e assim dormi com ela...

 

são três horas da manhã

não durmo

amanhã, mais logo, é preciso

estar cedo no trabalho na casa no emprego na vida

preciso de dormir

porque a escola os alunos a filha a vida...

vou ficar a dormir?

vou ficar a tentar descansar?

vou-me preparar para o dia de amanhã?

para viver o que ainda há-de vir?

vou perder os poemas que se escreveram súbito no meu ser

dentro do meu cérebro que me arde

dentro das entranhas na pele nos membros e no sangue?

NÃO.

não vou perdê-los.

não vou perder a vida que tenho pra viver.

vou pegar na caneta com que escrevo

e registar os farrapos de poemas que encontrar

dos poemas que nasceram inteiros feitos na cabeça

no meu corpo nas entranhas

e pô-los no papel

como quem faz amor vivendo tudo duma vez morrendo

pra criar

porque afinal, eu não preciso de dormir.

preciso de viver

comunicar

e por isso lanço poemas no papel

como sémen

por prazer

para dar prazer

para o sentir e o sentir sentir

e se por sorte prazer ou felicidade

se por calendário

encontrarem ventre fecundo terra disponível

um muro uma calçada uma greta num chão duro

numa pedra

há-de florir o filho a filha o fruto do amor

ao menos uma FLOR

a povoar o mundo de mil cores

!!!

que louca ilusão!?

que feliz paixão!?

e assim dormi com ela

co'a poesia
Marc Chagall - The Village

 

Zé Sem Sono

24 de Maio de 1990
RL - zeraga - 20081112