DEDICATÓRIA

Send you all my love in a handful of darkness

(Marian Gold/Martin Ian Lister)

A ti dedico meus últimos dias.

A ti dedico meus últimos sonhos.

A ti dedico meus últimos suspiros.

Não te dedico minhas lágrimas,

Minha decepção, meu desespero,

Minha dor,

Minha patética reação.

Quero dedicar-te apenas o melhor de mim.

A ti dedico meu segredo.

A ti dedico minha pálida fantasia,

O meu certo desejo incerto.

Não te dedico as horas de agonia,

As interrogações de minhas angústias

A comprimir meu peito acelerado.

Não ouso sequer dedicar-te minha dúvida.

A ti dedico minha loucura que,

Embora seja algo negativo,

Abriu-me nos lábios um sorriso.

Eu te dedico meu sorriso...

Tão pobre! Tão mirrado! Tão inexpressivo!

Tão imperceptível!

A ti dedico minha estéril curiosidade

E minha invisibilidade.

Não te dedico minha apresentação,

Minha figura a ti abominável,

Insignificante,

Insípida transparência.

Mas a ti dedico minha heresia,

Minha perseverança

E minha devoção ao que deveria ser odiado.

Não te dedico meu objeto de adoração

Porque sei que a ele viras o rosto.

A ti dedico o sol, astro que não é meu,

Mas cuja luz te faz despertar toda manhã,

E me adormece num sonho

Sacolejado por indizíveis presságios.

A ti dedico a paz de minha ruína,

A paz de minha amargura.

A ti não dedico minha amargura.

Há nesta terra quem a receberá melhor,

Num abraço longínquo,

Num embalar de carícias incompreensíveis.

A ti dedico meus pensamentos,

Soltos como balões coloridos no ar,

E que estouram trazendo-nos a decepção de criança.

Não dedico a ti minha criança,

Porque ela é pálida, doentia e inconsolável,

E sei que mãe tu não és.

A ti dedico meus instantes de vigília,

Não o meu sono profundo,

Pois é repleto de pesadelos.

O teu espaço deve ser o azul do céu,

Perfumado pelas flores salpicadas com um doce orvalho,

Nunca o podre lamaçal de um sonho aflitivo.

A ti dedico as gargalhadas, os amigos...

Os teus, não os meus, pois não os tenho.

Não te dedico a chuva.

Desculpe-me, mas ela é só o que eu tenho,

E é tão pouca!

A ti dedico as alegrias,

Mas não as que vêm da chuva.

A ti dedico a gratidão dos outros.

Merece-as.

A ti dedico meus planos feitos e desfeitos,

Executados e abortados,

Saudados e lamentados,

Lembrados e esquecidos;

Pranteados à beira do caminho, sepultados.

A ti não dedico minha vida.

Não deves ter contato com coisa tão abjeta.

Não te dedico meus mortos,

Minhas mortes particulares,

Meus parentes lunáticos e decadentes.

Já que não os têm, não queira tê-los emprestados.

A ti dedico minha solidão,

Essa lua que vaga pelo infinito

Desde antes do começo das eras

E eternamente após o fim dos tempos.

Não te dedico a lua astro,

Sobretudo a nova,

Porque não nos é permitido sondar a intimidade alheia.

Não te dedico meus pertences

Palpáveis e impalpáveis.

Tu os transformarias em cinzas

E como posso eu correr atrás das poeiras?

Eu te dedico o ar puro, a água fresca,

O alimento.

Te dedico uma mesa farta e a minha ausência nela.

Não te dedico meus heróis,

Minhas letras preferidas.

As coisas fúteis que te dedico são só as belas.

A ti dedico a preguiça do gato

E a argúcia do felino.

Cada um a seu modo,

Nós dois, temos algo a ver com eles,

Mas não a mesma coisa.

A ti dedico minhas infrutíferas meditações

Durante minhas caminhadas fugidias.

Por vezes os dedos da minha imaginação

Roçaram a tua presença.

Muitas foram as vezes

Que um triste despertar me trouxe de volta...

Não te dedico meu gemido de tristeza.

A ti dedico a natureza, as encostas,

As árvores, o vento que agita suas folhas.

Um ipê amarelo que não plantei,

Que não mandei florescer,

Que floresceu para ninguém,

Eu to dedico.

A ti dedico suas flores que caíram em vão,

Que não viste.

A ti dedico tudo de mim que não viste,

Que caiu ao chão,

Que floresceu em vão.

Os caminhos alheios são ladrilhados de indiferença,

Pavimentados com a ignorância,

Trilhados com desdém.

A ti dedico tudo o que sei

E te nego minhas insciências.

Não te dedico meus triunfos,

Meus momentos de glória.

Não tenho do que me orgulhar deles.

São horríveis manchas de vergonha.

A ti dedico meu orgulho,

Pois te arrancam deliciosas gargalhadas,

E depois, um inimputável esquecimento.

A ti dedico o desconhecimento de tua paragem,

Mesmo sabendo que estás em toda parte;

Em cada célula do meu corpo,

Em cada átimo do meu pensamento,

Em cada molécula de ar.

Sinto teu rasto negro serpenteando pelos caminhos...

Não te dedico a caridade.

Sou mau em essência.

Mas também não te dedico meu ódio.

A morte é algo bom.

Será bom para mim, será para ti,

Para o mundo e para os que amas.

Então, eu nos dedico a morte.

Eu te dedico a consumação de minhas forças,

Física e intelectual.

A consumação de meus dias;

A exaustão da minha mente

A procurar e alinhavar estas tantas

E tão estéreis palavras.

Nota: Este texto faz parte da obra de minha autoria intitulada A JANELA (TRISTE E ENIGMÁTICO). Eu volto a escrever após quase catorze anos sem produzir.

Lester Cooper
Enviado por Lester Cooper em 27/03/2018
Reeditado em 25/02/2021
Código do texto: T6292634
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