Antes havia um lar

Antes, quando pensava em sair por aí e caminhar, não tinha pretensão. Desejava ver e sentir; só mais um pouco, desejava avançar. Queria escolher o percurso mais bonito, o mais cheio dos belos arranjos imagináveis. Não importasse fosse mais longo, vê-lo ao menos uma vez, só fizesse sentido assim. Antes também, podia sentir o solo incerto e desfeito pelas intempéries que traspassam sem pedir, somente acontecem, levando a novos adoráveis contornos, curiosos e disformes. Perfeitos neles mesmos.

Aonde andava sentia-se confortada pela presença inexplicável mas amável da natureza em redor. Podia escolher fechar os olhos e ver, e se assim seguia, podia também levantar e arrumar-se, estar à altura do encontro trazido pelo vento aos seus braços. Fosse quem fosse, aquele momento bem gostoso seria o único que valeria a pena esperar. Para assim como a vida, que mostra a força pela beleza e altivez, agradar a todos em volta, pensando que lhe satisfariam na mesma grandeza que pensava sentir-se acolhida. Era o que queria mais que tudo. Continuar recebendo todas as bonitas faces de uma vida mesma, com o imperativo e definitivo reinar de satisfação.

Teve isso como objetivo durante muito tempo, somente como rumo a vontade dos pés apoiados na relva genuína da pureza. Assim como no princípio, nenhum trauma. De modo que o entendimento das suas motivações nunca fez sentido; nunca precisou, nem sentiu falta. O que buscava era seguir em frente. Bem simples. Era assim no princípio.

E por viver com alegria, por amor, verdadeiro amor, ofereceu-se. Do engano, cometeu o pecado de enroupar-se e procurar abrigo em formas consolidadas pela ausência da luz. Até ali, os sorrisos eram honestos e espontâneos, as promessas sobravam, o carinho confortava o espírito e o gozo satisfazia.

Depois, já não pôde mais ver; o começo tornara-se distante e usou as mãos não mais para abraçar, mas para fazer valer a máxima da farsa. A isso chamou perfeccionismo, e aceitou a sedução de uma trama gravada no frio que não mais acabaria. Estava deixada em lugar calmo, envolto em mesmices que prenunciavam a desolação; outros veriam como um lar perfeito, ambiente controlado e por isso próspero para repetir os erros dos demais. Afinal, só àquilo concebiam; nenhuma causa exterior era bem-vinda e os seres ali padeciam congelados, inertes à esperança e ao próprio amor. Para ela, tudo passara a estar fora do lugar, mas insistia em organizar à sua triste maneira as pessoas deslocadas que julgava ter. Sempre assim, arrumava tudo em redor, mas dentro de si não conseguia ordenar nada.

Bem dizer, a apropriação de algo que não conquistou se traduz para tormento. E pensando, viu a possibilidade de corrigir as falhas criadas e imaginou-se a martelar; sem boas mãos não pôde deixar de esconjurar os que não se importavam, que estavam ao seu lado e não se importavam. À vista, nenhuma mão estendida, mas não entendia... Pedia ajuda silenciosamente e via mal a naturalidade como a deixavam. Bem falar, olhavam para ela sim, mas paravam na imagem habitada por caixas fechadas e bem embrulhadas para ninguém chegar perto. Não se tinha dado conta, mas era isso. Mostrava-se disponível mas sem quem pudesse carregar tudo o que tinha.

Uma vez passou perto, foi no fim do verão, quando tudo podia ser belo e estava virado; no céu mirou os olhos para ver um único pássaro. Até vislumbrou aonde pousaria, mas desistiu de tentar aquela sensação. Nenhum esforço mais passava por seus atos. Suas potências não mais agiam. Quem sabe lembrar-se-ia de Eva no Jardim, ela tinha um paraíso também; tendo cometido o erro de pensar haver uma grama mais verde, simplesmente por deixar-se molestar com a vil ideia de que para ser livre precisaria virar as costas para quem a acolhia, deu-se conta da sua miséria e, não esmoreceu de fora para dentro, não foi o empobrecimento moral da sociedade que lhe arrancou o que era bom, afinal já vivia em perfeita justiça, foi a real impossibilidade de ver grandeza nas suas atitudes, e permitir-se pensar que poderia ser conduzida de oportunas mentiras e ausência de ações a um mundo forjado às suas vontades. Foi vencida de dentro para fora, quando a corrupção da sua inteligência permitiu germinar a semente da ignorância como um vírus a replicar, que se agarra, suja, consome as forças e lhe preenche com contagiosa secreção, que faz um ser forte prevenir-se e enclausurar-se em redoma onde ordinários não entram.

Do céu acima restou saber que a linha do horizonte era grande, de uma dimensão inabarcável para as suas pernas mas condizente com o seu desamparo; quanto mais se apressava, mais para trás ficava. Notou que as faces buscadas longe ficavam. Viu que não se esforçavam para se irem, somente olhavam e sorriam para o chão que dela escapava. Era somente por constatarem o óbvio, como numa brincadeira de se esconder, que sorriam com a paradoxal ironia da fácil vitória camuflada com a ardorosa dificuldade dos falsos atos.

O tão sonhado dia estava por vir, mas estaria ali para sempre? É melhor que estivesse sim; a vida seguia desprovida de sentido e qualquer coisa seria interpretada como um presente. Mas deixou pra lá, ultimamente os sonhos estavam difíceis e pensou ser só mais um delírio de uma bonequinha com um pedaço por arrumar. Mas nem isso ela sabia, costumava chamar-lhe devaneio. E então soube que o seu pecado era maior, e concluiu o que teria como punição.

“Inventar, deve-se admitir humildemente, não consiste em criar algo do nada, mas sim do caos.” – Mary Shelley apresentando o seu Frankenstein.

mateusveiga@yahoo.com.br

MATEUS VEIGA
Enviado por MATEUS VEIGA em 05/11/2017
Código do texto: T6163295
Classificação de conteúdo: seguro