POESIA E PROSA POÉTICA AO RÉS DO CHÃO- A VOVÓ IDEAL

Segunda-feira, 23 de julho de 2012

                                                          D  É  I  A
Quem adivinharia o gosto de aventura na tocada dos meninos e meninas espalhados pela campina de Chácara naquele horário da manhã, num sábado em meio ao capim verdinho e o sol azulante de abril? O antes que consistia no preparo, na expectativa, nas compras de biscoitos, geléia e sucos ralos sacudidos e guardados em cantis de plástico recém-comprados no armazém da esquina, e que, obviamente, além de não manter gelados os líquidos, ainda tinham o poder de adicionar seu gostinho de plástico novo sobre qualquer bebida que ali entrasse. O durante, caracterizado pela zoeira morro acima, zoeira morro abaixo, poeira subindo nos pés da molecada nos incontidos gritos sobe-em-árvore, desce d'árvore, "Cuidado menino que esse galho não guenta seu peso!" , "não derruba manga verde" ," Não chega perto do curral que lá tem boi bravo e tem perigo!", "não judia do seu primo, porque ele é pequeno". O depois, na juntada dos restos do piquenique celebrado até a hora do sol rachar na cabeça, e só depois de todo mundo ter tirado seu merecido descanso nas sombras das muitas mangueiras, cada uma de um tipo: Rosa, Coquinho, Espada, Coração-de-boi, sem falar no delicioso e ardiloso Abiu, que depois de nos propiciar um banquete com seu conteúdo doce, suave e macilento, colava a boca dos incautos apreciadores com um visgo de difícil tirada, situação que só seria revertida mais tarde, com colheres de azeite doce espalhadas no local.

Déia, minha avó, e seu eterno olhar distante, esse terno olhar da sorte e da afeição sobre nós todos, dividindo-se em duas ou mais às nossas vistas, em plena luz do dia, enquanto o mundo se fazia melhor. Ao passo que tinha a um dom inato para olhar toda a criançada (e olha que não eram poucos os primos, e ainda atravessavam várias faixas etárias) enquanto ela se misturava em gritos, formatos e movimentos , minha avó tinha também um outro olhar de por cima, um olhar perdido, de não se sabe onde, um olhar de paz maior mirada sobre um alvo ainda desconhecido e uma luz de compreensão sobre a fugacidade daquilo tudo. De como logo estaríamos em forma adulta e isso de precioso que nesse instante se apalpava, se mordia, se gritava e se colhia, tudo isso estaria em gavetas, ou de memórias, ou de não-se-bem onde ficou minha história. Déia, para quem tudo estava sempre bom, e ainda tinha a capacidade de estar sempre cantando ou cuidando dos seus outros afazeres, que não eram poucos, a noção não explicada, mas assimilada, de que nunca estaríamos sozinhos no mundo. Mesmo que o mundo nunca soubesse da nossa existência.

A visão mais importante de minha vida de criança foi Déia quem deu, quando me levou no "alto do pasto", como era conhecido o local dos faustosos piqueniques, na idade de cinco ou seis, e me mostrou o lado de lá, que era para onde o pasto virava. Da mirada, via-se o resto do mundo, ao ponto de sentir-se vertigem quando contemplados todos os lados, panoramicamente, eu estando no centro, no alto, e tudo o mais à volta. A impressão é que se estava em cima de um muro muito alto e muito fino, e que bastaria um pequeno movimento em falso para uma infinita queda no vazio. Logo abaixo, a uns trezentos metros rolando morro, passando pela antiga linha do trem de ferro que cortava em ortogonal, estava lá a antiga usina de força, com seu rio ainda caudaloso, corredeira gerando véus de noiva e muito vento pelo caminho desde a pequena barragem no platô sobre o vale, e fazendo um grande estrondo na descida de mais de quinhentos metros verticais diagonais moderadas por pequenas cachoeiras filiais, até a casa de força. À esquerda, a menos de um quilômetro, plantada na cabeça do morro vizinho, separados do morro de Chácara pelo rio que dá nome á cidade, estava a visada do parque de exposições da cidade, fervilhante nas épocas de festas e vaquejada, e alegria da garotada amante das pipas e papagaios fora de época. À direita, o temível campinho três bicos, o único campo de futebol triangular de que tive notícia em toda a minha vida, local de lendárias peladas ao entardecer, cercada de mangueias, pastos e platéia bovina pelos lados, e local corrente de muitas outras aventuras fora dos horários convencionais, mas isso já é uma outra história. Bem, seguindo à direita, o primeiro contato com a dor da civilização ainda em tenra idade, na visada dos montes de lixo sendo constantemente despejados na "volta do lixo", como era conhecida pelos moradores da região. Meninos e meninas de todas as idades disputando, em meio a muitos porcos e ao terrível mau cheiro de todo o lixo da cidade, despejado sem maior critério morro abaixo, solapando metros e metros de vegetação e barrancos sobre o rio sufocado colina abaixo. Há coisas nessa vida que dispensam palavras, na verdade muitas coisas, e esse talvez tenha sido meu batismo nas águas daquilo que eu já deveria saber de cor mas que na verdade nunca aprendi.

