Nênia
Onde estão vocês preocupações e sofrimentos,
angústias diárias, dores, vícios, amores perdidos?
Em que lugar de mim escondi que não os acho?
Venham dar motivos para que tudo volte a ser
como era. Sinto desolação por não mais tê-los.
Sem vocês minha loucura se torna muito estéril
e morre enterrada dentro de um corpo vivo,
que não mais se estremece por faltar solavanco.
Barranco pequeno assume o lugar do abismo
de onde um pé alcança o chão antes do outro.
Onde vocês estão frustrações crudelíssimas?
Servíveis como espelhos para o sofredor-mor!
Casa de espelhos demolida pelos novos ventos.
Tantas coisas perdidas na Rua da Imaginação,
farândola de rostos em calidoscópio que não gira.
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A cada fim de dia a noite não celebra mais nada.
Vidros do calidoscópio arranham uns aos outros
sem provocar mais dor. A Rua da Imaginação
parece estar fechada para obras. O que se vê
é só o que há ao alcance. A janela devassa a casa
do vizinho. Foi adquirida uma disciplina rígida
de só olhar para dentro. Ele tem filha moça.
O voyeurismo é a pior forma de olhar o mundo.
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Águas da amargura se transformaram em remela.
O diminuir dos passos torna a estrada muito longa.
Aprenderam as aves criadas a voar mais alto
que o olhar? Por que não pousam mais aqui?
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Eis a folha em branco representando o luto.
Paredes se tornaram próximas sem darem ouvidos
aos pensamentos que elas nunca souberam ler.
Perto da minha casa há a praia pela calçada
longa delimitada. O mar aqui nunca a invade.
O homem aprendeu a beber menos que a ressaca.
Embora o chão se abra, ele evita ou adia a fenda.
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O outono assume a têmpera do inverno na manhã
mais fria. Não há brisa, mas é como se houvesse.