Fradique, Mendes, 1893-1944. Dr. Voronoff: romance/ Fradique Mendes. – 2ª edição. Vitória – ES: Secretaria de Cultura. 2017.

José Madeira de Freitas (Alfredo Chaves, três de abril de 1893 – Rio de Janeiro, seis de abril de 1944) foi um médico, jornalista, desenhista, caricaturista e humorista de sucesso na imprensa carioca, escritor e pintor brasileiro. É autor de vários livros; entre eles: Contos do Vigário, A lógica do absurdo, No século da cocaína, Ideias em zig-zag, História do Brasil pelo método confuso, O bom senso da loucura, Pantominas. Em todos foi utilizado o pseudônimo Fradique Mendes para a autoria das obras. Publicado em 1926, Dr. Voronoff tem apenas agora a sua segunda edição, em 2017, no livro se reflete em parte o modo de viver eclético do autor, embora não haja nenhum cunho memorialista na obra que é fruto de pura diegese; vejamos o porquê e com que possibilidades de análise literária.

O escritor ruim, melhor chamá-lo de escrevinhador, coloca muito estofo no texto. Mas não coloca forro! Um texto de excelência possui estofo e forro. O romance Doutor Voronoff é exemplo de excelente texto com estofo e forro. Cabe-nos afirmar essa verdade porque o livro em tela é extraordinário, não só por ser um romance que cuida do drama de Fausto, personagem de Goethe que vendeu a alma ao diabo em troca da eterna juventude, mas porque no livro, que apesar de não ser o único romance brasileiro que cuide do tema, pois existem outros como, por exemplo, o romance A casa do poeta trágico, de Carlos Heitor Cony, há o tratamento humorístico do drama do Fausto. Algo que, sem dúvida, confere singularidade ao romance, pois, salvo melhor juízo, não há na literatura brasileira outro escritor que tenha dado a esse tema tratamento humorístico.

Eduardo Marinho é o personagem central. Como médico não teve uma vida plena, pois, após ter clinicado por algum tempo em Guarapari, comprou por preços módicos terras praianas naquela cidade, sem imaginar que isso o enriqueceria, por serem as areias monazíticas presentes em Guarapari ricas em tório. Razão pela qual, sem precisar militar na medicina por mais tempo, abandonou a clínica para se tornar competente empresário, aclamado como o rei do tório! Capixaba radicado no Rio de Janeiro, onde construíra a sede da sua empresa.

A trama do romance ocorre nos anos vinte do século passado. Falemos antes um pouco da história da Medicina e do status da arte médica naquele tempo. A liberação epistemológica (episteme = conhecimento; logos = discurso, linguagem, palavra) da medicina se deu no século dezenove, quando a descrição minuciosa das doenças fez que a semiologia e a propedêutica médica se enriquecesse e orientasse a realização de diagnósticos antes não tão possíveis. Tais possibilidades diagnósticas ensejaram que então avançasse a necessidade de estabelecer tratamentos para as doenças diagnosticadas. A penicilina, por exemplo, foi descoberta em mil novecentos e vinte e oito, por Alexander Fleming. Na mesma década na qual doutor Serge Voronoff esteve no Rio de Janeiro.

As principais promessas do médico russo, radicado na França, eram as do rejuvenescimento certo e seguro para idosos, benefícios afrodisíacos e a possibilidade de tornar-se um super-homem de até cento e quarenta anos, algo que ainda representa um sonho da Medicina, talvez irrealizável. Isso seria tudo o que muitos homens desejariam: recuperar ou garantir a vitalidade, a plena atividade física e mental, a partir do xenotransplante ou, mais especificamente, por meio de glândulas sexuais de primatas não humanos transplantadas para homens em senectude. (1) Tudo que Eduardo Marinho, aos sessenta e oito anos, desejava, principalmente, porque se sentia irrefreavelmente atraído por Gina, a condessa de Morinelli, na verdade viúva de um banqueiro, falsa condessa, uma balzaquiana, vigarista, que via no empresário Eduardo a possibilidade de status social e vida fácil, visto já ter gasto boa parte da herança do primeiro marido, era rejuvenescer.

