Que a poesia aconteça desesperadamente

Quem melhor escreve é professor, erudito, poeta da melhor métrica, alto clero da escrita, de melhor rima - quem domina as rígidas exigências gramaticais, mas mata seu conhecimento ao fazer deta asséptica, redeglobalizada, plastificada, exportável para turista - puramente bela e vazia.

Eu só risco e rabisco, marco tudo com vísceras e sangue e revolta, com espírito, alma e nudez rústica. Não há candura nela, na vida. Impura, água de poça, beira de estrada, vadia, complexa e injusta.

Eu falo do que me risca a pele: nas praças aumenta a mendicância, nas esquinas escoram-se prostitutas. Crianças fumam crack nas avenidas da Luz e se acabam à vista de todos. O comércio de sexo infantil atrai dólares ao nordeste do País, mas são nos palácios onde estão as maiores sujeiras. Lavam-se dólares nos states, levam dólares na Bíblia.

Distribuiu-se dinheiro em Brasília, nos plenários dos brasis a cada votação, e assim vai a Nação, de tropeço em tropeço, ao abismo. Cadê a reação, a ação da inteligência nacional? Coptada.

Quem melhor escreve tem de ter a técnica, sim, mas não pode ter sangue frio. Passar aquém da eloqüente realidade à frente. Na praça, na viela no gueto dos aflitos. A isto chamo alheamento.

É ficar, assim, na eterna torre de marfim, vendo tudo do alto, sem se imiscuir na poeira do dia, do que se passa no País. Por isso se vê artistas defenderem o status quo reinante; dizendo que é tudo merda, que é assim mesmo, enfim, que está bom. Pra si, é claro.

Por isso e por outras fico as vezes amargo no meu canto ou desatinado assim, como agora, pois gostaria que a poesia, a literatura, não se retivese em livros, na web; que ganhasse pernas e asas e saísse por ai, pelas sarjetas, esquinas, quebradas, favelas.

Mesma esquálida, faminta, migalha da mesa dos literatos, minha escrita fica, assim, pretenciosa e vaza-se por frestas, bate portas, atira nas vidraças, cospe no prato que comeu.

Alerta! Mesmo mal escrita, minha palavra quer ir além do livro, dos salões de lançamentos, dos eventos beneméritos, das noites de saraú. Revoltar-se.

Sei que parece bobeira, essa ira, coragem pacífica, rebeldia tardia (ou juvenil) – a mim, aqui, fico assim: querendo vazar pelos poros, pingar pelo chão, subir pelas paredes e espalhar-se, como folhas de árvores.

É uma escrita não-erudita, sem ser analfabeta, reportagem quase - mas que pode ser entendida, chegar ao ouvido e garganta. Ser arma, aríete, instrumento, tempestade, alguma coisa nova que acontece.