FRAGMENTOS DA "POESIA DE ALCOVA"

(obra em gestação desde 2014)

– Pena que o tempo venha a se exaurir nos caminhos da possessão e da insegurança. E este é o patíbulo dos amantes que disputam o ninho das descobertas.

– Nas labaredas passeiam olhos úmidos e boca pastosa. Os rostos ardem. O espelho funde o corpo de reflexos. Pálpebras se fecham para além do gozo.

– O amar por acaso tem sexualidade definida? Este estado de pureza não discute diferenças de côncavo e convexo. Talvez seja por isso que se diz ao correr das horas que anjo não tem sexo.

– De cada um segundo os seus desígnios, a cada um segundo o seu prazer e gozo. Estar no mundo é equilibrar-se no fio da navalha.

– Quando chegares exausta haverá algum lugar na horizontal onde seja possível jogar as carcaças ao ócio. De tanto serem pisoteados, é o que a vida tem a oferecer aos corpos cansados da vertical.

– Possuidor do vício da Poética e da compulsão pela convivência com o poema sou um condenado com alguma felicidade nos bolsos.

– O corpo espreguiça memórias noturnas, e com sono, abro a porta do quarto. O sol está dentro de mim e a manhã penetra os poros.

– Ah, amada! Nada como estar assim, furtivo como uma sombra entre sorrisos e o amor escoando, vinho entre os dedos entrelaçados.

– Black, o angorá, sai em disparada, tentando pegar Poliana, uma persa linda de três anos e também castrada. É bem assim a vida: um jogo de faz-de-conta.

– O coração é sempre o mesmo em qualquer época ou idade. Usufrui de autonomias à revelia do pensar solilóquios de cismas e vontades. Ele é em verdade o dono da vida.

– A vida não perdoa os serenos de coração. Viver é ser capaz de ser um flete, veloz que nem o vento ou lento que nem uma lesma, mesmo quando se derrama sal sobre o inofensivo bichinho.

– Há muito sinto a mesma cena: soluço de sono e mar batendo o rosto na praia. E a vontade de dormir com ela no movimento das ondas. Inexoravelmente.

– Subtraio-me a cada vez que me funde a cuca. Traduz-se o verso movido a emoção. Trago uma flor cerrada nos dentes.

– A carruagem tem cavalos alados e monto o destino como um cata-vento de açúcares. Espero a chave de teus pudores para que me craves a emoção de prata.

– Tua boca suspira o verbo amar e o teu canto será sempre maior que nós.

– Estou cativo. E o desejo é um sino num cordel aparente de silêncios.

– O sol era uma escova tímida subindo e descendo sobre o ventre do vale. O grande púbis ficara úmido. Era imensamente azul o amanhã, sob um céu de chumbo. Começávamos a escrever nossas memórias.

– Estrelas libertas saltitam escondidas no céu-da-boca. Navega-se a emoção de ter os cabelos, a roupa em desalinho. Assim, toques consentidos. Nos corpos a soma de tudo.

– Penetra-me, diz a voz do fogo. E seu púbis reclama. Arde a lareira e seus pelos. Cospe, cospe mais! O centro do mundo gravita grávido, prenhez de fogo e braços. Bocas são pontas de aço enquanto labaredas dançam.

– Fermenta o mosto em suas bagas ao curso mínimo do tempo, o único mago verdadeiro. O mar beija o caos, lúdico e humano, entre cochichos e cansaços. O hotelzinho portuário era um barco ancorado, batendo, batendo.

– Teus alvos dentes mordem maçãs, num ritual de vestal e rainha. E a festa está completa. Há cansaços demais neste zelo de nos sabermos prontos. É um jogo de xadrez a trapaça de viver.

– A amada se constrói com um pouco de sal e chuva. E o corpo é um barco, que perdeu a vela.

– Mãos: jeito jeitoso do amar. Corpo: jungido jogado pluma no ar. Peito pulsante, ritual ritmado. Cerveja, suor no justo gemido. Nada ajustado

neste amor de amar.

– Amada, antes que queime o corpo, passa-me o bronzeador! Nem tão perto das chaves, nem tão morto, porque esconderijos não queimam a olhos nus. E o amar bate verdades. Anjos, arcanjos rebatem os esconderijos do medo.

– Dobras o guardanapo como quem dobra a vela de um barco. Dobras a ilusão de estarmos juntos – timoneiros – proa dos caminhos. Dobras a mim com este teu jeito e me enrolas neste suado lençol onde o cálice é pequeno. Vinho escoado de ti e de mim.

– Sussurro dos pardais quando a tarde morre. Âncora dos sonhos de futuro,

mão do estranho que lhe mexe no ninho virgem.

– Íntima intimidade, fusão de sangue intimidada, inconclusa ou exangue. Imersa, parece que ruis, vencida, rindo das mãos sexuadas.

– Inusitado demônio que nos viaja. Centelha nos lábios, raízes enlaçadas roçando o sensitivo cerne. O mar vai batendo escolhos, batendo sobre pedras e musgo. Aqui a vida, efêmera como um raio, ao pé do lugar em que estamos. Em qualquer lugar.

– E o imaginário vai fazendo nascer a concretude do sêmen, que se perde em meio à água da torneira. Só fica o espelho baço, o mesmo cansaço e tua boca carmim, rindo de mim.

– Selvagens ginetes adejam alados no jogo da vida. Naquele minúsculo retiro, entre sombras e cortinas, corpos nus falam mais que mil palavras.

