Má notícia para o pai da criança. Reinaldo Santos Neves. São Paulo: Editora Patuá: 2018.

Desde o título, o livro Má notícia para o pai da criança, de Reinaldo Santos Neves, nos fala do tempo. Há no Brasil o ditame de as crianças serem o futuro da nação. Nós adultos representamos o presente. Entre os escritores há os escritores datados, cujo sentido é ambíguo, pois datado pode ter o significado de algo efêmero, efeméride, cuja duração segue o ditame de Andy Wharhol: de que Todo mundo terá quinze minutos de fama no futuro, isto é, logo será esquecido. Porém, datado pode também significar o autor capaz de em seus escritos traduzirem o espírito do tempo, isto é, mesmo séculos depois um livro, como A divina comédia, de Dante Alighieri, consegue traduzir a sua época. Shakespeare pode ser citado como escritor “isabelino”. Sem que nem Shakespeare nem Dante possam ser considerados datados (representantes de efemérides), como foram, com exceção de A demanda do Santo Graal, os romances de cavalaria, que Don Quixote colocou na fogueira, por não merecerem a eternidade.

Os contos de Santos Neves reunidos no livro em foco, conforme Paulo Roberto Sodré escreveu, no prefácio (Pág. 11), são:

Inspirados em romances tradicionais, isto é, “poemas épico-líricos, que se cantam ao som de um instrumento, quer em danças corais, quer em reuniões efetuadas para simples recreio ou para trabalho comum”, segundo Menendez-Pidal, estes contos de Reinaldo Santos Neves travam diálogo com os textos do romanceiro tradicional português, aproveitando-lhes o enredo, as personagens, alguns versos, e temas, infiltrando neles seu toque de Midas: a elaboração da linguagem.

Tradição tem o sentido do ato ou efeito de transmitir ou entregar; transferir para as novas gerações princípios e costumes, ou ainda comunicação oral de fatos, lendas, ritos, usos, costumes, etecetera de geração para geração. O livro de Santos Neves, ao inspirar-se em romances tradicionais, trata exatamente disso. Nas notas finais do autor, ao fim do livro (Pág. 119 a 124), sob o título Colher torta, está dito que os romances nos quais Má notícia para o pai da criança se inspirou:

... datam da Idade Média, por aí assim, e que são classificados como literatura oral. Ou seja, são considerados folclóricos porque, a rigor, não têm autor: o povo os criou , recriou, alternando, acrescentando, deturpando, suprimindo: fazendo o que se poderia chamar-se de recriação em cadeia.

É importante ler o texto Colher torta inteiro, pois nele há a citação dalguns textos antigos nos quais os contos de Má notícia foram inspirados. O toque de Midas do autor está em vários pontos do livro ao quebrar a narrativa linear com o uso do não só do anacoluto, mas a partir do uso de neologismos populares, com sinéquese de palavras de gêneros diferentes ou não, supressão de palavras (verbos e preposições, exempli gratia) e a utilização de “uma linguagem mais ou menos comum a todos com um leve toque arcaizante. (Colher torta, Pág. 122)”. Tudo que é muito remoto ou antigo pode ser chamado de arcaico. O tom arcaizante dos textos de Má notícia possui um viés fundamental à compreensão do livro, porque tem a função de transmitir as novas gerações de futuros pais o que vem sendo transmitido para as gerações novas (matematicamente o intervalo de uma geração para a nova pode ser considerada como o intervalo de quinze anos). E é sobre o que vem sendo transmitido de geração em geração que o livro fala.

Como são trezes contos os constituintes do livro, comentaremos cada um deles da forma mais breve possível.

1) Dom Pedro ou A massa de sangue. O conto Dom Pedro ou A massa de sangue transpõe para o Brasil realidades vindas de outros lugares do mundo; antigas realidades aqui presentes desde priscas eras. Trata do conservadorismo em sua face mais cruel, capaz de não permitir que nada se mova. Vejamos o trecho inicial (Pág. 17): “Sou filho da terra e chamo-me Eu. Diogo de Acolá era o nome do meu mais tátaro ancestral nesta terra. Ele o pai de Pedro, que de Diogo, que de outro Diogo.” Sucessivamente até chegar ao personagem Eu, que deseja ter um filho homem de nome Diogo. No conto, a exigência do conservadorismo é a de que o novo Diogo da linha geracional nasça na mesma terra. Mas, por razões do coração de Eu, isso não acontece, com todas as consequências terríveis de que as unhas do conservadorismo são capazes.

2) Donzela que vai à guerra ou a fome e a vontade de comer. Ao feitio de Diadorim, do romance Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, a personagem feminina do conto vai para a guerra entre camponeses e fazendeiros e seus soldados. O pai tentara vende-la para uma casa de prostituição, porém ainda na pré-puberdade não foi aceita, como aconteceu com suas irmãs. Seu irmão ia para a guerra, mas morrendo de morte natural, viu-se o pai à sós com a filha, vestiu-a com as roupas do irmão e mandou-a no lugar dele. O conto aborda questões de gênero e tem um final surpreendedor para os leitores.

