MORADA INV(F)ERNAL

O viaduto faz parir uma tarde gélida que insiste em entrar no cubículo de papelão, sem pedir licença. Tarde que chega montada no vento cantante, implacável. Vento alheio ao desespero de quem olha para o frio com olhos vazios, cansados de esperar por vida e só encontrar no colo nada além do que braços e pernas menores do que um polegar. Nada além do que face sugada, cinza que abriga olhos saltados de inanição. Nada além do que um corpo esquálido vestindo o manto de flanela tosca e coroado pelo gorro gigante de lã desfiada.

Braços espetados tentam aconchegar a miséria e abafar o grito de fome no embalo de uma cantiga de ninar. Cantiga sussurrada por um fio de voz, por um sopro de vida que ainda resta a quem não tem mais nada a esperar, nada a realizar. Só mendigar, só implorar aos corpos cegos de aço que seguem a trabalhar. Em vão e nada mais.