CANÇÕES CEGAS E AFIADAS*

Minha escrita é canção cega

Ela foge da poesia exata,

Aquela feito pérola rara e de luz própria.

É só letra solitária,

vagabunda, analfabeta, popularesca.

Minha escrita é buraco negro

que a tudo absorve,

distorce, contorce, disfarça, amalgama.

É só letra sem música, incompleta, camaleoa.

Entretanto, afiada,

é captora de vida/luz/emoções/aflições.

Plena de destino e de sentido

almeja com sua ponta certeira

abrir rasgos na névoa,

dissipar o obscuro e ser reflexiva.

Contrária a si mesma ela é torta e reta

capenga e atleta.

É um alerta e um sonífero.

É nódoa e cândida.

É quase nada: solitária, miúda, vadia.

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SEGREDO DO FLORIR

me ensine a ser determinado como você

a deixar de lado

a besta herança macho de mando

quero me somar a ti que tem o dom maior que a ciência

toda a sapiência dentro de si.

você é água doce de bica de pé de morro

rio, montanha, abismo

toda a alegria/sabedoria secreta que fascina

magia/energia/entranhas de parir

você é meu secreto, meu descoberto, meu acerto e meu incerto

me abra seu segredo

quero ter ver florir

transborde em mim

primavera

flagrância

toda exuberância yin

pra derreter aço/ferro/cimento

Vem mina da minha alegria

purifica-me faça feliz

mulher azuluz

raíz

brote de dentro de mim

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ALBÚM DE RETRATOS

Meu álbum de retratos

não guarda só feridas e dissabores

as lembranças arquivadas

são também como seus beijos em minha boca

marcados como mordidas do tempo

como o cheiro de chuva em dia quente

mas a palavra NÃO também gravou sua faca

marcou a alma, fazendo seus talhos

Minha vida não é livro raro

mas arquivo aberto e retidão de trem

todos as letras sobre a mesa

procuras e achados, amores, filhos e segredos

A limpidez das águas lava todas as feridas

não há vida sem risco

vitória sem luta

labuta leve

o resultado da paz é o perigo, amigo

Minhas vitórias precederam derrotas

Vi o mal comer sangue,

a mão forte moldar ferro, desenhar gaiolas

fundir de cimento as asas da senhora liberdade.

A boca ferina comer o pão e a terra do homem

roubar-lhe as portas e as janelas

mas não o grito e o revôo dos pássaros.

Minha geração teve que reinventar a luz

correr perigo e espalhar sementes.

Meu álbum de retratos

é um folhetim barato

escrito de trás para frente

Enfim: um nó desfeito, um alívio no peito

um arquivo revirado

um filme da mente.

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EM TODAS A ERAS

Corre o meu sangue

na cidade

coagulando em todos os cortes/cores/dores

Forte

é parcela de todas as raças

índio, hindu, bantu, cristão e muçulmano.

É de canudos, palmares, lampião

cigano, hippie, beatinik, vagabundo

É de outra era

profeta, revolucionário, anarquista

amante, romântico, brasileiro

Corre cego, ácido, incerto

deserto

sob a pele sufi

na mata, na guerra

poeta

da civilização-metal

entre construções, concreto, aço e aflição

Corre meu sangue

na cidade

coagulando em todos os cortes/cores/dores

forte

destilando palpitações

Entre lutas brutas

Corre coeso

entre o fel/veneno

irrigando o coração

pronto a eclodir

entre a barra

o peso de cada dia

Vai assim transitório e volátil a fluir

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DESTILANDO VIDAS

Comi tirania

feito letra miúda nesta vida.

Ofuscado pelos holofotes do medo

reguei tudo na horta do segredo

no fundo do quintal.

Dancei entre serpentes:

fogo/faca/espinho.

Dormi no ninho das águia rapinas,

erva daninha renasci da ferida,

entre pedras/vidros de ponta/sabres e ruínas.

Destilei vida de infectos rios,

matei a sede na sabedoria inculta

e vivi

entre ruidosos covardes delatando sirenes.

Sangue,

semente guerrilheira que não brotou

Como um cego tateei luz

como um tauregue eu quis água

deserto eu me vi

assim que eu me criei aprendendo história nas ruas de nossos brasis

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PONTO CARDEAL

Você é minha vida,

meu café com leite,

meu pão de cada dia.

Combustível do meu ser.

Contigo eu encaro qualquer uma,

sem você sou só um resumo,

um rascunho impressionista.

