Inventário das coisas ausentes

Inventário das coisas ausentes é o quarto romance de Carola Saavedra, autora de Flores Azuis, Toda Terça e Paisagem com dromedário. A autora em seus primeiros romances primou por não se referir a dramas políticos e, ao desarticular seus personagens da história trouxe aos leitores, ao menos aos leitores das gerações dos anos 60 e 70, uma nova possibilidade de leitura de dramas humanos, que, mesmo no curso dos processos políticos (seja em regimes fechados ou em democracias) ocorrem de toda forma. Autores como João Gilberto Noll já vinham a criticar a obrigatoriedade de sempre haver uma pincelada política na prosa dos escribas brasileiros, sendo ele mesmo (Noll) autor de romances como Harmada (talvez o romance mais compassivo da literatura lusófona), no qual praticamente não há nenhum fundo político, além, claro, do contato dos personagens com outros personagens resultantes das interações biopsicossociais na estratificação da pirâmide social.

Há, entretanto, no texto do novo romance de Carola Saavedra mais alusão ao presente do que ao passado, isto é, a percepção dos personagens que vem do passado sobre os personagens do presente – uma ruptura da comunicabilidade recorrente mesmo em famílias cujos ancestrais não tiveram atuação política de comprometimento, isto é, caso a autora quisesse escrever um romance sem conexões com referências toponímicas e eventos políticos acontecidos em tais lugares seria possível. Conflito entre pai e filho. Incomunicabilidade entre gerações. Gente que vai ( ou foi) à luta e os que se engajam na inação.

E quantos são os jovens ( homens e mulheres) engajados na inação nos dias atuais? É contra esse desengajamento desengajado, que, sem ódios, mas com um olhar atônito, se levanta a prosa de Carola Saavedra, a inventariar possibilidades de coisas ausentes demandantes de coragem para viver ou enfrentar a vida. O pai personagem narrador de situações tangenciais ( fragmentações do texto) é, talvez, personagem fragmentado pela história, mas inteiro como homem, ser humano, sujeito pensante para além do seu próprio umbigo; pensa sobre o filho que nada representa a não ser um futuro sem representação, que não se projeta ou regride para como mola propulsora lançar-se a um tempo de existência.

Em entrevista concedida a Guilherme Sobota, em abril de 2014, o entrevistador faz a seguinte pergunta a autora:

As ditaduras e os regimes militares (mais de uma vez e em mais de um país) aparecem na narrativa, e de maneira determinante para os personagens. Você vem do Chile e há muito mora no Brasil. Qual é a sua preocupação com essa carga histórica em relação à sua própria ficção?

Sempre quis abordar esse assunto, que faz parte da minha vida, e direta ou indiretamente da história da minha família. Após o golpe, a família se espalhou pelo mundo, alguns por motivos políticos, como meu tio que era líder sindical e teve que se exilar na Dinamarca, e outros, como meu pai, forçados a um exílio econômico. Mas eu sempre achei que para certos temas, os mais complicados, eu precisava de mais tempo e maturidade para abordá-los. Entre eles, as relações familiares e a história política tanto do Brasil quanto do Chile. Neste livro agora faço uma primeira aproximação. E meu personagem preferido é justamente esse homem, que é preso e torturado durante a ditadura, que deixa a mulher grávida quando invadem a sua casa para buscá-lo, e que ao voltar tem um filho pequeno. Esse homem que sofreu as maiores violências, quando volta está física e emocionalmente destruído, não consegue mais se comunicar com o mundo, e muito menos com esse filho.

Note-se aqui, que mesmo muitos homens e mulheres, pais e mães, da mesma idade dos genitores “desse filho” sofrem dramas semelhantes ao do pai do personagem filho, do romance Inventário das coisas ausentes. Ainda que não tenham sofrido o diabo nas mãos de carcereiros e torturadores. Ainda que não tenham sofrido exílios. Ainda que tenham oferecido oportunidades maiores das que tiveram quando jovens para se estabelecerem. Parece que, hoje em dia, filho é bom mais dura muito, isto é, demoram a sair da barra da saia da família. Não é incomum pais de mais idade ainda não poderem morrer, sob pena de o filho virar mendigo, pois vive subsidiado, seja por incompetência, seja pela realidade do mercado de trabalho, onde muitos dos que tentam trabalhar trocam tanto de emprego que chega um momento em que não há mais em se empregar ou se recomeçar.

Carola Saavedra não se prende a esquematismos e preconceitos, seu romance poderia ser considerado uma saga familiar, algo abominado hodiernamente pelos críticos. Até porque sagas familiares são permeadas por incestos, ascensão e decadência. Incêndio de casas centenárias. Mas no Inventário das coisas ausentes o que a escritora inventaria são as volições humanas e o que a partir delas se pode construir, exceto quando não há mais nenhuma volição a mover o mundo.

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 16/05/2014
Código do texto: T4808535
Classificação de conteúdo: seguro