Dor revisitada ( republicação)

Foi uma cara de gárgula, máscara sobre tecido, tenso da face esgarçada, que atirei contra tudo. Infenso a qualquer sorriso sentia dor refratária, de boticão sobre ciso; como se fosse um pendor ter sangue sempre em fervura tentando abrir a boca, por meio de queimadura mesmo que ficasse oca com a palavra em clausura e sem língua que a falasse, esturricada à nervura, por baixo calão sem classe. Tinha cabeça em masmorra, como pedra contorcida, mas antes que o sangue escorra, desejo falar da vida. Embaixo daquela gárgula, tinha cara barbeada, pêlos na pia ensebada, e no espelho um canalha. Então a dor era um vício, de firmeza escarmentada, quase virara um ofício para varar madrugada. Capaz de moer a carne, como um câncer mói textura, e a moenda mói a cana para virar rapadura. Agora estou no bagaço, como disforme emplastro, meu sangue deixa um rastro que sigo como a um regaço no sentido da nascente. Mas caio em queda livre em funduras de calibre, mas nos braços de ninguém. Dói nos lábios e entranhas, nos dentes em extrusão, dói nos vícios e nas manhas, dor expressa em convulsão.

Dor, consumptiva, doida, sequer de si condoída, para o pássaro alçapão, constante em sua construção. Em máquina de moer carne, para esfacelar completo, de onde sairá cuspida, como esputo de um tísico. Dor indisposta ao gozo, em fuga se põe adiante, jamais concede repouso, não quer ser extasiante. Descontrair dor tamanha, sem fingimento ou ópio, nem usar de artimanha da dor do maior opróbrio, é abrir mão da ubiqüidade das garras que o demo tem, sem com isso ser vaidoso, sem com isso usar ninguém. Pois sem o diabo, incréu, na certa eu não seria enfermo, foi com dor dos meus infernos que escrevi algo no céu. Faço agora um exorcismo da dor que o demo traz, não foi mágica zás-trás, que me trouxe belo trismo. Mesmo quando garatujo, é por dor ser mitigada, coração no peito sujo, minha alma ensangüentada. Então amo o feio e o belo, amo íncubo fustigado, com vara verde ou marmelo; compaixão merece o gado marcado a ferro e fogo; entre bois também meu berro muge, mas não faz mais rogo, meu coração em desterro bate no peito de novo. Meu mediastino infla, o demo não mais me insufla, nem significa estorvo; na alma o estrago foi feito, não dói mais como doía,

a cicatriz não é defeito engrazado com fio guia, dói tão-só na aparência, em luz incruenta e fria, luz que queima minha essência, mais que a dor de epifania. Deus, então, também espere: se em disputa minha alma, ao Demo clama por calma, espere que o diabo erre, sou apenas um mortal, sob quem dor infligida veio do bem e do mal para me ceifar a vida. Enquanto a vida é ceifada, como feno para eqüinos, dionisíaco, conturbo, do mal toda empreitada; do equilíbrio de uma corda, bamboleio sem estar ébrio, entrego a Apolo as rédeas do cavalo em disparada; rumo ao sol como miragem, de tudo que fiz de mim, das virtudes e dos vícios, sinto-me livre enfim. Então, chego ao princípio, sem abismo, não há fundura, sou mesmo cavalgadura, um centauro puro e ímpio. É no corpo que cavalgo, de quadrúpede abatido que sou homem de respaldo à alma do eu dividido. Cindido, tenho dois braços, aos dois anulo em ação, com os dedos assino distrato, é só meu, meu coração.

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 28/12/2008
Código do texto: T1355862
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