poesia se fuma, é fumaça?
"Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era."
(Carlos Drummond de Andrade - Procura da Poesia)
poesia?
o cidadão pergunta o que seja.
talvez esteja
na lata de cerveja.
mas isto é uma rima, poesia não é.
poesia não sei se se fuma,
é fumaça no dentro da gente,
é graça que nunca se sente,
é papel, é tesoura,
é fumaça.
a terra em que dorme a semente
abundantemente, o fruto da terra
que nasce à primeira
chuva de maio,
flor é,
poesia não é.
o imenso presépio
de gente-balbúrdia
que cruza essas ruas afora,
cada um coa leveza e co peso
equilibra nos ombros
tamanha
uma carga de vida,
— às vez a guria tropeça
ao pé duma pedra
exatamente, — mas tão-exatamante e precisamente onde drummond tropeçara,
e essa carga de vida
tamanha
que aderrama da boca
que rira bonita
muito embora encabulada,
um jeito tímido de uva no cacho,
isso... isso é só a vida,
poesia não dá.
dá fruta na rama,
no quintal dá mandioca,
poesia não dá.
o pensamento de que o universo é cilíndrico
ou que seja
achatado ao infinito,
o tamanho caos dos universos esféricos,
a teologia cosmológica das abstrações científicas,
poemas bobos em folhas avulsas,
poesia só entende sinais.
a grande esperança que víamos
nos sorrisos de criança,
a noiva virgem
que usara longos véus para o tempo das núpcias,
a outra
que dançara a dança do ventre,
a dança da chuva
entre os selvagens na mata,
o crepúsculo para os monges,
o deus sol
e a lua candura
que coa sua brancura fria e pura
vem levar o moribundo
nas noites de sexta,
talvez sejam microcontos
gravados entremeio o ser
e a solidão,
poesia nem é canção.
o estudo perfeito da flor,
por fora e por dentro,
sugando-lhe o néctar, sugando-lhe a essência,
entrevendo-se o beija-flor
ou então borboleta,
seria um estudo anatômico,
poesia foge.
o sapatinho cor-de-rosa da menina
abandonado na grama
ao jardim,
toda essa solidão casta e branca
entre a noite e o alvorecer,
aquele pedaço de sonhos
cavando uma cova
no outono-cristal,
a brisa,
talvez poesia fosse a menina,
a paisagem não é.
essa lembrança da gente
que às vezes se afunda no tempo,
que chega até onde só a gente podia um dia chegar,
enche o olho,
enche a alma,
aderrama talvez uma lágrima esquiva,
uma vontade de ser deus
fazendo da vida
só a lembrança, viver num íntimo céu entre os anjos e as fadas,
um pomar na terra branca das nuvens,
seria no máximo belo
se em versos mais apurados,
poesia seria mais mínimo,
comprimida novelo de si.
o travesseiro de noite,
o travesseiro de pena
que guarda malfeito
de bruxa malvada,
seria ainda mais exatamente um fato verídico,
poesia não dorme
nem sonha.
talvez seja a fúria,
a força,
a forma, a paz,
talvez fosse o rapaz
que passara na rua,
não sei,
poesia é nua.
não é sino
nem de natal,
nem por ventura é o retorno dos mortos,
não é nem este coração,
coração imenso
que se aderrama pelo mundo
e que agrega as carnes
do fruto da terra
e faz doce no sol, nem o amor incontido,
o rascunho deste poema é em vão,
o que se escreve
é só escritura,
poesia
é tablatura,
violão sem corda alguma.
e ainda perguntas que seja essa louca?
talvez esteja na boca
quando esfuma a fumaça
do cigarro de palha.
talvez nem haja poesia.
talvez o espelho se quebre
e a imagem corroa.
a poesia se menciona a si própria
e responde a suas próprias perguntas.