Você me joga no mundo

e põe os inimigos pra correr.

Minha vida,

minha comida,

minha tarde de sol,

meu anzol,

meu engodo e meu enredo.

Lua da minha rua,

meu poema e transpiração,

minha Tarsila,

meu Movimento de 22,

biscoito fino, inspiração.

Você é meu feijão,

meu caldo verde,

minha noite calma,

bruxa e magia.

Eu sem você sou deserto,

sem nada,

a esmo por ai,

fantoche de meus medos.

Você é minha razão,

minha direção,

ponto cardeal,

meu bem, mel sal,

tempero, coração.

Meu poema de amor,

minha canção desesperada,

minha flor, meu vinho,

princesa e dama,

te quero por inteiro

na minha alma,

na minha cama,

na minha vida aflita,

fazendo fita,

criando confusão,

dançando, cantando,

mandando

nos desígnios do meu coração

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PLANTAR AMANHÃS

É preciso botar a mão na massa

e fabricar o pão da união fraterna.

Escrever no muro, nas mentes, nos medos;

meter os dedos na ferida.

Abrir a boca, o verbo, o verso e o inverso;

fazer da vida mais que rimas.

Mais abraço, contato...

Braço a braço, abrir espaço,

fazer o ninho, o berço, o lar para todos.

Do nosso mais distante amigo

ao inimigo próximo, perdão.

Como Cristo amar a unidade,

como um taoista, ver o ying e yang em tudo.

Unir cantos, em cântaros, cantar;

alargar a festa e abrir a cortina.

Botar a massa na praça, na rua

para ver o luar e o sol

e o suor ver escorrer dos rostos na dança.

O gosto da vida é ter emoção,

cruzar com gente, ver gente, olhar gente.

Dar passos em direção à ALEGRIA

abrir portas, janelas, olhares,

bocas e horizontes.

Subir aos montes, edifícios, fincar bandeiras vivas,

gente de paz, de glórias a edificar.

Fazer história, plantar amanhãs

e, em uníssono, cantar a vitória.

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PLANTADO NO ASFALTO

Ao romper-se o ciclo agrário

todos os matutos tornaram-se urbanos

pra não morrerem secos no sertão do Brasil.

Ao findar-se a tradição rural

tudo foi trocado pelo fervor dos sentidos:

rios poluídos, ruídos e dores maiores.

Fisgados por anzóis da civilização

vieram todos viver sob cerrada fuligem

na vertigem das cidades.

Saudades dos tempos idos.

Nesse universo de fragmentos ilhados,

de cimento, pedra e caos,

fui plantado por meus pais

e criado na lembrança de um outro país:

pobre, seco, latifundiário, injusto, mas musical.

Como um índio laçado na mata,

arrancado do seu solo-pátria,

fui jogado na adversidade: cidade.

Cresci assim, com saudade de um tempo perdido que não vivi.

Entre concreto, túneis e viadutos,

no centro da máquina de triturar sonhos.

Hoje coleciono dilemas

dívidas, dores e amores.

Do passado ficaram as imagem e histórias distantes:

Lampião, Conselheiro, procissões, tropeiros...

um rio seco, d’um céu azul-brasil sem nuvens,

miragem.

Saudades de um passado que se deu fim

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MEIO BIAFRA MEIO BRASIL

Nas quebradas onde eu moro

a endividada vida,

a fome farta

ainda faz vítimas fatais

e engravida crianças

de vermes e doenças esquisitas

que nos bairros de gente rica

é ficção,

coisa de tevê.

Na vila onde me escondo

os escombros são abrigo e lar,

cidades de madeira, zinco e papelão

se formam da noite para o amanhã

e logo se vê

meninos sem aparo da pátria

na margem do Brasil

correndo pelas becos,

desvalidos,

mais que filhos são gritos

de destinos doloridos,

sonhos acordados

que vieram à luz

sem chance de viver.

Nas quebradas donde eu moro

é assim: meio biafra meio Brasil.

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MULHER

Talvez me falta a palavra adequada

para expressar o que sinto,

para dizer o que acho.

Pra não ser banal, inábil, vazio,

digo que só você é capaz

de amainar a aridez da cidade,

melhorar o ar, preservar o que resta da mata,

tomar a rédea, salvar o mundo

do estreito conceito macho de mando.

Mulher, você é o rio da vida,

fonte, caminho e navegação;

abismo, vértice, inspiração.

