NO SERTÃO URBANO

A Manuel Bandeira

De fato, era um homem

Montado de carnes e músculos

Adejantes canais na epiderme

Couro e mais, pelos, compondo-se em fluxos.

De fato, era um homem

Envolto em distância e pó

Na sujeira da cidade

Mistura das discrepâncias

Ressonantes do tempo.

O sertão recuperado no intimo

Sendo aqui, na plena urbes ou nas profundas do Seridó.

De fato, era um homem

E só. Que bicho não era, se via

Embora a idade elidisse a memória

Teve uma mãe, um começo

Teve, se lembra, um berço e a sensação de regalo na noite pia.

Ali, velho e estranho

Parece ter alcançado o impossível

Do viver, sequer, sem ser visto.

De fato, era um homem

Mas um bicho, parecia

Tão entretido nas sobras

Que a caridade servia

Por onde passava, lhe davam os frutos do chão que se come.

De fato, era um homem

E comia. Não sem sentir o alimento

Advinhar-lhe a acidez, no cheiro, como um babuíno faria.

Cheirava e comia o tomate;

A vagem, cheirava e mascava

Macerando as fibras e o sumo

A cenoura tão doce roia;

Sorvia entre dentes, insuspeitos nutrientes

O doce-azedo do maracujá, raízes cruas

Com a mesma devoção ritual com que nos primórdios se fazia.

Ou de quem diante estivesse, da alta cozinha de Flandres.

No alto, uma estrela fria.

Às vezes, animal, presentia

Quando olhava torto, de esguelha

A quem lhe notava no canto da esquina

Os adultos, quase nunca, mas as crianças...

Em especial, as meninas pareciam reconhecê-lo

Personagem de Grimm, um espírito da floresta.

De fato, era um homem

E inteiro. Mas poderia ser espírito

Este hominídeo megalítico

Aspirava no ar os odores

Da Canudos, perdido conselheiro

E mais alem, também

O aroma da Península Ibérica

Este homem sem ter pressa

Tocando a comida com a mão

Em meio à avidez feérica

A barba longa sugere o que seu viver atesta

Pureza feita de pedra, hábil Manuelzão.

De fato, era um homem, já creio

Pois, que da fome enfastiada

Cofiando a barba, prenhe de humanidade

Num corisco, empertigou

E deixando de estar de cócoras, rumou-se para o nada.

Ricardo S. Reis agosto de 2007

Ricardo S Reis
Enviado por Ricardo S Reis em 02/08/2007
Reeditado em 03/08/2007
Código do texto: T590012