A QUE NOS PRESTAMOS - Da série Tijolos Poéticos
CIENTE
Fui personagem de um sonho alheio e me tornei errante de um mundo próprio, viajando para dentro do mesmo lugar, sempre, fui acrescendo experiências e ciência à vida cotidiana, errando também, pois é isso o que me fez aprendiz dedicado: colocando a mão em cumbuca, falando o que não devia, tapa da boca, xingando polícia, apresentando documento, querendo pegar em armas para defender a democracia e essas bobagens todas, tolas.
INGREDIENTES
Nesse caminho misturei ingredientes perigosos: droga, política e música, tripé que já deu em loucura, onde vaguei num deserto repleto de imagens patéticas, como se a vida fosse um filme futurista. Na vida não tem resumo, rasura, ré, é resultado dos encontros, mas pode parecer encanto, magia, mas é pura química, mistura de sons díspares, tambores ancestrais e guitarra de rock in roll branco americano.
SOMATÓRIA
A vida foi indo assim, somatória de amor e descuido, acrescida de desobediência e uma soma de histórias e absurdos, fugas silenciosas para um futuro que inexiste, um matrix verdadeiro, só ida, em volta prevista. Pagar a vista. Vender a força de trabalho, para não negociar a alma. Nada mais importa, pois o futuro é só o fruto de uma árvore estéril. A vida é uma engrenagem que enferrujou, vírus no computador.
PÓ
O estrago já foi feito, a guitarra que Jimmy Hendrix incendiou virou pó pela causa da loucura à rendição espontânea. Cura à loucura. Alucinação é melhor que a verdade, a morte substituindo vida. Hoje a minha pele é solo quente ferido de um deserto sem nuvens de um filme de Win Wenders. Filho da rebel generation sem sê-lo, sigo nesse sonho de moleque, onde ter uma certa calça Lee era tudo, uma jaqueta furada no Vietnã e uma blusa da marinha americana, sonhos de consumo bacanas, e um filme americano na matinê.
DESOBEDIÊNCIA
Não estudei inglês e nada sabia do que diziam as letras dos Beatles, Rolling Stones, Dylan, mas fui junto pelo faro, embalo, indumentária, flores e amores, inocência e alegria passageira. Fui fazendo meu scripte assim com poucas saídas: queimar a vida como um fósforo ou como vela de sete dias? Quem ficou agradece a quem partiu.
REESCREVENDO
Hoje reescrevo a Bíblia e o Livro do Tao ao mesmo tempo num só enredo – e não sei de nada e nada vi. Um homem que pensa, pensa melhor nutrido. Não segui conselho, não aprendi inglês, parado na esquina de uma juventude tosca, sem grandes arroubos e um despertar tardio, muito por fazer: tirar o musgo, amolar a pedra bruta até que role, fazer arte bruta, colher frutas como um índio. Sou hoje o próprio solo seco do sertão no asfalto. A falta de mato me sufoca, as vezes.
UM BLUE
Corisco, Lampião, um índio no alto da pradaria, e o dedo gordo de um velho guittarman dedilhando um lamento cego, torto, sem palavras, num bar de estrada poeirenta. É só isso que me lembro de outras vidas, reminiscências de não sei onde. Teria minha vida sido um filme em preto e branco? Eu sou assim: sonho pululante, coração-corpo inteiro, blues de porta de porto. Queria escrever como quem toca uma guitarra, ser claro e límpido, sem embaço, mas me enrolo todo, confesso.
DEDOS
Queria não ter cabeça, apenas canções nos dedos. Recuperar o passado projetar futuro e pular o presente e todos os muros a derrubar, murros na ponta de faca, as mortes das florestas e das espécies. A era é cruel, humanidade idem. A minha música espera para ser composta, o ritmo será outro. O presente é o que me resta e este rastilho de pólvora: palavras que tento.
DEFINIÇÃO
Estou alheio e presente
acorde-me
que não presto a certos modismos.
Sou uma corrente elétrica
uma válvula fora de uso
plugado na veia do planeta.
Eu sei aonde me meto
sou metal e não me derreto
não tem jeito
manifesto
rejeito.
Sou uma luz acesa no gueto
Estou alheio e presente
sacode-me
que não presto a certos ritmos.
Sou a vitrola que esguela na boca da favela
velhas canções de Jorge Ben
pra quem vai e pra quem vem
samba-rock,
samba-funk, meirmão
um tambor da selva
áfrica na tomada que ressoa
e ecoa feito um bluesman-nego-véio.
Sou uma luz acessa no gueto.