3) O Conde D’Alemanha ou a vida na flauta. O Conde D’Alemanha é um professor de música migrado para o Brasil após a Primeira Grande Guerra, refiro-me a primeira guerra porque depois dela a nobreza alemã não foi importante quanto no advento da primeira. Donald Winnicott, psicanalista inglês, criou o conceito de objeto transferencial, algo a que o ser humano se apega simbolicamente para representar alguém amado. A flauta é, no conto, o objeto transferencial. Mas sob a ocorrência do ciúme, o amor e o ódio são tão gêmeos, que o efeito pode ser paradoxal, podendo o objeto se transformar em uma arma. O professor de música poderia ser anteavô – termo usado pelo autor para falar de um avô não muito velho, fazendo a união das palavras ante e avô - da moça filha de um homem próspero de Viana, que a contragosto da mulher, contrata o conde para dar aulas para a filha. O envolvimento gradual da mãe com o professor causa ciúme passional na filha e a arma da vingança é a flauta, em si mesmo um símbolo fálico, pois tocada pelos lábios nos remete ao sexo oral. Tal conto repete situações vividas desde priscas eras, principalmente, desde o advento do conto moderno, em período literariamente não moderno, com o livro O Decamerão, de Giovani Bocaccio, ainda influenciador de muitos autores, hoje, para citar algo diverso do romanceiro inspirador dos contos de Má notícia.

4) Silvaninha ou Má notícia para o pai da criança. O conto Silvaninha trata do desejo incestuoso, é claro que o desejo existe entre pais e filhos, Freud explicou isso na tese do complexo de Édipo. Religiosos, eventualmente, detestam Freud. Mas em relação a filhos, concretamente, existe o filho desejado e o indesejado, com todos os conflitos que os desejados e indesejados possam ter. O pai ideal seria aquele que mostrasse o desejo baseado no amor, amor que o pai de Silvaninha, sente pela filha, de forma incoercível, apesar da culpa religiosa, que não é o amor do pai ideal afetuoso e sadio. Não filho (a) que mesmo desejado às vezes não diga, meu pai nunca me abraçou, meu pai nunca me deu carinho. O perigo da concreção está em casa, registram os Conselhos Tutelares de Proteção à infância e à adolescência. No conto Florbela ou Abre a boca e fecha os olhos, o autor trata do filho indesejado, no conto em o autor fala do amor paternal carnal, tão comum nos noticiários de hoje em dia e nas ocorrências policiais.

5) Bernal francês ou não há dois sem três. Este é um conto curto belíssimo, trata do adultério e do feminicídio da adúltera. Há homens que não sabem que é melhor ser corno do que assassino. No Brasil colonial dos primórdios da nação a morte da mulher traidora era um direito legal do marido. Hoje, mesmo após a opção do divórcio, há assassinatos de mulheres pelos mais diversos motivos passionais dentro da guerra dos sexos. Que como disse Henry Kissinger, citado de memória, é uma guerra sem vencedores, porque existem muitas reconciliações. É belo o conto por conta das maravilhosas metáforas, várias delas fenomenais, como a do marido matador que ao decidir cometer o crime, porque é bom como o pão (bom provedor) e não julgar merecer a traição, diz para si mesmo querer vesti-la com “Gargantilha feita a faca, e vestido carmesim”. Há também no conto a questão da identificação projetiva, mais comum nos adolescentes, quando se identificam com quem se admiram ou sentem inveja imitativa, porém essa não é uma dedução psicanalista realizável a partir da leitura do conto, por serem todos os personagens do triângulo amoroso adultos.

6) Florbela ou Abre a boca e fecha os olhos. Entre duas irmãs belas, há que se escolher uma. O coração opina, mas não sabe às vezes se impor aos outros. O personagem central do conto é um self made man, sujeito nascido na grama, onde, nascituro, fora abandonado em rejeição. Nem branco nem preto: pardo. Queria casar com a mais nova, mas a futura sogra impingiu-lhe a mais velha, que em passeio campestres, logo depois de casada, sempre achava mais bonitos os animais pretos, enquanto a mais nova, então cunhada, preferia os brancos. Fato motivador da potencialização do amor do marido pela cunhada, irmã mais nova. O tema do conto é o racismo, somado ao sentimento de rejeição da história familiar parental inexistente, elevado de forma exponencial quando a irmã mais nova chama de preto arrenegado aquele que achava que poderia ser aceito pela mulher escolhida sem sucesso para ser a esposa.

