Ulpiana – Editora Alápis- 2019. Um romance de Bernadette Lyra

Em seu romance Ulpiana, a escritora Bernadette Lyra, logo na contracapa, em trecho escolhido para ilustrar a prosa poética da autora, nos brinda com a imagem do torso de uma mulher fletido sobre a cabeça, que nos remete a imagem da famosa escultura de Rodin feito sobre o desenho do pescoço e costas de sua amante Camille Claudel. Pois o texto trata de tânatos – a personificação da morte–. Eventualmente causada pelas cruzes que uma pessoa (homem ou mulher) carrega. Há um suicídio como leitmotiv do texto.

Porém seria esperar muito pouco da romancista o átimo de tempo entre a queda e a morte. A autora nos fala de tempos mortos capazes de ressureição: milagre que só a boa literatura consegue. Esses tempos mortos clamam pela continuidade da vida. Estranhamente não causam no leitor sensações de memórias ou recordações.

Vale recordar a famosa frase de Jean Paul Sartre: O inferno são os outros. Genialmente arrematada por Hélio Pellegrino: O inferno são os outros e o céu também. Mas nos escritos do romance Ulpiana não há céu. Há apenas queda, não no sentido de cair em pecado dado pela tradição judaico-cristã. A queda é a morte e a morte é a queda em câmera lenta, apesar de abrupta. Pecar, no sentido já referido, também representa uma vontade. Mas a queda tratada por Bernadette Lyra é causada por uma falta de vontade de dar continuidade à vida.

Vida de uma personagem impedida de criar qualquer realidade para si mesma, na qual o poder das circunstâncias é inarredável e toma pé de tudo. Ao ponto de a morte parecer um vício reincidente e torturante, que mata aos poucos uma mulher matada por tudo que a envolve sem poder envolver nada. Dona de um destino trágico e fatal.

Claro que os filósofos e muitos homens com veleidades intelectuais pensam ou pensaram a morte muito além da eternidade da alma, desde Epicuro, ou antes. A morte não existe em outros planetas, não existe na Lua. A morte não é apenas uma invenção humana. Mas pode ser inventada. Consciente ou inconscientemente, alguém pode inventar a morte de uma pessoa. Somente a literatura pode inventar a morte de alguém sem se tornar culpada ou assassina.

O romance tem início, meio e fim. Mas não tem fim. A morte da mulher é muito mais inventada do que a morte do homem. E aqui não se faz a pergunta sobre a mulher ser mito ou tragédia. A mulher é tragédia, mas não é mais mito. Esse movimento de personagens femininas trágicas vem desde Medéia, obviamente, passa por Madame Bovary. Mas é a mulher sem nome quem aparece no romance Ulpiana. Personagem capaz de representar todas, porque a ela não foi permitido representar nada. Fingir nada! Dissimular nada.

É o olhar de uma mulher em um beco sem saída que entrelaça o texto até dar um nó na garganta. Um grito de silêncio só terminado na opacidade da queda.

Um não pensar nada e perceber tudo.

A morte como doença crônica clamante por uma eutanásia que não acontece. Uma mulher suicidada pelos outros tendo como única alternativa criar fantasmas para nós leitores nos estarrecermos com a percepção de uma estrada possuidora de o abismo desde o início.

É estranho como a autora consegue em parágrafos curtos causar no leitor a lentidão da ansiedade. Como se o corte nos parágrafos fosse uma retaliação da personagem pungente empurrada de forma sucessiva para a fatalidade trágica.

Belo romance. Aqui percebido como o mais rico em prosa poética dentre os livros já lidos de Bernadette Lyra. Que poeta!

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 23/07/2019
Código do texto: T6702721
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