essendi cósmico

encontrar que somos amantes num mesmo desejo,

se o sonho não fora um poema menor,

se não fora ele uma forma de lembrar os nossos mortos tão quietamente dormindo

dentro daquele nosso intuito desinteressado

de sermos embora um, às vezes dois,

e às vezes uma imensidade de corações imperfeitos que se encontram

um co outro

sem imaginar que noutra imagem mais concreta

nos temos todos a mesma figura gravada no espelho de nossos olhos.

encontrar que somos feitos de uma mesma matéria,

e que o universo é a nossa matéria,

o universo, sem vínculos com deus, sem nossa união abnegada co inferno,

uma matéria desenhada traço-a-traço quão perfeitamente montada

peça-a-peça

como se o encaixe fosse o justo para cada coisa

nadando imersa em nosso espírito

que segue a erma caminhada se afogando nas águas zonzas e ondeantes do nosso querer ser

essa mentira que contamos depois de cada beijo

imaculado,

o beijo que é as coisas serenamente em nossas pestanas que se fecham

cheias de amor, cheias de amor,

já perdidas na contemplação de nos encontrarmos irmãos do mesmo sangue, nosso, de homens

e coisas,

se o sonho não fora um poema menor

deitando em teu colo.

encontrar que nossas mãos se abraçam

num desejo íntimo de conhecer quem é o nosso semelhante,

porque nosso abraço encontra pele-a-pele negros e brancos e a miscigenação da raça,

nossa raça de sermos homens bêbados desse vinho colhido das parreiras

de continentes distantes de nossa memória,

e assim temos mentes e olhos de uma mesma profunda história

que se conta nas inconseqüentes linhas de nossas mãos,

nossas mãos pálidas e calejadas de que teremos o prazer de ouvir os versos desenhados de nossos dedos

aportados na areia que se apaga,

pois que sem mais nem menos haveremos de morrer docilmente as palavras

e na noite rezaremos um pai-nosso humildemente

em nossos joelhos machucados,

então o mundo se comprazerá pelo afastamento da nossa estrutura bruta

e de ardume nas veias

‘sangüentadas do câncer que corroeu nosso espírito

de um tumor maligno

que toca também nossas pernas cansadas de não ter um caminho por fim que se siga

para onde for que não seja um retorno para dentro de nós mesmos

lânguidos e doentes.

encontrar que somos adoecidos de uma mesma enfermaria

e que as flores que nos depositaram ao colo

estão murchas, porque não podíamos regá-las nem dar-lhes o sol

para que fossem doces

e para que houvesse o néctar que chuparíamos como borboletas azuis voando pelo silêncio

da pura contemplação de nós mesmos

enquanto quem encontra uma verdade turva e esquisita,

a de sermos filhos de nós mesmos,

por isso irmãos de um mesmo universo

e de uma mesma mulher louca,

essa mulher tão enormemente que se chama dentro de nossa debilidade vida,

e ainda vida

no nosso medo de viver.

encontrar que enquanto há a noite e a dor de nossas almas

temos sempre aquela vontade de exprimirmos a nossa preguiça diante da beleza

e nosso distanciamento quando as rosas não resolvem a realidade,

porque temos ainda tanto o que procurar pelo chão

onde cisca o galo envolto da madrugada

cósmica

milho-a-milho construindo um enlace matrimonial da noite co dia

sem pensar que seja esse indivíduo que revela as manhãs

sem expectativas,

mas cheias da paixão feroz que nos consome enquanto o dia se declama em nossas bocas.

face-a-face o tédio nos declara mortos do desejo

pelo simples fato de estarmos vivos e sermos escolhidos como círios de uma religião que vela pela escuridade

quando existentes pelo fosco da nossa visão.

encontrar que há em nós aquele outro

que conhecemos tão mal e tão debilmente por negarmo-nos a escutar que chamam

quando cantam cantigas-de-roda chorando as crianças

filhas de uma fome que o mais rico dos homens não suplantaria,

porque não há alimento que sustente aquela falta das coisas

que são sorrisos, lembranças, segredos, histórias, palavras, escritos signos

quase sem sentido

e cores vindas dos espectros de um sol que se apaga reluzente

como uma estrela morta,

e depois o sono que não descansa, que não encontra um travesseiro.

encontrar que somos pássaros em gaiolas

presos eternos

movidos pela vontade da liberdade

num grito que alcança o ápice do nosso desespero

e logo então nos desprendemos,

de tudo,

e as amarras apenas são um pensamento,

porque não nos deixamos desmaiar perante deuses

nem perante déspotas,

deixamo-nos sim um caminho por qual podemos andar mesmo sem destino,

a rua é quem caminha,

mas agora libertamos nossos passos

e, para onde forem, serão nós como senhores

e não mais serviçais

nem mais cegos.

o cosmos pertence a nós

e encontramos como transformá-lo internamente e inteiramente

o nosso ser,

a nossa história,

isso se o sonho não fora um poema menor,

um poema inconcluso.

(10/02/2005)

andré boniatti
Enviado por andré boniatti em 26/05/2006
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