O mar de permeio – Marly de Oliveira. Editora Nova Fronteira – 1998.

O livro O mar de permeio de autoria de Marly de Oliveira tem singularidades diferentes das que a autora de forma ímpar construiu em seus outros livros, uma dessas singularidades é a de alguma presença do mar, para a poetisa (poeta!) o mar se fez ausente em quase toda a obra. Sua metafísica é a de até onde o olhar vai, isto é, há um ponto no universo a partir do qual a autora se aferroa a fim de permitir o alcance do infinito e do finito, é isso, o finito termina onde começa o infinito e para que o finito exista é necessário um lugar a partir do qual o finito tenha condições de se expressar.

Mas ao que a poeta se aferroa pode estar em qualquer lugar, a cinestesia do corpo é a que movimenta as palavras para que referências toponímicas fiquem marcadas todas elas como o ponto do finito. E o finito é o ser diante do infinito. A configuração espacial dos poemas obedece a essa premissa na qual quem fala é quem possui o olhar e a capacidade da finitude do olhar enxergar o inalcançável.

O livro O mar de permeio começa pelo meio ou a maneira que o mar pode ser, seja como representante do desejo, seja como tinta capaz de levar o mar até onde o mar naturalmente não está.

Disse que o livro começa pelo meio, como se fosse uma pedra caída do céu a formar rodelas de águas sucessivas pela força centrífuga das águas no momento que a pedra toca a superfície, cabe esclarecer que essa metáfora da pedra não é uma declamação de algo dito no bojo do livro nos poemas de Marly de Oliveira. Este recurso faz referência ao que a poesia de Marly tem de monolítica, de algo sólido a se movimentar, algo sólido que não se desmancha no ar e apenas leva o olhar inerente à poeta a olhar paisagens diferentes sempre com o olhar do mesmo olhar como uma onda que vai e volta para ser onda, o olhar capaz de produzir metáforas e belos poemas.

Vejamos um trecho do poema A física moderna pode falar; na página central do livro:

Nem o mar é somente o mar que

circunda este mundo o mar também

é a lagoa a montanha são as árvores

que fazem a floresta-frase

que não exige o esforço da leitura

basta olhar sua forma ou melhor

sua textura.

Ao escrever o verso Nem o mar é somente o mar, a poeta na verdade subjetiva o desejo, este gigante da alma, ao colocá-lo em posição de deferência a tudo que haja além do mar, incapaz de ser tudo, mas que, presente no todo de forma humílima faz que o mar-desejo seja o lugar do finito diante do infinito. No poema subentende-se com clareza ser o desejo submetido a uma cinestesia suave e atenta, sem estar centrado em si mesmo, por que se isso acontecesse, a solidão seria absoluta e o poema perderia a vida.

No livro Marly faz menção e.e. Cummings, poeta americano nascido em Cambridge no fim do século XIX e falecido em mil novecentos e sessenta e dois.

Por justiça, cito aqui também o poeta capixaba Sérgio Blank, que como Marly e Cummings conseguem a fragmentação espontânea do verso.

Cummings é conhecido pelo estilo não usual utilizado na maior parte de seus poemas, que incluem o uso não ortodoxo tanto das letras maiúsculas e minúsculas quanto da pontuação, em Cummings, em Sérgio Blank e em Marly, essa fragmentação é espontânea, essa característica permite uma leitura suave e plena, porque não está submetida às regras de composição como ocorre na poesia concreta. Poesia concreta de boa qualidade é a que foi realizada por um seleto grupo de autores, que conseguiram fazer a poesia se vestir de poesia e não de artes plásticas, maiormente.

O poeta Cacaso afirmou que a poesia concreta foi (é?) o AI-5 da poesia, há alguma razão nessa assertiva, como há razão entre os concretistas que afirmam não serem muitos os poetas capazes de escrever bons sonetos ou outras formas prefixadas da construção de poemas.

Na poesia de Marly, de quem aqui tratamos, na de Sérgio Blank que escreveu poemas sem conhecer Cummings, há a desordem espontânea igual á fragmentação também espontânea e a linearidade dos versos “sem preocupações” com a pontuação, o olhar do leitor passeia por um caleidoscópio de metáforas sendo necessária a fixação completa do olhar para a leitura do poema. Mas na obra de Marly, salvo melhor juízo, esses poemas a maneira de Cummings estão presentes apenas em O mar de permeio, onde as palavras parecem dançar ao sabor das ondas; vejamos o que nos mostra, sem preocupação com o sentido da totalidade do poema, o trecho final do poema Ironia, prenhe de auto ironia:

Afinal há nervos fala chama

vento frio ou quente cama

casal conjugando o que é fatal

o que excede o que se mede

com réguas que não são feitas de aço

o que podia ser palavra-traço

o que podia apenas ser um traço

o que podia ser um traço apenas.

Diversamente de Sérgio Blank, Marly conhecia Cummings quando escreveu o livro O mar de permeio e isso demonstra a capacidade técnica e criatividade.As emoções provocadas por Marly de Oliveira são diversas das provocadas por Cummings ou Blank, mas não cabe aqui uma análise comparativa entre os três poetas.

Nos outros livros de Marly os versos são livres, no sentido dado por Jorge Luís Borges ao que são versos livres, versos clássicos, isto é existem versos livres desde a antiguidade clássica, então os versos clássicos foram os primeiros versos livres; mas há também poemas com formas de construção prefixadas, entretanto, sem muito rigor na obediência a prefixação das palavras. É pouco, mas Isso é tudo que posso dizer sobre o livro. Porque, ontologicamente, o livro O mar de permeio ensina o leitor a não ser o mar que transborda em qualquer lugar e de qualquer maneira. Apesar do reconhecimento da autora de que a paixão é capaz de produzir boas obras poéticas, Marly pôde reconhecer a beleza dos escritos por poetas da paixão, mas a paixão em Marly é pela poesia e a poesia é mar sereno.

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 24/04/2020
Reeditado em 16/09/2022
Código do texto: T6927607
Classificação de conteúdo: seguro