Lembrando um Homem (Páscoa de 2006)

Lembrando um Homem

(Conto-poema)

Lizete Abrahão

Não era calor nem tempo friorento,

Foi em uma estação do ano qualquer...

Caixas densas de vidro e cimento,

Céu sem chuva e nem um sol sequer.

Tarde, andava nas ruas, fingindo brilho,

Um povo com pressa, de vazios passos...

À minha frente seguia, maltrapilho,

Um mendigo, com um bebê nos braços

A criança, bela de nem se dizer...

Como um infinito de sóis repleto,

Ou rosa em orvalhado amanhecer,

De olhar inocente, cheio de afeto

Atraiu-me o lindo rosto da criança,

Nele prendi meus olhos por minutos.

Levada por aquele povo sem esperança,

Andei com a mesma pressa dos brutos

O homem caminhava, lentamente,

Sobre pés cansados que o chão consome.

Passei por eles, apressadamente,

E vi um corpo comido pela fome.

Era um homem jovem e muito belo,

Barba por fazer, cabelos compridos...

No rosto, inscritos: miséria, flagelo,

Nos ossos, abandonos esculpidos

Mais que tudo, no olhar iluminado,

Levantado para um céu sem resposta,

Vi nele a solidão do resignado,

De quem só pergunta e não se desgosta

Escorria-lhe na face o sofrimento,

Andava direito, com corpo erguido,

Inteiro, todo ele um só sentimento:

Espanto pelo homem talvez perdido

E o céu mais parecendo deserto

Sobre as cidades, de agonia, escuras

Lembrou-me outro dia, de nuvens coberto

Que morreu o homem por tantas torturas

Era aquele o olhar que eu via de novo

A imagem igual àquela da cruz

Era aquele o sofrimento em renovo

Que ali eu vi para muito além da luz

Voltei contra a corrente, à procura

Do mendigo com a criança ao colo;

Temi tê-lo perdido na loucura

Do mundo, engolido pelo subsolo

Mas eu os vi. Ainda olhava o céu,

Segurando junto ao peito a criança...

Corri. Mas, como ao vento voa um véu,

Ele cai ao solo, como quem descansa

O povo parou curioso, a olhar

O homem de infinita paciência.

Impediram-me de mais perto chegar...

Veio ajuda, foi a providência

Quando o círculo de gente se abriu,

Homem e criança haviam sumido.

Fiquei no passeio, e ninguém me viu

Chorar por todo o tempo perdido.

O homem morreu, lembro-me bem,

Para que as almas fossem limpas, nuas.

Ele renasceu no milagre que a fé contém,

E hoje anda ao nosso lado nas ruas...