– O poeta arranha-se e na epiderme o amor fica. Surdos e cegos consomem-se os amantes. É áspero o traço trágico do ciúme. E na epiderme o amor resiste. Ali reside sua cáustica clausura. Amor tem a singular dimensão do medo.

– Talvez agora possa dormir livre dos suores notívagos que ainda empapam a fronte e o pudor. Volto a colocar a camisa do pijama e guardo a caneta – a incorrigível delatora. Corre, ao adormecer, um rio de nádegas, cios, suor e sumos.

– No decorrer das esquinas desejei copular a felicidade, mercê de tu seres a indesejada sombra. E dói o calo de viver. Assim me fino – mofino – na moldura da palavra. Um insólito tolo costurado ao vazio das esperas.

– A lágrima fala por si em seu mutismo, mesmo sendo o reverso da falante alegria. E eis que chega a amada louca, cega de ciúmes, ciente de amar o Nada e botando a boca no mundo. Pobre do cliente do divã do psicanalista.

– O poeta faz do poema a clava da gratidão à dádiva do corpo, mesmo que reste a sensação de sede na garganta e acesas retinas para um novo alumbramento. E os lençóis testemunhais cobrem pudores sobre o gozo, nódoas desfalecidas.

– Enche os pulmões de desejo que eu vou chegar com fome. Por vezes, confesso, sou antropofágico. Faz algum mal ser de cama e mesa?

– Quão impertinente é este gozoso mistério do amar e seus inusitados jogos! O poema é apenas um deles, em que a palavra é flor e gume.

– Saudade do corpo é aquilo que toma o coração e paira solerte dentro de nós. No poeta vai além: semelha-se ao espinho debaixo da unha, justo na mão que tatua a ausência. E no ventre dói desesperadamente.

– No amar, uma porção é do mundo dos fatos, a outra é farsa que se poderá construir como conveniente verdade. Talvez porque não há como viver-se sem a túnica alegórica da fantasia.

– A entrega do corpo é prelúdio para o dia que se avizinha com promessas de alguma possível permanência. E o poema vem com o sortido tempero de quero mais.

– A paixão dá-me a precisa confidência: o canto tormentoso de sua possessa e estridente fala. E a inquietude faz o poema e amanhece doce o dia – que é este o único festim de futuros.

– E se morre de vontade de pecar a mais não poder, enquanto ainda há tempo, gozo e fruição. Porque nestes domínios da fome do corpo, mais que tudo, ninguém é de ferro.

– Prefiro morrer a cada vez que o amor vem, porque ele me salva do devir. E o dia seguinte guarda o perfume da flor. Que venha o que tiver de vir: o Absoluto a me ampara no que sou de criatura. E me transcende para além do nada que realmente sou.

– É bom quando alguém nos alisa espontaneamente o pelo. Há um felino manhoso dentro de nós, querendo mais e sempre, enquanto der e fizer bem aos humores. Nem sempre aos costumes.

– É sempre assim: o amor fala pelos poros. E a um dos polos, especialmente à mulher que deseja alguém para o aconchego do vinho e dos lençóis, no tímido sol que escorre na vidraça e no coração choroso de lembranças nunca apagadas.

– O que seria de nós sem esta centelha elétrica a que os neurônios assistem e se regozijam? Ah, o corpo e seus insondáveis mistérios!

– Se ainda restar dois dedos de trago na garrafa, deita-me o vinho, assim devagar, entornando o mosto das sobras num canto da boca. Ouço vozes amassando o pão adormecido.

– O caminho não é só de quem abre a trilha. Demo-nos as mãos. O entardecer fica mais bonito de mãos dadas. Concelebremos. Alcança uma taça de champanha. Derrama-me.

– A Poesia é o lençol sobre o corpo necessitado de tatuagens. Por vezes, o poema é o coito não concedido. – Abre-me o chacra em conchavo e me concede a penetração, ó Dama irrevelada, exclama o alter ego...

– Corre um novo rio ágil sobre águas do curso antigo. O beijo de cansaços batiza o corpo lânguido. Hálitos. O poema é a tua voz serenizada.

– Por fora, o espelho deleita o rijo ventre à falta de. Motivos estremecem peito e torso. Dor ladeira abaixo, que o amar faça o ápice e aplaque a dor no dente. E ele é esganado: só come o que gosta.

– Intimidade de saber-se bicho no cio, fêmea, sem perder a inocência. Tudo mais abaixo, à espera da onda que me torna cega, a ponto de não conseguir ver nem mais o peixe. Sereia em gozo de tempo e coito.

– O corpo dirá se gostas e se ficarei teso em pousar-te. Boca ocupada com o hálito das palavras. De memória, a celebração. Ocupa o sangue e foge no vulto das ausências. O poema louva. Bênçãos!

– A língua de fogo da possessão e da dúvida sempre me chamusca e fere. Todavia, o nosso amar não nasceu para o mal, que pode destruir até os fantasminhas das costumeiras ausências a que nos damos ao luxo de revelar. E, por fim, que tal a gente se esconder um dentro do outro?

– Dói-me o corpo que em mim não pensa. E a dor exaurida no ventre varre tudo que antes parecia presença. Nem a poética sustenta. Abraça-a e a come, sem falar nada.

– Chegaste a tempo: quando a ausência ansiava em mim os seus estragos. O aberto voo da ágil mariposa que agita o mistério fogoso: vórtice entre coxas.

– O que fazer para além dos poemas gozosos, que nascem prematuros ao gesto gráfico?