Só você tem o dom,

só você é capaz da transformação;

de derreter concreto, granito,

de acalentar o aflito e cessar o lamento.

Você é o ouro, a platina, o segredo,

o nosso Monte Sião.

Só você pode dar a paz à Palestina,

multiplicar o pão e distribuir o peixe bom.

Aos pobres dar abrigo,

aos sem nada força e grito.

Acredite.

Coloco-me como aliado,

estou pronto a sacudir a poeira, amassar barro,

derrubar prateleiras arrumadas,

abrir livros esquecidos,

arejar cabeças arquivadas.

ir, mundo afora, derrubando muralhas,

conquistando espaços,

quebrando louças,

colhendo madeira para o inverno,

nadando em rios glaciais,

cortando fronteiras hostis,

enfrentando feras na arena,

sem armas, numa cruzada sã,

pela paz, por ti mulher, por todos nós.

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MILAGRE

Se tens sobre a mesa

a fartura de pão, de peixe,

o vinho no cálice, cheio,

no rosto dos filhos o riso...

Se preferir se farte

mas saiba que do resto faustoso

há seres na espreita

à cata.

Pense um pouco

em tudo, em todos,

em mil outras bocas em falta.

Reparta.

Certifique-se,

abra o livro sagrado.

Aquilo que se divide

se multiplica e não cessa de vir mais.

Faça sua parte.

Milagre.

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MEU AR

Meu amor por você é único

como a água e a humanidade,

límpido e impuro.

Ele se divide mas não perde

a unidade.

Meu amor está em todos

os poros e reflete em todo lugar.

Está na estrela mais distante

e na floresta destruída,

no carvão e no diamante;

na multidão, nos mares.

Onde tiver pulsação

Ele é um frágil grão

escondendo-se para florir,

é força e fraqueza

retida na vasilha do meu ser.

Vasa, escorre,

mas não morre.

É uma força maior,

o que há de melhor em mim pra você: meu tato, meu ar, meu olfato,

minha floresta, meu deserto e meu oásis.

Sou só sem ti: Meu ar, meu leito.

Eu te preciso para viver

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ISADORA DUCAN

Não! eu não quero esse amor

assim maternal, egoísta e restrito

Eu busco o amor puro altruísta

o amor maior sentido por Cristo e Buda

e que Lenin dispensou ao povo.

Não! eu não quero essa dança

assim contida, restrita e passiva.

Eu quero dançar com alegria atroz

terrível, louca e feroz,

nua e só diante da imensidão do mar.

Não! Eu não quero essa mulher

assim sentimental, triste e virtuosa,

que só sabe sofrer e chorar.

Eu anseio uma nova mulher,

gloriosa e do corpo mais livre;

aquela que seja o inverso do medo

afirmadora do eros e corajosa,

um autêntico espírito livre,

contestadora do miserabilismo

em todas as suas formas.

Não! Eu não quero esse mundo assim:

nutrido por mentiras reais,

por egoísmo, dinheiro e poder

e crianças dormindo nos umbrais,

sem teto, sem escola e sem amor.

Não! Eu não quero o homem como ele é,

o que vê a mulher como posse, objeto,

um litro de uísque a ser esvaziado;

aquele que, para se sentir amado,

precisa d’alma feminina com os pés atados;

aquele que fala do amor materno

como a coisa do mundo mais sagrada

mas ama apenas seus braços e pernas;

ama na mãe uma parte de si mesmo.

Da mulher só quer o corpo e a alma cativa.

Esse homem, esse mundo, esse amor...

são distorções, maldições, estreitos princípios

de um tempo de egoismo, dinheiro e teorias -

geradores da monstruosa injustiça do mundo.

Ah! O que então eu quero da vida?

- Vida, solidariedade, harmonia, liberdade,

crianças felizes, alegria nos corações,

almas generosas. Canções e dança para todos.

Sei que o que quero não é pouco

Mas nunca será pouco querer a verdade.

O sol brilha sempre.

Se não fomos nada, seremos tudo.

O texto acima foi inspirado em Isadora Ducan; são essencialmente idéias e frases esparsas desta dançarina e revolucionária do início deste século formatados e alinhado em versos por Célio Pires.

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LOUCO DA RUA

Eu sou o louco da rua,

o sem-teto desmemoriado

que procura nos rostos alheios

anseios perdidos.

Como o pobre sonha conforto

eu quero lucidez.