Pensar num drama de Fausto relativo à atração de um homem sexagenário por uma balzaquiana faz o leitor pensar que se trata de um drama de Fausto a meia-boca, porque no drama de Fausto verdadeiro a mulher é uma moça jovem, muito jovem, uma Lolita. É essa meia-boca o estofo humorístico do romance, o diversionismo que quebra a linearidade. No caso porque o enlace carnal é facilmente possível, esperado e antecipador do êxtase, que, porém, não acontece, porque Eduardo falha na hora da relação concreta corpo-a-corpo – na medicina legal também chamada de congresso carnal -. Fato que o faz se decidir a realizar a operação do doutor Voronoff.

Entretanto, Eduardo Marinho tem uma família, constituída por pai e filha (Glorinha), de quem é pai adotivo, porque amparou Ruth (mãe de Glorinha), logo que seu marido, Maurício Dawidson deu um desfalque nos cofres na Monazitic Sands (empresa de Eduardo) e sumiu, tendo sido Glorinha criada por Eduardo como filha. Eduardo morava numa casa no bairro Engenho Velho (atual Maracanã), na Rua São Francisco Xavier. Na qual recebe amigos de forma pródiga, entre os quais literatos da época como Bastos Tigres e Emílio Meneses e Rafael Gonzaga, comediógrafo, personagem fictício, espécie de rêmora vivendo das sobras do empresário tubarão Eduardo Marinho. Casa na qual é cercado por criados como dona Sinhá e o negro Nestor, entre outros. Onde recebe o médico Angenor Porto, que, juntamente com o comediógrafo estabelecem cumplicidade e conluio com Eduardo para que seja realizada a operação de rejuvenescimento sem que ninguém saiba, o que em si mesmo causa narrativas hilárias. Operação que de fato se dá, não com glândula de macaco, e sim com glândula de um jovem belga, o que potencializa o “rejuvenescimento”, causando desequilíbrios entre as partes do corpo revitalizado e as teimosamente em senectude.

Rejuvenescido em parte, Eduardo não se importa quando Gina, a falsa condessa se casa com outro homem, mesmo tendo reinvestido várias vezes sobre Eduardo, após a falha no concurso carnal. Algo que espanta Glorinha, pois o pai negligenciara dela, filha, em prol da condessa, várias vezes. É a partir desse momento, que termina o drama do Fausto ao feitio de meia-boca e começa o drama fáustico de verdade.

O rejuvenescimento causa grandes perturbações somáticas e psíquicas em Eduardo, que passa mal, adoece, mas que não desiste da juventude e se nega a reoperar para a retirada da glândula enxertada. Passando a ter comportamentos inescrupulosos relativos à maneira como olha moças, seja uma criada da casa, seja uma funcionária da empresa. Pueris comportamentos esses que fazem a empresa ter dificuldades financeiras por má gestão. Comportamentos que fazem os amigos desaparecerem da casa de Eduardo, que fazem Eduardo ter seu ciclo social reduzido à família, isto é, aos criados e a sua filha Glorinha, e seu amigo Gonzaga, o comediógrafo, que permanece como único amigo a continuar a frequentar a casa do antigo bem sucedido empresário.

É quando Eduardo percebe Glorinha de outra maneira, enxerga-a como uma mulher, mulher de quem não é o verdadeiro pai. Mas que criara como filha. Algo que pode ter contribuído para a crise apoplética da qual se recupera, para cada vez mais se imiscuir inconvenientemente na vida de Glorinha, essa, sim, irresistível Lolita! Comportamento que Glorinha percebe. Sofrendo o conflito entre continuar a ser carinhosa com o pai ou se esquivar, repudiá-lo. Algo que não conseguirá depois de o pai revelar não ser Glorinha a sua filha biológica, mostrando-a as fotografias do pai e da mãe, nunca vistos antes pela moça. Feita a revelação, essa é a hora que o pai adotivo a pede em casamento, lhe dando um prazo para até o dia seguinte de manhã responder sim ou não!

Quando Glorinha vê Eduardo ter nova crise de saúde, lhe garante que faria tudo que ele quisesse, porque, afinal, fora Eduardo que fizera Glorinha acontecer de ser tudo que ela era. Porém, Eduardo morre, antes de qualquer consumação de casamento. Morre dizendo-se feliz! Felicidade irônica, afeita ao propósito humorístico do texto.

