É preciso envelhecer o olhar...
À Kátia Simone
É preciso envelhecer o olhar...
Rasgar os sonhos de papel - machê,
Ignorar os amores de madrugadas ébrias,
Desfolhar os lírios de reminiscências tardias,
Acertar os débitos com os credores do tempo.
É preciso envelhecer o olhar...
Lavar o rosto de velhos carnavais,
Guardar o livro que já não pode ser lido,
Retrair anseios que consomem versos,
Vestir o terno já todo encardido.
É preciso envelhecer o olhar...
Amar a quietude do não-desejar;
Assistir a vida como um filme antigo,
Negar a rosa, amar o espinho,
Abrir as portas do desconhecido.
É preciso envelhecer o olhar...
Banhar-se em sangue coagulado,
Fechar o baú de velhas tormentas,
Cobrir a Vênus que enfeita o quarto,
Fazer do silêncio uma forma de perdão.
É preciso envelhecer o olhar...
Rasgar o manuscrito nunca publicado,
Calar o clamor de uma esperança estéril,
Sorver a dor de uma história sem razão,
Bailar com a morte a derradeira sinfonia.