autorretrato

a calça jeans,

velha, usada, desbotada,

larga na cintura,

cai dos flancos despegada, que sem cinto,

e a cueca azul escura

deixa as bordas

desenhando uns ossos duros,

‘branquiçados,

farelentos,

ossos fracos desjeitados

e suspensos

pelas ruas de cascalho, quando é noite,

e vão sozinhos;

tênis sujo, marca boa,

mas que há muito desusado,

cambaleia tropeçando,

mas que segue mesmo cambo,

e às vezes pára,

que se cansa, sem destino que se ir;

os pés doendo,

os pés branquinhos caminhando,

que sem dono, que sem mando,

errabundos

que sem lar;

camisa preta de algodão,

minha barriga de lombriga,

braços finos, mãos vazias,

gestos tênues

vão sozinhos,

vão consigo a conversar;

essa barba que crescia

desde novo,

que co tempo fez-se cheia, essa barba que estendia

do menino desgonçado,

se o menino que morria,

era tão cedo,

entristecia com o mundo,

o menino fez-se homem, como a barba que cresceu;

cabelo fino,

cabelo feio mas comprido,

descuidado,

castanho claro — entre amarelos vermelhados,

cabelo fraco quebradiço,

que queimado,

que caindo,

e quando um dia há de acabar;

cabelo liso;

os olhos tristes,

não que queira, sempre o foram,

sempre longes e perdidos,

mas que puros

‘castanhados

com olheiras dessa insônia

em quando a noite

se anublou;

os olhos tristes, meio esquivos,

meio fundos,

meio lidos,

meio ausentes de si mesmos,

esses olhos

que eram meus;

meus anéis

enferrujados, crucifixos pendurados

no pescoço,

minha crença que eu perdi;

meu retrato?, quem pintara

se esfumou,

quem eu era eu já não sou,

se o que digo,

a parecença que me penso, se isso tudo

é um pensamento, um tempo lento,

tempo lento na memória

que avoou.

(27/07/2006)