ELEGIA À MUSA

Como sentimento estranho, insinuou-se em minhas entranhas com imenso, silencioso e hermético olhar. De minha sonolência diária despertou velhos fantasmas e com eles tem me assombrado com  prosas que não tenho condições em trazer à luz ou dar-lhes nomes e vestir-lhes adjetivos, e quedam assim, como insensatos e patéticos anseios da expressão.

Sinto-me febril ante este turbilhão fugaz que lampeja em meu consciente; se não se veem no papel vão para daqui a pouco ressurgirem com nova voragem, agregados, esfarrapados, alinhavados em fragmentos que rasuram bordas de jornais, guardanapos de bares, canhotos bancários..., numa confusão que leva-se semanas até que ganhem mínimo sentido, se é que há sentido no sentir.

Nos desvãos de meu peito, de sua imagem brotam mais vozes do que possa balbuciar  minha língua aprisionada, e o espaço de meu corpo estarrecido é mero diapasão de ecos estraviados; em suas reentrâncias engendra-se à revelia fantasias alinhavadas em palavras esquálidas e vocábulos esdrúxulos e inúteis.

Alheias ao finito que sou, brutas e impuras, em carnavalesca procissão de redemoinhos, engendram tramas descarnados e exigem de mim lucidez imprópria; de meus farrapos restos de um corpo com que gozem as delícias do escrito para desfilar nos palcos armados das ilusões.

Incubados em minha fantasia, despertam em tumulto exigindo que lhes deem as formas de pétalas onde pendam letras vibrantes, e as ofereçam à polinização num mundo dos sentimentos áridos de que estou; se me recuso, vão para daí um tempo circunvoltear em novo sentido; como sofro aqueles grandes olhos postos em mim! Ou como flor infecunda perdem o vigor e murcham sem o fruto escrito da continuidade germinal, em letras que brotam amarguras de minha secura!

Em alguns textos desfilam assim, com a impressão de incompletos, como faltos de personalidade, numa sucessão de trechos que bem poderiam terminar em um livro, mas no entanto quedam-se ora frases de poucas palavras, ora textos que mal chegariam a meia página, ora outros que necessitariam várias dezenas de papéis, mesmo que avulsos.

Outras deixam-me a sensação de que do jeito que se encontram, se bastam; e não há ânimo ou sequênciamento que as façam mudar de rosto, ou vocábulos que lhe caibam sem que me tragam a impressão de vagueza ou orgulho, de nulidade ou destemperança.

Alguns chegam em horários impróprios, para logo secarem-se ou permanecerem incólumes e indescritíveis quando minha disposição se faz forte e pronta a colocá-las no papel. Sem descanso, em indescritível confusão de aleatórias palavras desconexas, poesias inacabadas, prosas absurdas, crônicas indecentes, estilos amorfos e incriados, gravitam em minha imaginação como inspirações desnudas e disformes, deixando a impressão aos que comigo convivem que ou estou louco, ou sigo acometido por um imaginário de fantasias superficiais:

Ingênuo, exagerado, magalômano e insincero.

Reprovam-me os dilemas pueris, exigem-me clareza e sentido, cobram-me a banalização dos sentimentos como o fazem esses homens e mulheres que, um dia enamorados, perderam-se no quotidiano das instituições humanas, e seguem, olvidados dos sonhos que um dia foram.

E assim sigo, aturdido, improfícuo, amargando no silêncio do olhar estático esse enxame de ideias que pululam em meus sentidos, e saltam como desejos insaciáveis. Dividido entre pedir que a musa se cale ou se abandone em mim, ou temeroso em aqui ficar, mortal petrificado, máscara insciente sem nada para descrever que não a nulidade de que sou feito.

Eu, o que menos condições tem neste momento de adeus, na decisão insalubre do abandono resignado, tenho a penosíssima missão em tecer nos fios da vida esse revoltear de anseios desconexos, de mundos absurdos e inexistentes que não no coração dos que se encontram enlouquecidos pela paixão também enlouquecida.

Eu, em cujos sentidos digladiam-se sonhos em extravagantes desfiles, sinto no ar a insinuação de promessas a mim não destinadas; como um afogando, debato-me para  em seguida imergir nas águas do afastamento, sem salvação, sem tino... e sem promessas vãs.

Eu, que sinto no ar o hálito das asas diáfanas das carícias, ácidas lágrimas furtivas num rosto de horror embranquecido; eu que corro em sonhos sem amarras; eu, que enfrento o vendaval da distância!, sinto-me condenado ao afã insuficiente da descrição ao que é humano todos os gestos do teatro da vida dos que um dia estiveram no paraíso enamorado.

Tudo tem sido assim..., natimortos não por falta de tentativas, como este impulso que agora refaço, mas por falta de palavras, por falta de ardor, por falta da genialidade ímpar em dar-lhes face no tempo infinito e inamovível da memória do mundo.

Fujo de esgotar em mim esta torrente e este adeus, razões de minhas efêmeras  melâncolias, e me consomem como cansaço de vida.

Ai de mim, que neste mês primaveril, sinto-me tímido e temeroso como velho violino sem acordes, barco sem velas, vaso sem flores.

E levanto mecanismos de defesa que me impeçam cair no desespero de todas as derrotas e de todas as partidas, e que essa imperfeita mania de perfeição venha me demover das empreitadas que é o escrever; de abismar ao término desta, que poderá ser minha última prosa.

-x-

Escrito em algum mês perdido de 2004