Nova Cintra, o compadre do portuga, que também era portuga (Argh!), estacionou o furgão bem ao lado de sua mercearia, se despediu do ajudante e foi descansar.

Ladrões, que passavam nas imediações, viram aquela moleza a mão: um veículo carregadinho de mercadorias. Ah! Não tiveram dúvidas: "mixaram" a fechadura da porta e, com um ao volante, empurraram o velho furgão pirambeira abaixo, com o motor desligado e em "ponto morto", para não dar “bandeira”.

Por volta das 08h00min, ao abrir as portas da mercearia e dar a falta do furgão, a apavorada esposa do dono deu o alarme:

- Ai meu "Chesus!!" Manuel!! Manuel, acorda!! Roubaram o nosso Fordeco com toda a mercadoria dentro.

Naquele momento, desesperados, todos saíram correndo a procura do bendito furgão.

Como naquela época, não haviam telefones instalados nos morros, a família desceu a pé e, se dirigiu à delegacia mais próxima para registrar uma queixa de furto.

Para a surpresa de todos, ao chegar à delegacia, encontraram o seu velho Furgão, com um pára-lama bem amassado, estacionado no pátio com todas as mercadorias no seu interior. Apesar das pequenas avarias no veículo, a alegria foi geral .

Logo que entraram, o Manuel fez valer que o veículo era de sua propriedade. O delegado perguntou sobre o que o veículo transportava. Disseram: "sacos de batatas, cenouras, cebolas, feijão, bacalhaus, etc".

O delegado os levou a outra sala e, mostrou-lhes um outro saco igual àqueles, e perguntou-lhes se o reconheciam. Após desamarrado o saco, eles averiguaram, horrorizados, a presença do cadáver de um pequeno homem dobrado. De imediato, negaram a sua propriedade.

O delegado então mandou buscar os três meliantes detidos, os que haviam roubado o veículo. Os ladrões não foram reconhecidos pela família. Eles haviam sido interceptados e detidos próximos à delegacia, quando, com o veículo descontrolado, baterem em cheio num poste. Fora os ferimentos resultantes da colisão, os coitados já haviam levado uma tremenda “Coça” para "soltarem a língua". Eles estavam inchados e sangrando muito. Juravam nada terem a ver com o tal saco de defunto.

Ali mesmo, pelo delegado, foi levantada a hipótese de eles terem roubado o furgão para transportar e desovar aquele “presunto” em algum lugar ermo. Coitados, eles apanharam mais ainda. Naquele tempo a polícia não dava mole pra marginais. Não tinha essa de direitos humanos para eles, o pau comia solto de alto a baixo.

Após o preenchimento do BO, o veículo e seu proprietário foram liberados, pois algumas das mercadorias presentes eram perecíveis.

Mais tarde, em passagem pela mercearia de seu compadre Joaquim, quando ele ia começar a relatar a história do furto do seu furgão com a mercadoria, o seu compadre o interrompeu e lhe disse apavorado:

- Ó Manuel, ora pois”, me diga direitinho, antes de qualquer coisa: tu por acaso levastes um saco de defunto que estava aqui? – no que o outro respondeu:

- "Uquê" Joaquim? Como o sempre, eu só levei a mercadoria que estava separada por tu, mas esse negócio de defunto ensacado eu não sei de nada não!!! Mas eu estive na deleg... – Joaquim, coçando a cabeça, interrompeu:

- Olha aqui ó compadre Manuel, a confusão está formada, uma família veio aqui aos prantos, a reclamar o corpo de seu defunto que estava num saco aqui dentro do meu estabelecimento, eles querem enterrá-lo. Eu lhes disse que não sabia de nada, como não sabia mesmo, ora pois, disse que aqui não haviam deixado nada. Eles agora estão brigando lá na administração do cemitério. Há uma queixa lá de que alguém roubou o defunto, isso é grave.

- Ó Joaquim, “ora pois caralhos!! O defunto deve ser o tal que está dentro de um saco de estopa lá na delegacia, o que foi-me mostrado pela autoridade. E agora? Estão presos os três ladrões do Fordeco, tudo por causa desse tal defunto ensacado. Os coitados estão apanhando de porrete e levando a culpa de assassinato. E aí, o que vamos fazer compadre?

- Não me digas isso gajo, quer me dizer então que o tal defunto está na delegacia? Ai meu "Chesus!!"

- Pois é compadre Joaquim, acho que vamos ter que ir até lá soltar o defunto..

- O Manuel, eu acho melhor nós ficarmos fora dessa confusão. Pode até sobrar para nós. Sabes como é "pulícia", né... Os presos são bandidos, não são? Então vamos ficar quietos e deixar eles com a culpa, mais tarde tudo se resolverá por si só.

- Ò Joaquim, e o conserto do nosso Fordeco, quem vai pagar?

- Ó Manuel, mais tu és “Vurro” mesmo, nós, por certo! Ora pois, este é o menor dos nossos problemas, o furgão não está funcionando?! Ora, deixa isso pra lá e vamos ficar de bobo nessa história, que é o melhor...

- Ó Joaquim, e o corpo, a família não vai querer sepultá-lo?

- Ó Manuel, cala-te e pensa bem: o defunto está morto não está?!

- Sim Joaquim, está!!! E dai?

- Que se dane a família, Manuel! Se o defunto está morto, ele bem que pode esperar...

- Hã??

--//--

O restante da história eu não sei, mas tenho em mente o seguinte: nunca vi um defunto que não tenha sido enterrado. E vocês?...Haha!!

ZIBER
Enviado por ZIBER em 17/08/2007
Reeditado em 03/08/2014
Código do texto: T611261
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