Procuro meus olhos na escuridão,

procuro meu eu em vocês.

Eu sou o louco da minha geração,

exilado dentro de mim.

Estou transbordando vazio

apatia, sangue e aflição.

Por mim abram-se as celas,

não há fera que fira mais que a fúria retida

na margem da vida

O fio da navalha,

o buraco da agulha,

são minhas medidas de trânsito.

Sou o condenado à solidão

Eu não sou só pele e só osso,

aura negra dos aflitos.

Afirmo négo e duvido,

contesto e grito calado.

Entre deus e o diabo

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HOMEM DO CHÃO

Que se divida o pão

de acordo com a fome

e não seja o nome

o que determine a parte maior.

Que se estanque a ferida

e não se beba mais

o sangue do sofredor.

Que no prato

o fruto do labor

esteja ao alcance

de cada mão que plantou.

Que o milho, o arroz,

o feijão e o trigo

sejam o riso de todos os meninos

do campo e periferia,

onde hoje

o desprezo predomina

sob a gula do maior.

Que a história

que se constrói agora

reserve lugar ao homem do chão

pois da sua mão bendita

brotam os frutos,

o vinho e o pão;

que a sua lida

conheça também a alegria

e o prazer de viver;

que prevaleça

somente uma ideologia,

que o amor seja a cartilha,

sua força e seu saber.

Que se reparta a terra

em acres menores

pra que nela se assente gente,

pra quem nela se plante fartura

e semeie justiça pelos campos do Brasil

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CORAGEM

Estou no gueto.

Me ache.

Tenho a palavra certa.

Revolta.

Todos os sonhos,

todos os sons,

todos os dons

massacrados.

Todos os sentimentos

suprimidos

Resisto.

Todas as aspirações

esculhambadas.

Insisto.

Tenho a palavra-chave,

dedo na ferida,

enigma que se abre.

Ache-me no gueto,

se puder,

antes que o rastilho

a pólvora chegue ao palco

e ilumine a cidade.

Ileso,

piso em brasas,

danço na beira do abismo,

reuno bocas na praça

Grito.

Não há lógica,

só travas nas portas.

Procure-me no gueto.

Bata.

Tenho a palavra-chave,

Coragem

dedos pra ferir,

enigmas pra decifrar.

- Musicado por Reinaldo Scott

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ELA É GAL

Essa mulher é um bicho mau.

É uma gata no cio,

selvagem e valente,

antipuritana, libertária, radical.

Ela é o avesso do submisso

Ela é Gal.

Suas unhas pontudas,

o cabelo disforme, a boca carnuda.

Seus olhos ferinos, a voz de veludo,

afinada e atroz . Ela dá tom e o norte.

Ela é a noite e o corte.

Essa mulher é mesmo a tal.

Do corpo mais livre, moderna.

Ela ama sem areios.

Uiva como a loba na noite,

antipuritana, derrama seu leite.

Ela desfaz a festa, espanta cordeiros.

Com alegria terrível e feroz

ela destoa, encanta, aponta a nova mulher.

Ela é mesmo um bicho mau.

É uma fera no cio,

felina e valente, libertária, radical.

Ela é o avesso do submisso

Ela é Gal.

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DE CLARA AÇÃO

O tempo é curto para resolver os problemas psicológicos gerados pela agônica solidão das cidades. Declaro, portanto, a alegria “suprema”.

Abram-se os diques do riso e da música.

Tristes, mal amados e rancorosos crônicos saiam de lado.

Corte-se totalmente a verba do Ministério da Infelicidade.

Dispensem os soldados, suas armas e medos.

Cancele a licitação da usina de fundir agonia.

Menos celas, barras de ferro e balas de canhão.

Menos câncer, aflição e Aids.

Corte o incentivo à indústria de fazer doenças.

Tudo para o Ministério das Hortaliças.

Multipliquem-se os canais de comunicação

e misturem novas estéticas ao liqüidificador cultural dos povos.

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MANCHETE

O amanhã chegou na véspera, o futuro foi ontem.

Tudo é claro, luminoso, divino:

as florestas brotaram de novo e o ar se purificou.

Os adultos brincam de roda e as crianças batem palmas.

O povo elegeu o novo.

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TODA CRIANÇA MARECE RESPEITO

A criança vadia dorme sozinha,

atirada num canto da cidade

que nada lhe dá.

Só tem como coberta

o fogo do seu sonho pra lhe esquentar.