Quanto ao estofo do texto, ele se dá, não só pela presença de diacronismos, isto é, linguagem de época. O termo apoplexia, por exemplo, já caiu em desuso há muito tempo. Há o bom estofo porque há a descrição da festa para os amigos de Eduardo, no casarão cujo acesso passa por uma alameda de bambus, já dentro do quintal. Festa em que a presença de uma banda de jazz se contrapõe, em remelexo, à tradição da belle-époque, em confronto com os saraus de piano entre outras características daquele tempo. Dá-se por conta da presença de figuras de época, como o do citado Pitigrilli, jornalista e escritor italiano, que engendrava comentários ácidos e humorísticos sobre a sociedade e os costumes. Dá-se por conta das discussões sobre teatro e literatura.

O estofo do romance faz o leitor passear entre Guarapari, o Rio de Janeiro e Vitória, com supimpa descrição desses lugares e dos fatos neles acontecidos. Entre esses, quando Eduardo foi à capital do Espírito Santo, na companhia do amigo Gonzaga, resolver problemas empresariais e familiares, relatando nas páginas do livro as diferentes maneiras como Eduardo e Gonzaga viveram aquela viagem. Estofo que conta, com bom forro, com a participação da caracterização dos amigos de Eduardo, principalmente, o Gonzaga, o doutor Angenor Porto, que aceitou dar apoio à cirurgia porque Eduardo não tinha mais jeito, entre outros. Estofo que conta com a caracterização dos criados, principalmente, dona Sinhá, com seus óculos de fundo de garrafa que lhe aumentava os olhos sensíveis a tudo que acontecia no entorno.

O que mais surpreende no romance Dr. Voronoff são as relações entre a medicina e a literatura. O sonho da virilidade estendida às idades mais extremas não morreu com o fracasso da proposta cirúrgica do Dr. Voronoff, hoje em dia há soluções farmacológicas para ampliar a capacidade da ereção masculina com os medicamentos citrato de sildenaflina, conhecido como Viagra, ou o citrato de tadalafila, conhecido como Cialis. Recursos farmacológicos inexistentes na época dos fatos do romance em tela, que, eventualmente, terminam no infarto do miocárdio de quem os usa sem cuidados e que são objetos de textos literários ou de filmes, como no filme Bela e jovem do diretor de cinema François Ozon, quando um senhor de cabelos brancos morre na cama ao se relacionar com uma ninfeta de dezessete anos.

Surpreende mais ainda ao leitor atento encontrar no texto deuterogonistas – termo usado por Carlos Ceia em seu livro A construção do romance para dar maior valor aos outros personagens que não o protagonista – (2) dialogando com a mesma tragédia, cada um deles podendo ser protagonista, caso fossem eles mesmos os narradores da história como agentes ou vítimas do enredo. No livro Dr. Voronoff os outros personagens não são meros coadjuvantes, cada um deles intriga o leitor, criando mais vontades de interpretação do texto. Característica que dá ao livro ares de pós-modernidade, não só devido ao hedonismo presente, mas porque ao final da leitura, com a morte de Eduardo, se dá a sensação da existência de uma bomba-relógio com potente poder de implosão também dos deuterogonistas..

Madeira Freitas, médico que atendia pacientes em consultório na Cinelândia, ao mesmo tempo em que assinava páginas satíricas e charges como Mendes Fradique – simplesmente foi e é um dos mais importantes e mordazes humoristas brasileiros do começo do século XX –. Seu romance Dr. Voronoff, cuja prosa transcendia os das narrativas simplesmente lineares ainda produzidas à época, intriga o leitor desde o início. Nos fala do estado atual da arte médica nas primeiras décadas do século passado, nos leva à antecipação do pós-modernismo, quando o modernismo iniciado com a semana de arte moderna de mil novecentos e vinte e dois ainda não saíra dos cueiros.

1) Moehlecke, Renata. As excêntricas fontes da juventude do Dr. Voronoff. https://agencia.fiocruz.br/as-exc%C3%AAntricas-fontes-da-juventude-do-doutor-voronoff . Agência Fiocruz de Notícias: Rio de Janeiro. 2007

2) Ceia, Carlos. A construção do romance. Editora Almedina: Coimbra. 2007.

Nota: resenha publicada no link:

https://www.recantodasletras.com.br/resenhasdelivros/7222806, em 03/04/2021.

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 03/04/2021
Reeditado em 03/02/2022
Código do texto: T7222806
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