_ Déia, um dia a gente morre?
_Deixa de bobiça, menino, que você ainda é muito novo pra saber essas coisas.
_Mas Déia, todo mundo tem que morrer um dia?
_ Menino, quem sabe disso é Deus, nós não temos que ficar fazendo essas perguntas...
_ Déia, então me diz se você vai precisar morrer algum dia?
_..... ( silêncio eloquente)..........
_ Déia, daqui a quanto tempo você vai morrer?
_ Então tá: eu acho que vou morrer daqui a uns trinta anos, se Deus desejar.
_ Déia, por que quando a gente nasce não fica sabendo logo quando vai morrer?
_......(silêncio eloquente)............
_ Vamos descendo , que já tá ficando tarde, o vento tá frio e sua mãe logo logo vai lhe chamar....

Antes de descer , uma última olhada para o horizonte: Da esticada do olhar, ao longe, bem à frente por quilômetros e mais quilômetros de estradas possíveis, a visada especial de tentar enxergar o além de lá, a suspeita do mar no horizonte, mar de cargueiros e navios mercantes que chegavam beirando as águas de divisa da pedra do Itabira, cujo cume era distinguível com a clareza dos dias azuis, logo ali, na terra do Rei. Esse filme de ventos e barulhos, e a contemplação dos urubus rasantes, nossas águias reais ao alcance das mãos, pairando durante horas sobre a corrente de ar ascendente pelos morrados da região, a vontade e a necessidade experimentada de ser pássaro e estabelecer uma relação de verticalidade com o mundo, transfigurando-se em penas, garras e asas, transfigurando-se em abertos vôos. Minha avó foi quem me ensinou a voar.
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Quem sou eu- Perfil

Claus(filho)
Claus era quase economista, e um dia acordou cismado e resolveu largar essa ilusão, aventurando-se por um tempo no terreno da biologia e da história, e correndo atrás de outro sonho: a filosofia. Hoje, coerente como se pode ver, não largou de vez a filosofia, mas navega profissionalmente pelas águas jurídicas, águas estas que, de vez em quando, tentam afogá-lo, enquanto ele tenta resistir bravamente. Tem natureza selvagem e, na maior parte do tempo, costuma gostar mais da companhia de bichos e plantas do que de gente; possui poucos e bons amigos,que são verdadeiros irmãos, com os quais raramente se comunica pelas vias humanas normais, mas com quem está eternamente em sintonia paralela universal, ou coisa que o valha. Detesta vida social e gosta do contrário da maioria das coisas. Por incrível que pareça, não é nem a metade do rabugento que pode parecer nestas linhas acima. Quem o conhece sabe. Geralmente não fala de si mesmo na terceira pessoa, como agora, mas pareceu legal neste momento, porque pensa que assim se entenderá melhor, como outro olhar olhando de fora. Nova ilusão que agora persegue, essa, de descobrir sua própria identidade.