Encontro de duas sombras

“Sou uma sombra! Venho de outras eras(...)

(Monólogo de uma sombra – Augusto dos Anjos)

Dos anjos Augusto ganhou a melancolia.

Transformou-a em pessimismo,

Em matéria orgânica, em versos que compõem

A coleção de sonetos da vida.

Dos anjos Augusto ganhou a verdade

E a coragem para dizê-la.

Mas o destino – este sim uma pantera –

Silenciou-o.

Morreu moço.

Dos anjos Augusto ganhou asas

E se fez anjo também:

Augusto dos Anjos, o anjo.

O “eu” que Augusto dos anjos ganhou,

Ele transformou em vós,

Nós e eles.

Dos anjos Augusto ganhou um filho natimorto

Para saber então dizer ao mundo

Que o futuro não é a bonança

E sim anonimamente feder.

Dos anjos Augusto ganhou a contradição

De ser tão velho, sendo ainda tão moço!

Dos anjos Augusto ganhou sensibilidade

Para ver poesia no ofício do coveiro;

Matemática na inexata ciência da morte.

Dos anjos Augusto ganhou mais que a morte.

Ganhou mais que um corpo

Do qual restasse apenas os cabelos.

Ganhou mais que a percepção

De que partiria ignorado e miserável.

Contudo não apedrejou

Ou escarrou em ninguém.

Dos anjos Augusto ganhou mais que a própria alcunha:

“O Poeta do Hediondo”.

Ganhou a glória de saber cantar

“Sobre os ossos do caminho

A poesia de tudo quanto é morto!”

Dos anjos, Augusto.

Augusto dos Anjos.

Escrito em 20/04/2000

Lester Cooper
Enviado por Lester Cooper em 25/11/2017
Reeditado em 23/02/2021
Código do texto: T6181916
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