O velho porta-retrato (EC)

A velha senhora subiu com dificuldade ao sótão da sua velha casa. Procurava pelo Bonifácio, o seu velho gato de estimação, e única companhia, desde que o marido falecera, anos atrás.
Pisou nalguma coisa que fez barulho de vidro quebrado e, na penumbra do local, distinguiu um velho porta-retrato, que levantou do chão. À luz de um raio de sol que vinha da telha quebrada, viu-se, menina, com o vestido branco que usou na festa do seu début na sociedade. O pai, fazendeiro, fez questão de apresentar a filha, com toda a pompa, para que realizasse um bom casamento, a seguir. Já tinha escolhido o pretendente ideal: o filho do Coronel Fagundes, homem de muitas posses. Estava tudo combinado entre eles, desde que os filhos nasceram.
Lembrava-se bem desse dia. Os velhos têm boa memória para fatos passados...
Ela, muito bonita, sobressaía entre todas. Tinha o encanto da juventude, aliado ao brilho da paixão. Estava apaixonada por um rapaz, empregado do pai, uma paixão alimentada por encontros fortuitos atrás do galpão de feno. Eles sentavam-se ao pôr-do-sol, mãos dadas, a falar do futuro. De como seriam felizes, de quantos filhos teriam, da casinha pintada de amarelo em que viveriam, com flores no peitoril da janela...
E, no dia da festa, ela se arrumara para ele, esperava por ele, queria dançar com ele a valsa dos seus quinze anos.
Ela só não sabia que o pai, desconfiado do namoro, tinha corrido com o rapaz da sua fazenda, nesse dia, sob ameaça de, se voltasse a incomodar a filha, mandar matá-lo.
Esperou por ele, em vão. Em seu lugar, apareceu o jovem escolhido pelas famílias. Com ele se casou e foi uma esposa fiel e dedicada, ao longo dos quase sessenta anos de união com o marido imposto. Mas não foi feliz, não tiveram filhos, nem a casinha pintada de amarelo com flores na janela.
A velha senhora desceu as escadas, com o velho porta-retrato na mão, foi ao jardim e o enterrou no canteiro das rosas. Uma lágrima solitária escorreu pelas rugas do seu rosto. O velho gato Bonifácio, compungido e respeitoso, assistiu ao enterro dos velhos sonhos da velha senhora

 
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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Porta-Retrato.
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Gy Emygdio
Enviado por Gy Emygdio em 09/09/2011
Reeditado em 20/09/2011
Código do texto: T3209378