CAIM DE SARAMAGO A LA DENSER

Em 2009 dois escritores de expressão lançaram um livro sob o mesmo título, são eles José Saramago e Márcia Denser.

Ladies first, comecemos pelo Caim de Márcia Denser, o primeiro personagem não personagem criado por uma escritora. Sim, não me lembro desde a paixão que nutri pela leitura dos livros de Dóris Lessing, de nenhuma escritora que tenha minimizado tanto a presença do personagem masculino como la Denser. O Caim de sua autoria dá apenas o título do livro, no mais ele é todo ausência, residindo nessa ausência sua grandeza como personagem.

Aficcionada por mitologia e filosofia, Márcia Denser é a maior diva do romance negro brasileiro. Como prólogo de seu livro ela põe a citação bíblica “E Abel não deixou filhos”. Oras, embora os cristãos de carteirinha não gostem que se fale numa mitologia cristã, Caim e Abel são dois personagens míticos, ou, melhor, simbólicos, caso assim o prefiram. Um representaria o mal com sua mancha na testa e outro representaria o bem. Como se o bem e o mal não coexistisse dentro de quase todos os seres humanos, seja em proporção máxima ou mínima nos extremos dessa coexistência. Posto o quê, no livro de Márcia Denser, seu não personagem por uma razão muito forte é completamente ausente, embora tenha engravidado uma das duas irmãs, únicas remanescentes de uma família diaspórica, como tantas há no mundo dito globalizado. São essas duas irmãs as únicas personagens presentes no livro, de cabo a rabo, na noite que antecede o nascimento do bebê, filho de nenhum homem, como tantos há em todas as classes sociais do Brasil e do mundo.

Na orelha do livro, Ítalo Moricone escreve que Márcia Denser faz poesia, mas nada diz sobre o enredo do livro, sendo essa uma das orelhas mais interessantes que já li. Digo apenas que Caim falta ao enredo, é um homem que não se apresenta ao processo que desencadeou ao gerar um filho. O mais são os diálogos e as recordações dessas duas mulheres, uma grávida, a outra com cara de erudita. Não, não adianta insistir, em nenhum momento nenhuma das duas alude ao nome de Caim. Embora todas as páginas desse excelente romance sejam permeadas por sua ausência.

Respeitarei a linha introdutória de Ítalo Moricone, manterei no mais o mesmo silêncio sobre a poética do romance.

O Caim de la Denser é tão bom quanto o de Saramago. Se Caim é ausente Abel não deixou filhos, quem os deixou foi Caim. Mas José Saramago em seu romance de mesmo título esterilizará essa ideia. Para Saramago Caim é um anjo caído, como todos os homens, é um herói mítico não reconhecido como tal através dos tempos. É sujeito luciferino, num sentido de cheio de luz, que jamais mereceria ser demonizado.

Abel ao ofertar prendas melhores do labor que Caim ao Senhor, na visão de Saramago, embora não o deixe explícito na maneira vulgar a que me proponho, teria sido o primeiro puxa-saco da humanidade, humanidade essa que Saramago rejeita brilhantemente em sua forma e conteúdo. Em sua visão de ateu e grande humanista.

Em Saramago, Caim passa por diversos presentes e diversos passados, é amante de Lilith e nela faz um filho, está presente como testemunha ocular no momento da destruição da torre de Babel, de Sodoma e Gomorra, e em outros momentos simbólicos da constituição do pensamento do mundo ocidental cristão.

Em comum, curiosamente, tanto o Caim de Saramago quanto o de Márcia Denser são figuras ausentes para o filho que veio no caso com Lilith, e o que ficou por vir no romance da autora brasileira. Mas os motivos dessa ausência são radicalmente opostos. No romance de Saramago são explicitados com ênfase, no de Denser permanecem como uma aura negra de mistérios que os leitores cultos poderão imaginar. São dois livros essenciais não muito fáceis de ler seja para homem ou mulher, ambos provocam uma dor salutar na abertura das nossas consciências.

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 01/01/2010
Código do texto: T2006142
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