Seu acalento é um outro destino,

diferente daquele que enfrenta:

casa, comida, família e um pequeno cão

para acariciar

O básico lhe é negado.

A vida só lhe faz cortes e atira o sal

e não há mãos para lhe curar,

somente o vento gélido

vem naquele momento lhe abraçar.

A cidade em seu lençol cinza

dorme tranqüila

Dormirá?

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CORRE SANGUE

Corre o meu sangue

na cidade,

coagulando em todos os cortes/cores/dores.

Forte,

é parcela de todas as raças:

índio, hindu, bantu, cristão e muçulmano.

É de canudos, palmares, lampião,

cigano, hippie, beatinik, vagabundo.

É de outra era,

profeta, revolucionário, anarquista,

amante, romântico, brasileiro.

Corre cego, ácido, incerto,

deserto,

sob a pele sufi,

na mata, na guerra,

poeta

da civilização-metal,

entre construções, concreto, aço e aflição.

Corre meu sangue

na cidade,

coagulando em todos os cortes/cores/dores,

forte,

destilando palpitações,

entre lutas brutas.

Corre coeso

entre o fel/veneno,

irrigando o coração,

pronto a eclodir,

entre a barra,

o peso de cada dia.

Vai assim transitório e volátil a fluir

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CLARICE LISPECTOR

Estou ouvindo de dentro de mim

o grito ancestral que ecoa.

Selvagem me sinto, me solto.

O ser intratável aflora.

Sou aquela gata no cio

que lança plangentes miados.

Criatura de instintos livres

Indomável.

Que rola e joga-se do telhado

até ferir-se no chão.

Sou bicho e criatura.

Parece que não sei quem me domina;

eletrizo-me com a lua,

vago pela noite vadia,

indelével .

Confundo-me toda,

fico exposta ao medo.

De limites já não sei,

não mais aceito ordens,

apenas encaro instintos abafados e sigo.

Sou a gata louca no cio

de imperativos instintos

que perturba sono, derruba latas

e faz arruaça nos arrabaldes

provocando ira e raiva,

fazendo mau.

Eu sou a tal indomável,

criatura viva mutante,

pulsante, loucamente lúcida.

Mulher

O texto acima foi inspirado em Clarice Lispector e tem base em idéias e frases esparsas desta escritora brasileira, de linguagem única em nossa literatura; alinhado em versos por Célio Pires.

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CATIVEIRO BRASIL

Canto o olhar que me come

quando passo entre a fome e o salário

nos becos, cortiços, favelas e viadutos.

Nesses labirintos humanos,

onde curti-se a dor

em fogo lento.

São casos de memória que colhi,

mais injustiças que glórias,

pedaços de histórias que vi,

ouvi, senti, calei sem consentir.

São sementes que espalho agora

Canto o silêncio contido,

os gritos sufocados

e a alegria calada.

Os olhos pidões, do fundo poço,

dos que comem o duro osso

da exclusão.

Coisas estranhas, coisas de entranhas,

vísceras ao vento.

Canto o canto extremo,

da periferia sem luz,

extrato da vida, do outro lado do mundo,

da criança sem pátria dos faróis,

da cidade de papelão e fogo,

das vidas sem valor.

Canto como quem reza,

como o judeu no Egito

e o negro cativo no Brasil,

como o pássaro na gaiola.

São fatos e histórias,

sementes que espalho agora

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SE EU SOUBESSE COMPORIA UM BLUE

Se eu soubesse compor um blues

faria o blues das vielas sem saídas

e dos becos tristes,

mas eu só sei chorar e falar pouco,

com voz miúda e tristemente sem ritmo.

Mesmo assim canto

sem som, sem melodia,

os olhares que me comem

quando passo pelos becos

pelos guetos/ labirintos

favelas e vielas sem saídas

E são tantos os gritos quietos que ouço,

quantos rostos esculpidos

de tristezas e dores infindas.

Vozes sem voz

do poço fundo das injustiças,

da morte em vida.

Tantas crianças tontas de fome/cola/crack,

franzinas, nas marquises e becos tristes.

Se eu soubesse,

faria na guitarra o “Blues da Piedade”

mas não tenho tato para tanto.

Apenas inquieto

canto

sem som

sem samba, sem nada.

Denso,

cuspo como quem expele sangue vindo do coração.

Sigo quieto

tecendo esta canção cega

como se fosse um blues

para se ouvir só

em noites sem portas e estrelas,

sob o brilho das luzes escassas,

das vielas sem saídas e dos becos tristes

na cidade sem coração

deserta.

