VELAS AO MAR
Na mesa, sozinho, no restaurante perto de casa,
Conto as pessoas que restaram até agora.
São doze ao todo (e eu a décima-terceira).
Não há ninguém ali para me vender ou trair.
Nem trinta e três moedas valeriam alguma coisa.
Na mesa há pão e vinho para me distrair
Até que o prato chegue fumegante.
Na verdade são minhas únicas companhias.
E o garçom! É, o garçom que vem a todo instante,
Perguntar se espero alguém, se pode servir.
O prato chega, a fome vai. Meu pensamento
Está no quadro ali em frente. Uma marina!
Gaivotas voam contornando as velas estufadas.
Há espumas brancas nas ondas levantadas
Formando um contraste vivo no azul-verde do mar.
Outro veleiro, um pouco mais distante,
Mostra o aceno de braços levantados
Saudando o meu veleiro que se vai.
As montanhas que aparecem ao fundo
Indicam que estou próximo do litoral.
Mas, o veleiro segue em direção oposta.
Em busca do alto mar. Em breve, nem “terra à vista”
Alguém poderá anunciar.
Na mesa ao lado, crianças são assistidas por mãe
Atenciosa, cortando suas carnes vermelhas.
"Esqueço de quem sou para sentir-me pai".
E das vezes que cortei as carnes e curei as feridas.
Provo a comida ainda morna e o sabor realça.
O vinho e a água não saciam a sede. Bebo mais.
O vinho traz uma sensação gostosa de uva nobre
E da terra bem cuidada. Sabor de madeira antes
De a bebida ser engarrafada. A água refresca o
Paladar, mas também não mata a sede.
Nas mesas não há nenhum traidor.
Talvez para mim tenha sido escrito este papel.
Então, que se cumpram as escrituras, se for
Essa a linha principal da lei. Não nego nem que
O galo, se houver galo, cante três vezes.
Na verdade, não há a quem trair.
Amanhã caminharei para o julgamento
E não apresentarei defesa. Lavaram as mãos
E enxugaram na toalha sobre a mesa.
As pessoas se foram, os pratos foram retirados.
Na garrafa ainda há uma última dose.
Um pouco desse sangue ainda resta.
Apenas o necessário para o fim da ceia.
Consumo com prazer a última sobremesa.
Digo uma frase sem nexo à companhia invisível,
Levanto-me e pago a despesa no caixa, na saída.
Lá fora uma noite quente e calma anuncia
Que o dia que se segue terá tempestade.
Caminho para casa na rua vazia, sem receio
Que a casa tenha companhia. Todos se foram.
Nas paredes só ficou a energia da vida
Que um dia elas abrigaram e protegeram.
O leito está vazio. A sala está vazia. A vida está vazia.
No rádio a canção anuncia que uma nova esperança
Em breve, vai acontecer. E que na parede da memória
Essa lembrança foi o quadro que doeu mais.
Recordo que o poetinha escreveu que “há muita paz
Para um domingo assim”, e que “é o infinito essa casa
Pequena”. Dou razão às trovas.
Mas, a vida nos transforma.
Assim como o alimento sacia a sede e a fome,
A vida nos alimenta com ilusões que um dia se vão.
E assim se preenchem os dias. Buscamos outras mesas,
Outro vinho e outro pão. Onde outros doze em companhia
Comerão. Trinta e tres moedas pagarão o banquete.
Um, certamente, não há de nos trair. A vida preparou
Esse cenário. A multidão já se aglomera. A bacia com a água
Já espera. Não há Pedro, não há João, não há Judas,
Não há galos, nem Pilatos. Só a bacia com a água nos aguarda.
E a multidão. Essa assiste ao espetáculo.
Preferem a nós que aos ladrões.
E, conscientes do nosso destino, entramos no palco
E concluímos a encenação!
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O barco ainda flutua. Não há vento. Há calmaria.
A tevê anuncia que encontraram um veleiro à deriva no mar!
Sobre a mesa o pão e o vinho. Mais trinta e três moedas.
Uma bacia com água limpa. E uma toalha de mesa ainda molhada!
16.10.06
Nota do autor: os trechos entre aspas referem-se ao "Soneto de um Domingo", de Vinicius de Moraes, Rio, Setembro de 1944.
Comentários do autor:
Nós que escrevemos temos o hábito da observação. Temos o hábito de receber os sentimentos das outras pessoas como nossos. Já vimos pessoas sós. Já nos sentamos a sós como o personagem, por isso entendemos a solidão. Não que os outros não a entendam ou não saibam o que é a solidão. A diferença é que buscamos outros significados para ela. Neste caso, a solidão de quem já foi julgado sem que tivesse chance de esboçar defesa ("Amanhã caminharei para o julgamento e não apresentarei defesa").
São as pessoas que nos traem ou somos nós que montamos o cenário? Note as frases: "Nas mesas não há nenhum traidor. Talvez para mim tenha sido escrito este papel" e "Um, certamente, não há de nos trair". Seremos nós mesmos os nossos verdadeiros traidores? O cenário será reeditado tantas vezes quantos forem necessários até que um não nos traia?
A perspectiva invertida de quem será julgado já sabendo o resultado do julgamento e sobe ao cadafalso. A omissão do julgador. As pessoas que nos servem de referência optam não por nós, mas pelos verdadeiros "culpados". Finalmente, simbolismos como "barco à deriva" (vida à deriva?)e a toalha ainda molhada pelas mãos da omissão récem-enxutas. Ao escrever sobre a toalha veio-me uma frase da letra de uma canção de Ma. Betânia em seu disco Drama: "Limpo no pano de prato, as mãos sujas do sangue das canções".