Cortar o inútil

Cortava o cabelo dos clientes como a máquina que dilacera a carne no açougue. Apenas trabalhava porque tinha um ofício. Aprendera ainda novo por incentivo do tio, sua única família. E o mestre morreu. Assumiu o sobrinho o estabelecimento que já gozava de certo prestígio. Era freqüentado por homens sérios, sisudos. Os clientes eram lacônicos, abriam a boca apenas para reclamar da vida.

O dia estava nebuloso, anunciava tempestade torrencial. O cabeleireiro fechou, parcialmente, a janela. Ventava forte. O doutor Aníbal já estava na cadeira. Dizia que não agüentava mais advogar. Queria ter um carrinho de pipocas e ser adorado pela molecada. Mas, apenas sonhava. O jovem das tesouras ficou perplexo, pois vivia drama semelhante.

Cabelos grisalhos voavam pelo salão. A cada tesourada, a possibilidade de mudar o corte diminuía. O velho gostava sempre do estilo curto e modelado com todos os fios ordenados. Nenhum podia ser diferente.

Apesar da pequena fresta, o ambiente era invadido por uma ventania violenta. Furacõezinhos de cabelos formavam-se no chão. Paulinho cortava sem atenção. Pensava no anseio de fazer algo que lhe fosse prazeroso. Um intenso sentimento de revolta invadiu-lhe as artérias e propagou-se por todo o corpo.

Ao terminar o serviço, o cabeleireiro soltou um grito, acordando o doutor que cochilara. Este, estava com o cabelo todo espetado e irregular. Houve um escândalo. O senhor saiu revoltado, insultando o rapaz. Transtornado, Paulinho fechou o salão e foi para casa.

Chegou ao lar. Sentou no sofá, pegou em sua bolsa lápis e caderno. Escreveu “inutilia truncat” que significa evitar o desnecessário, cortar o inútil, desfazer-se de coisas que não são importantes e que só causam infelicidade. Queria ser poeta, viver intensamente. E começou a chover...