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BOBO CRIANÇA

Sou mesmo um poeta torto,

um louco a comer estrelas.

Observo atento as dores,

recolho os feridos do mundo.

Sofro como num parto,

rompo o cerco restrito.

Danço bailarino

entre frestas

Bebo esse tempo,

arestas.

O mal vento arroto,

o desespero desfaço.

Tramo entrelinhas,

fio palavras soltas.

Lavro a terra e semeio,

incendeio a noite.

Sou mesmo um poeta torto,

um bobo feito criança.

Me vejo esperança,

me surpreendo feliz.

Você acorda cedo e tranquila

faz da lida um ofício sublime.

Eu fico na cama, só no desejo

de que volte logo e me aqueça do frio.

Eu fico mais manso, mais dócil

de ver teu coração em tudo que faz.

Inteligência espiritual é isso...

Você é meu doce, meu bem, meu sal.

Você só me faz o bom, o são,

e eu te amo sem procurar resultados,

só cumpro a decisão da minh’alma,

seguindo as pegadas do coração.

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DEPENDENTE DE VOCÊ

Me concentro em você e posso voar,

asas que o seu amor me doa.

Sou pássaro...

Me fortaleço em você

e sereno pouso.

Você é todo meu desejo, ensejo.

Minha magia secreta, perfeitamente exata.

É fluída, inteligente e lúcida,

verdadeiramente intuição e ação.

Não me abandone nunca no mundo,

no frio da indiferença e do desamor,

pois se ficar sem você me petrifico,

naufrago no mundo frio das plantas e pedras.

Volte logo pra mim, pro nosso abrigo,

antes que eu me perca em labirintos

e caia na teia dos mil enredos.

Quero você presente.

Volte pro aconchego. Sou dependente de ti.

Pra Zabelê

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DEZ ÚLTIMAS NOTÍCIAS

1.

O planeta música é negro

Foi lá que se originou a alegria, o regozijo e onde se exilou a intriga e o orgulho.

O negro inventou o batuque, o regaae, o samba, o rock...

Pra deixar de padecer, deu ritmo a dor e traduziu sua fúria em milhões de harmonias.

Salve Luís Melodia, Miles Davis, Bob Marley, João Terra e todas as Áfricas do mundo.

2.

Denunciados os arquitetos da destruição

Eles projetavam a máquina de destruir sonhos, sedar emoções, calar uniões.

Queriam impor séculos de domínio e institucionalizar o bater cabeça, o choro e o ranger de dentes.

3.

Poetas saem da toca

Eles desceram da alta da torre do ego e saíram em passeada pelas ruas, gritando:

“Abaixo a civilização de extermínio, do aço tecnológico sem alma”.

4.

Encontro fatal

Aconteceu na rua da Harmonia, esquina com a da Emoção.

Encontraram se a melancolia exilada, a alegria expatriada e a liberdade silvícola.

Um minuto depois declarou-se fevereiro o mês do carnaval.

5.

Zé Povo

Foi entrevistado pela TV,

onde agradeceu ao presidente por estar vivo,

sobrevivente, subempregado.

Declarou-se malabarista da vida e artista de circo.

6.

Atleta

Ele se equilibra no meio fio da navalha, surfa nos trens da CBTU, nada quando das enchentes.

Está contente com o Brasil e sonha votar de novo naquele partido,

o que muda de nome mas continua o mesmo, o de sempre.

7.

Informática

A Era Cibernética avança e provoca a revolução dos “chips”.

Nas ruas centrais, como no velho poema de Manoel Bandeira,

o homem cata comida entre detritos e engole com voracidade.

8.

Iletrados não

O secretário declarou que, devido ao fim das obras e com o advento da informática e da globalização, estaria valendo agora a ditadura do letrados.

A massa inculta já poderia voltar aos seus estados de origem, sem tumultos.

9.

Novidade

Diretamente do Japão foi lançada a máquina que substitui o cérebro. Sonha-se acordado com máxima fidelidade de imagens e som estereofônico.

Ela inviabiliza pensamentos negativos,

nada que lembre fatos banais do mundo: favelas, gente esquálida e outros cacos humanos.

10.

Poeta

Insensível a Revolução da Informática e às realidades virtuais, o poeta observa clarões na noite periférica.

É bala e crack quebrando vidas ao meio.

Demasiadamente humano ele delira e chora.