De mitos, poetas e de poesia...

O Mito, logo após criado o universo, vagando entre os corpos celestes, viu-se em meio a um imenso vazio. Recostou-se em um astro, suspirando pela falta de alguma coisa que nem ele sabia o que era. Era o todo incompleto.

Olhava em volta, dava retoques, polia os anéis de Saturno, jogava purpurina no firmamento - quem sabe faltava-lhe brilho? Não, não era isso.... Passou um cometa. Ajeitou-lhe a cauda...

- Quanto descuido! exclamou, já agoniado.

Foi até à abóbada celeste, juntava aqui e acolá algumas estrelas, fazia montinhos delas, espalhava-as, pulverizava-as com nuvens... Mais além, pegava-as em punhados e jogava-as distantes, em gotículas... As luas, aproximou-as mais de seus pares, deu-lhes faces e véus.... Os sóis, vermelhos de inveja, receando serem apagados por tanto brilho espalhado, quase explodiam nos poentes e sumiam. O Mito, então, cuidou para que esses astros tivessem suas auroras sempre renovadas. Aos viventes de espécies infindas, protegidos em suas redomas, deu-lhes capacidades; além do instinto inicial, incutiu-lhes ânimo, vontades, discernimento. Sobre os muitos tudos e os poucos nadas, decidiu que só ele teria as respostas.

E, assim, ia cuidando das suas coisas, de suas criaturas, mas insatisfeito. Para quem havia se dado ao trabalho de tamanha tarefa? Apenas a eles, os entes que viviam na redoma, dedicaria o tudo? Mas como, se eles nada viam, sempre olhando ora o chão, ora seu próprio ventre; ora a si mesmos, ora o que possuíam? Não desviavam os olhos nem para os lados, nem para o alto.

Tão cansado estava. Sentou-se na varanda do céu e se lamentou, impotente, triste por tanto ter feito sem, no entanto, saber o que fazer para que tudo se harmonizasse... Suas pálpebras apiedaram-se dele, fechando-se para que, por trás delas, encontrasse alívio.... Mas se lhes fugiram duas grossas gotas de sal que, não suportando aquela prisão, saltaram pelas frestas, ficaram a saltitar sobre o infinito e, enquanto flutuavam, dividiam-se emitindo maviosos sons... Uma delas caiu sobre a lua que espreguiçou-se, bocejou e riu baixinho. O Mito, acordado por aquele riso, olhou-a e viu-a mais branca, mais cheia e brilhante... Notou que os astros agitavam-se, que tudo à sua volta se movia... Estendeu a mão e apanhou uma das gotinhas que saltitavam. E denominou-as Musas.

- Mas de que serve tudo isso? Quem irá dizer de mim e de tudo que criei? Até minha lágrima germina palavras e visões e sentimentos novos, entanto não há quem os cante! Cantar? Sim, as Musas cantam! Eu as ouvi! Mas para quem? Ai! Que dilema!

E quase caiu de excitação ao ver no olhar das musas uma súplica, em branco.

- Já sei! O universo está salvo! Criatividade! Eu criarei quem há de ler nos astros e em tudo o mais que criei. As Musas hão de ouvir-lhe os sonhos e soprar-lhes nos ouvidos o Belo do todo criado, e ele é que o espalhará ao infinito!

Eufórico, apanhou um bocado de nuvens, um punhado de sol, alguma estrelas, envolveu-os num véu de luar, aspergiu sobre eles os fluidos da natureza e aconchegou-os ao peito. Depois espalmou a mão, carinhosamente, permitindo que a magia se espalhasse pelo nunca e por todo o sempre. Ergueu os dois braços e, punhos cerrados, gritou ao cosmo:

- Tu serás minha própria voz! Cantarás os meus feitos e de todas as minhas criações! Serás o dono da dor e do alívio! Quando ouvires o canto das Musas, te armarás intrépido cavaleiro da palavra, dela será o poder de te fazeres ouvido... Vai! Voa! Eu te concedo todas as emoções e sentimentos, para que faças dos homens comuns seres amenos e harmônicos. Hás de neles despertar a criatura amável e sensível que têm dentro de si! Vai! Leva a vida a esse tudo onde o nada ainda persiste e, com teu verbo, dize ao universo quem tu és e a que vieste. Tu és o Poeta! Só tu terás o dom de despertar a alma humana, de causar-lhe emoções, de fazer o belo impregnar a mais dura realidade... Toma, esta é a minha mais perfeita filha, concedo-te a Poesia! E que só ela beije tuas rimas e seja o sangue a te correr nas veias, eternamente, pois nem a morte há de separá-la de ti!

O Poeta, tomando a Poesia nos braços, levou-a ao leito nupcial e, sob o dossel musical, fizeram-se um só.

Porto Alegre/RS

Março/2005