VIDAS CRUZADAS

Abaixo o vidro do carro

Dou uma moeda ao menino

Com cara de fome.

Não me é estranho este menino.

Reconheço seu rosto de algum lugar.

Ele agradece e me sorri.

Já vi este sorriso a me sorrir

Assim desamparado.

Só não sei onde.

Ia perguntar, mas o sinal

Abriu. Os carros partem e

Eu sigo atrás deles com a imagem

Do menino no vidro à minha

Frente. Já vi este sorriso a me sorrir.

Muda a cena, estou no trem

Que me leva de Milão para Bruxelas.

A cabine está escura,

Todos dormem. Só eu assisto

Acordado a paisagem passando

Velozmente pela janela.

A moça ao meu lado dorme.

Pende a cabeça e, sem querer, encosta em

Meu ombro. Certamente sonha:

Sua mão procura o meu rosto

Como acostumada a buscar

O rosto do amante.

Deixo-me acariciar. Ajeito-me mais

Ao seu lado. Examino seu rosto.

Conheço-a de algum lugar.

Mas, de onde, meu Deus?

Onde foi que vi este nariz e esta

Boca tão próximos à minha?

Adormeço e sonho com aquele

Rosto que me é tão familiar.

A secretária anuncia o candidato.

Apertamo-nos as mãos. Cumprimentamos.

Já conheço de cor o seu curriculum.

Vasculho a sua vida. Busco outros detalhes.

Faço perguntas. Ele responde.

Adivinho suas respostas. Já vi essa vida antes.

Sei como começou. Sei como será o final.

Olho em seus olhos para ver se mentem.

O brilho dos seus olhos não me é estranho.

Dizem-me todas as verdades que eu já conheço.

Esqueço-me do seu nome, mas sei quem é.

O velho me sorri com piedade.

Oferece-me um café. Eu aceito.

Sua barba branca lhe dá um ar amistoso.

Sorri para mim enquanto divide o seu

Pedaço de pão. Está frio naquele beco.

Doem-me os braços e as pernas.

Minhas mãos tremem.

É a febre ou é a fome? Não sei. Só sei

Que o velho que acabei de conhecer

Parece ter estado todo o tempo em

Minha vida. Sei até o que ele vai falar.

Adivinhei, não disse? Sabia que iria me

Perguntar se agora eu estava bem.

Já ouvi esta pergunta antes. A mesma voz

A mesma entonação. O mesmo desejo

Sincero que eu esteja bem. Viro-me de

Lado e cubro a cabeça com o cobertor.

A mulher se apressa, a porta vai fechar.

Estendo a mão e interrompo a porta

Do elevador. Ela entra apressada e me

Agradece. Pede para eu apertar o botão

Do seu andar. É o mesmo que o meu.

Trocamos algumas palavras que já

Foram ditas em algum lugar. Reconheço

Sua fisionomia, só não lembro de onde.

Já sei porque está ali. Não sabe quem

Sou, mas vem me ver. Marcamos a

Reunião na semana passada. Não a

Conheço, mas posso adivinhar sua

Proposta. Por isso quis marcar a

Reunião: é a proposta que mais

Me convém. Só não contava

Encontrá-la no elevador com

Esse seu jeito tão familiar.

Estou na festa de aniversário do

Meu filho. Crianças correm despreocupadas

Enquanto as mães conversam com outras mães.

Agora, sentadas no chão, as crianças riem do palhaço

Que as divertem. O palhaço tem uma cara

Engraçada: cara de palhaço. Em sua

Maquiagem um lábio exagerado desenhando um

Sorriso. De um dos olhos há o desenho de uma

Lágrima azul escorrendo. O outro sorri

Enquanto seu vizinho chora.

Saio do devaneio porque o palhaço

Estava fazendo uma pergunta para mim.

Eu respondo, sei a resposta de cor,

Mesmo sem ter prestado a atenção

Na pergunta. Todos riem da minha resposta.

Acaba o show, o palhaço sai de cena.

Vou ao camarim improvisado para pagá-lo.

O palhaço no espelho chora! Por que chora o palhaço?

Já vi essas lágrimas antes. O palhaço me olha

Como se olhasse para alguém que conhecesse.

Deixo o dinheiro e saio meio sem jeito.

De onde foi que vi aquelas lágrimas antes?

Doem-me o braço e as pernas. Pessoas desesperadas

Tentam me ajudar. Uma moça segura o meu rosto

E tenta me acalmar. Já vi este rosto antes. É a moça

Do trem. Com sua mão pequena ela me afaga.

Como acostumada a buscar o rosto do amante.

Olho para fora do carro e vejo o velho contendo o

Menino que me olha com seus olhos tristes e seu

Sorriso desamparado. Os lábios do velho me dizem o

Que já me disseram antes: que vou ficar bem.

Seus olhos estão tranqüilos como no dia em que

Dividiu seu pedaço de pão comigo.

O médico se aproxima e me examina. É dos bons.

Já li o seu curriculum antes. Já esmiucei sua vida.

Seus olhos não mentem e sei o que eles me dizem.

A enfermeira abre a outra porta do carro, como se

Abrisse a porta do elevador. Toma-me a pressão.

Injeta-me uma agulha. Procuro olhá-la nos olhos. Eles

Trazem-me uma proposta. Ela me convém. Respiro

Fundo, fecho e abro os olhos. Saio sem esforço do

Veículo e caminho pela calçada. O médico e a

Enfermeira ainda tentam em vão uma última massagem.

Na loja ao lado há uma enorme vidraça.

Através dela vejo o velho e o menino caminhando ao meu

Lado. A paisagem na vidraça passa rapidamente.

Estou no trem. Estou no escritório. Estou parado no trânsito. Estou subindo em um elevador.

Há alguém ali no espelho. Eu o conheço. Eu o reconheço.

O espelho mostra o palhaço que brincava.

Só então eu vi que eu era o palhaço que chorava!

01.11.06

Depoimento do autor sobre o texto:

Comecei a escrevê-lo tendo uma idéia em mente. Essa idéia tinha-me vindo à cabeça semanas antes e só não sabia como passá-la em forma de texto. Originalmente imaginei cada personagem como sendo o mesmo personagem central, que se via e se reconhecia em outras vidas de outras pessoas. Essa visão de si próprio levaria o personagem à perplexidade e culminaria com um desfecho onde se defrontaria com sua multiplicidade. Porém, à medida que redigia, perdi o controle sobre o texto e os personagens. Eles mesmos tomaram-me a mão e a caneta e puseram-se a escrever a solução final, onde todos se reunem e dão sentido aos encontros que tiveram com o personagem central. Não acreditei no que li depois de concluído. Reli o texto desde o início (recomendo que o façam) e encontrei outras mensagens subliminares em cada passagem. Talvez a maior mensagem tenha sido endereçada a mim mesmo!

Paulo Sergio Medeiros Carneiro
Enviado por Paulo Sergio Medeiros Carneiro em 01/11/2006
Reeditado em 14/11/2006
Código do texto: T279360
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