7) Conde Olavo ou Tudo como antes no Quartel de Abrantes. Muitas mulheres ou maridos não compreendem o ofício do cônjuge. Há estórias nas quais um militar é questionado por estar trazendo o quartel para dentro de casa. É o caso do conto. E o substrato da ação é o fato de um militar subalterno ter assediado a filha do seu comandante. Sendo obrigado a reparar o dano, isto é, casar-se com a filha do comandante. A questão é resolvida militarmente, porque o que um militar aprende durante toda a sua vida é obedecer e cumprir. O conto, essencialmente, traça o perfil do homem militar, trazido para o ambiente privado de forma radical.

8) Conde preso ou os pés pelas mãos. Conde preso ou Os pés pelas mãos é um conto triunvirato, no qual os governantes são a virgindade, o estupro e a vingança. O mote do conto é a sedução, isto é, uma mulher, no caso virgem, que seduz um homem sem satisfazer em hipótese nenhuma o seu desejo. Distorção paratáxica é termo da medicina psiquiátrica e da psicanálise, que significa o arraigar de um valor de forma insofismável, isto é, tal tipo de distorção compromete o pragmatismo, e, pior, o desejo que se não é ascese é doença, aqui, embora isso não tenha sido escrito na literatura médica, no conto age como se fosse uma distorção paratáxica, algo, que mesmo não advindo de um sistema de valores incoercíveis, é impositivo inelutavelmente, até antes de ocorrer algum desfecho dramático ou trágico, cabendo aos leitores desvendarem se é isso ou aquilo o que estar por acontecer até o fim da leitura do conto. A falta de dimensionamento do trágico, principalmente no seio das religiões, é um dos maiores males do mundo.

9) Juliana Dom Jorge ou com perdão da má palavra. Cito quatro das experiências da vida: a satisfação, a frustração, a hostilidade e a dor. O suicídio é uma das formas de suprimir a dor, totalmente. Embora haja as pessoas capazes de caminhar tendo satisfação em evitar a hostilidades e a dor e, principalmente, a frustração, capaz de se transformar em ressentimento e mágoa, Juliana não está entre essas gentes boas, age como se fosse vítima de si mesma, dando razão maior ao mal que lhe fizeram do que a crítica e autocrítica, profundas, não teriam permitido. Cedo foi seduzida e abandonada, decide nunca mais ter homem nenhum, é-lhe oferecido um homossexual por uma mulher, mãe do rapaz, mas ela fica só com a aliança usada como adorno sem nunca mais ver o gay. O ressentimento a corrói até que se apaixona por Jorge, viril e carinhoso. Porém Jorge um dia, por motivo outro mantido em segredo aqui, torna-se a cada dia mais indiferente. A ilusão dura pouco e o ressentimento vira veneno. Para quem o tem o ressentimento é como um câncer; corrói a alma e o fígado. O que Juliana fará com tal veneno é de foro íntimo dela, quem ela envolverá na trama suicida também. Ás vezes a experiência não vale de nada, Pedro Nava foi um escritor defensor dessa tese. Seria esse o caso de Juliana, nesse conto rodriguiano do livro Má notícia para o pai da criança?

Há quase um ano fiz a primeira leitura do Má notícia, porém alguém só consegue escrever uma resenha quando está pronto para escrevê-la com a mais completa compreensão possível do texto. A citação de coisas da psiquiatria e da psicologia se devem ao fato de ter feito curso de especialização em medicina psicossomática no Instituto de Medicina Psicossomática do Rio de Janeiro, quando diretor o Professor Adail Ivan de Lemos.

Em outros aspectos me baseei na leitura recente do livro Sobre histórias, de C.S. Lewis (1), principalmente, a do capítulo sob o título Crítica de época (Pág. 189 a 197) do qual inferi o conceito de escritor datado, colocada no início da resenha.

Como pediatra insiro aqui a diferença entre crescimento e desenvolvimento. O crescimento é o processo de ganhar estatura e massa desde o nascimento até a estatura final orgânica alcançada por cada indivíduo. O desenvolvimento é o processo de aquisição de funções orgânicas e cognitivas, inclusive as que capacitam o homem à ascese. Não só pensando sobre os valores e as coisas que vêm sendo transmitidas desde há séculos, dissecadas e postas a nu pela literatura, desde o início da escrita.

A má notícia é que nem todos os homens conseguem superar seus traumas ou dominar os seus instintos mais baixos, podendo, até prova em contrário, ad eternum, serem pais ou mães de crianças. Até quando a humanidade irá continuar sem consideração aos erros do passado? Seja individualmente ou como um todo?

Em seu livro de contos, Santos Neves fez se mover ao tempo atual e ao futuro o espanto de como os dramas da vida são, eventualmente, com desfechos trágicos e parvos, restando à esperança nos que conseguiram, conseguem ou conseguirão ter exercício cognitivo ou espiritual para além de sistemas corruptores de ação.

1) Lewis, C. S. (Clive Stapes), 1898 – 1963. Sobre histórias / C. S. Lewis: tradução de Francisco Nunes. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018.

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 23/01/2021
Código do texto: T7166634
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