A arte da persistência

A vida é a arte da escolha. Você é fruto de suas decisões. Encruzilhadas e caminhos que tomamos. Acreditamos, desde o princípio, que há um processo aditivo de formação da nossa pessoa. Explico: acreditamos que, na infância somos uma pessoa com determinadas características. Ao longo da vida somos submetidos a situações em que temos que tomar decisões, escolher que atitude tomaremos a fim de lidar com aquela situação. Cada decisão nos leva a novas situações e cada uma dessas novas situações agrega novas experiências à nossa pessoa. De pouco em pouco, vamos assim construindo nosso caráter continuamente até nossa morte. Isso é o senso comum.

Duas coisas, porém, são esquecidas com freqüência. Ambas contribuem para desvalidar a idéia citada acima, pois nos ajudam a ver o outro lado da construção de uma pessoa. Essas duas idéias lidam com o outro lado da moeda. Enquanto a idéia acima lida com o que acontece, as que vamos falar daqui pra frente lidam com o que poderia acontecer. Ou seja, enquanto o senso comum lida com fatos, as idéias a seguir lidam com potenciais.

Potencial basicamente é aquilo que poderia ter sido e tornou-se ou não fato. Tudo que não é fato é potencial. Aplicando essa idéia à nossa formação, no início de nossas vidas somos um potencial infinito. Nada fizemos ainda e tudo podemos fazer, portanto temos potencial infinito, isto é, limitado pelo nosso tempo de vida. Progredindo na vida de uma pessoa, ela faz decisões e, a cada decisão, agrega experiência. Decisão, porém, implica em escolha, ou seja, em eliminar todas as opções existentes exceto uma. Frente a uma decisão, portanto, a pessoa tem diversas opções, cada uma com um determinado potencial, e o que ela faz é descartar a maioria desse potencial para se focar em uma pequena parte – por exemplo, se a decisão consistir em mais de duas alternativas.

Há, então, em cada escolha, um desperdício de potencial. Algo que poderíamos vir a ser é sumariamente – embora quase sempre não facilmente – descartado em prol de outro potencial. E assim ocorre sucessivamente. Suponhamos, usando uma metáfora consagrada, que uma estrada se divida em duas a cada quilômetro. Ao final do primeiro quilômetro serão duas estradas; no próximo, quatro estradas; no terceiro quilômetro, oito estradas; e assim sucessivamente. Digamos que o começo dessa estrada é nosso nascimento e o passar do tempo é nossa caminhada por ela. A cada bifurcação, podemos escolher apenas uma estrada. Ao final de, digamos, dez quilômetros, haverá 1024 estradas, e nós estaremos em apenas uma.

O conjunto de todas as estradas, então, é nosso potencial inicial, tudo que poderíamos vir a ser. Percebe-se que a cada quilômetro caminhado, temos parte em uma parcela menor desse potencial, pois o número das estradas cresce, enquanto o caminho que escolhemos é apenas um. Obviamente esse exemplo é simplista demais para retratar a complexidade do que está sendo dito, mas ilustra bem a idéia. Ao invés de adicionarmos experiências à nossas personalidades, o que fazemos é descartar potenciais para nos identificarmos. E mais: com o passar do tempo somos cada vez menos, não cada vez mais, como se pensa. Quanto mais o tempo passa, o que somos diminui relativamente ao que poderíamos ter sido.

É somente com esta idéia em mente, e não com o senso comum apresentado no início, que entendemos sonhos, esperanças e frustrações. Pensamos em potenciais todo o tempo, nossos desejos e tudo aquilo que almejamos ser. Ora, se consideramos a possibilidade de sonhos se tornarem reais, é porque perseguimos algum potencial, é porque desejamos transformar nossos sonhos em realidade. Acontece que muitas vezes eles não se tornam reais. Muitas vezes a vida nos desvia de nossos objetivos e nos leva por outros caminhos, por outra estrada.

De quem, então, é a culpa? Retomando ao início, “o que somos é fruto das escolhas que fazemos”, portanto a culpa é nossa por sermos o que somos e, por não sermos o que poderíamos ter sido. Mas, a culpa é realmente nossa? É nossa vontade escolher caminhos errados de forma que acabamos frustrados? Se a vida é a arte da escolha, deve-se culpar aqueles que não possuem o dom para tal arte e depositar toda responsabilidade sobre essas pessoas?

Aqui entra a segunda idéia que foi dita que seria exposta: a idéia de que nem sempre somos nós que escolhemos. É uma idéia simples. Supondo que nosso destino, e quem nós somos, dependesse somente de nossas escolhas, haveria alguém no mundo que tomaria as decisões erradas propositalmente? Alguém que diria “Decidi não seguir o caminho que eu sonho em seguir, mesmo sabendo que o posso faze-lo”? Sabemos que não é generalização no mundo, mas fica claro a idéia de que, se a escolha fosse livre, frustração, decepção e outras, seriam palavras com as quais não teríamos tanta intimidade.

Há, então, algo que nos impede de tomar as decisões claramente. Não é o objetivo aqui discernir de onde exatamente vem essa força, mas apenas atestar que ela existe. Apenas para citar algumas dessas forças: medo, piedade, vontade alheia que contrarie a nossa, falta de preparo, vergonha. Para cada situação existe uma força que influi em nossa escolha e seria perda de tempo citar uma situação para cada caso citado acima. Mas creio que uma reflexão superficial seja suficiente para concluirmos que, na grande maioria das vezes, nossa escolha, ou seja, nossa decisão de que potencial será jogado fora, não é feita completamente por nós mesmos.

A vida, então, constitui-se de uma eterna disputa entre as escolhas que nós pretendemos fazer e as que nos são permitida fazermos. Vivemos, então, sonhando em sermos algo que constantemente estamos deixando de ser. Sempre. Sempre almejamos algo que, aparentemente, nós mesmos não nos deixamos trilhar o caminho certo até este objetivo. E é por essa aparência de auto-limitação que a culpa constantemente recai sobre aquele que foi vítima da má escolha. Quantas vezes desejamos algo que, por algum motivo, não atingimos? De quem poderia ser a culpa, além de nossa?

Viver com certeza é uma arte. Em determinados momentos ela pode sim ser a arte da escolha, mas antes ela deve ser a arte da adaptação e, acima de tudo, a arte da persistência.