No escuro, armados: contos/Marcos Tavares 2ª Ed – Vitória, ES: Arte e cura. 2017.

Marcos Tavares nasceu em Vitória (1957 –). Chegou a estudar Matemática e Economia na Universidade Federal do Espírito Santo, graduou-se em Letras pela Universidade estadual de Minas Gerais. É membro titular da Academia Espírito-Santense de Letras. Afeito a neologismos, se autodenomina poemador e contista, surgido no boom da geração literária dos anos 1980. Já premiado em certames literários, publicou o livro de poemas Gemagem (2005); antes publicara o livro de contos No escuro, armados (1987); republicou a segunda edição do livro de contos No escuro, armados (2017), seus textos dota-os de efeitos vários, tais como: neologismos, anagramas, polissemias. A segunda edição do livro comporta textos de fortuna crítica, num total de sessenta e oito páginas, que fazem comentários gerais sobre o livro.

No escuro, armados possui orelha, escrita por Oscar Gama Filho, desafiadora; nela se discorre sobre os recursos técnicos do autor, sua capacidade de uso de figuras de estilo, uso de neologismos; e até que a ficção do autor pode ser considerada neobarroca. Mas não será utilizada como guia para a análise literária do texto, porque transformaria a resenha em teoria literária. O livro abriga vinte e seis contos, divididos em duas partes: Babel revisitada e Os outros, cada uma com onze e quinze contos, respectivamente. Afora a orelha erudita, o livro contém também os itens A justificativa do projeto e Prólogo mais ou menos, e é dever citá-los, antes de começar as considerações propostas.

1) E o primeiro conto da parte Babel revisitada: A sete chaves faz o elogio da palavra helênica e cristã, simultaneamente, tornando coisas que, eventualmente, se repelem uma unidade. O conto faz referência a citações do Apocalipse e a central é a seguinte: “...” o que tem a chave de Davi; o que o abre, e ninguém fecha; e fecha e ninguém abre.” (Apocalipse,III:7). Os personagens do conto são Ulysses e Calypso, ninfa do mar moradora da Ilha de Ogígia, na qual Ulysses aportou para repousar da viagem de volta a sua casa, tendo sido sensualmente aprisionado por Calypso, que o impedia de seguir viagem, até que Zeus mandou Hermes (o mensageiro) ordenar a Calypiso a libertação do herói. E é metaforicamente, sem a citação de Hermes, que o autor se refere à chegada do deus do vento no início do conto:

Em sopro, correntes de ar faziam-lhe a torto o corpo, e, rentes à cabeça, tendiam a arremessar ao léu o seu chapéu. Que extraordinário, o autor consegue ajustar duas peças de lego completamente diversas numa unidade: a tradição cristã e a herança helênica!

2) No segundo conto da primeira parte do livro, sob o título O detento SSO ou Vox Populi, o detento é o homem calado do presídio, enquanto os outros jogam xadrez, ele joga sozinho jogo da velha, jogo que desenhado no papel remete à imagem da grade do xadrez (prisão). Prisão não feita apenas de concreto, porque SSO é prisioneiro da sua incapacidade de articular discurso inteligível, o que é mostrado ao tentar preencher espaços no exercício de correspondência de colunas, na primeira coluna provérbios populares com espaços vazios: tal como A ocasião faz o ..... , que teria de ser preenchida com a palavra ladrão, mas é preenchida com a palavra homem, que deveria preencher outra lacuna . Deixa de preencher duas lacunas, as demais são preenchidas de forma aleatória na demonstração da lógica da ignorância sobre o que é não conseguir se comunicar consigo mesmo, prisioneiro de presídio em ilha de segurança máxima, cercada por jacarés, onde, desde a cela, planeja uma fuga impossível.

3) No conto terceiro do livro No escuro, armados, sob o título Excertos, em si ambíguo, o tema é o da ideação suicida, narrado na primeira pessoa, mas como se houvesse outra, um eu dividido entre o se manter e o se extinguir, fenômeno que acontecesse em pensamento delirante, tangente à finitude provocada, com palavras que se referem à primeira pessoa em negrito no diário duma personagem (eu), entre 16/JAN/75 e 16/DEZ/75 e talvez além. No conto o autor usa a sinéquese (termo da medicina representativo de colagem patológica de articulações vizinhas), usado aqui como recurso estilístico eivado de significado e de sentido, porque, ao unir palavras como em Ó deusgraça, palavra inexistente, mas que, fruto de união de duas palavras diferentes ganha significado de súplica, como se a desgraça comportasse um deus tornando-a graça, e esse recurso é repetido algumas vezes. Para, ao fim do conto, na condição de autor o narrador pedir piedade por não ter culpa de nada, numa demonstração da independência entre o eu, da ideação suicida, e quem o narra na primeira pessoa. A sinéquese das palavras une palavras de gêneros diferentes representativas do sim e do não, como respostas à morte.

4) No quarto conto, Conversação de anjo, o autor nos revela o que só os amantes amantíssimos sabem: no amor só é bebida a embriaguez, e, Lúcia, massageada, lhe traz aroma de perfume, sob carinhos no corpo, pois, de fato, há certos anjos que nos abaixam a guarda, e há uma corridinha à porta do quarto, preocupação rápida em vedar o orifício da fechadura, para que o momento da intimidade seja compartilhado apenas com os leitores, sem exibicionismos, porque o erotismo possui um pudor doce, sem ser possível concordar com Carlos Drummond de Andrade, que escreveu, Oh! Sejamos pornográficos (docemente pornográficos). O que não macula o fato de o conto vivenciar a alegria de Eros, o Eros em contentamento, dentro de quatro paredes nada olímpicas, isto é, simples, como a amorosidade verdadeira é. Poderia aqui citar as metáforas eróticas várias; citarei apenas uma, contida no texto: “... a mão aliciante, posta no fogo. Em teia de aranha, bem na mosca”. E que pequena morte é o amor! E quantas ressureições ele proporciona.

5) O conto O último trago ocupa a quinta posição entre os onze contos do livro No escuro, armados, nele o autor nos revela como o apego é viciante, o vício em questão é o do etilismo vivenciado dentro do Bar do luar ao contrário, a lua evoca tristezas, o luar ao contrário é o do contentamento, é o de quem está prazerosamente no mundo da lua, representado pelo bem-estar do bebum com a ambiência, a da mulher que aparece na telenovela, a do jogo de sinuca, a soma de todas as coisas existentes num amado boteco. A intenção do alcoolista, já com a mesa cheia de cascos de bebida, é a de tomar o último trago, mas largar o prazer da ambiência real do bar é difícil, é como se fosse uma morte, representada pelo revolver dentro da calça, causando o dilema entre o suicídio, porque o bolso está quase todo vazio de dinheiro, e a constatação de que alguma coisa precisa se feita. Nada vale quase mais nada, exceto o revólver, alguém pergunta, quando o cano já está apontado para o crânio: - Alguém quer negociar? Não esperem nenhuma resposta no momento, embora a resposta esteja na ambiência alheada do que possa acontecer com alguém.

6) No conto número seis do livro, sob o título De Codificações, o abuso da erudição de um professor de linguística, interpelado, via telefone, por pessoa interessada que o mestre publique numa revista um artigo, mostra que a erudição pode ser bela, quando não se torna hostil ao ponto de conceitos linguísticos destruírem a polissemia de um diálogo ou de um texto, no caso o conto, sob nossa análise. O mestre dá variadas interpretações ao que ouve, faz o uso de conceitos de teóricos, como um dito por Lévi-Strauss entre outros. A cada pergunta feita pelo interlocutor e, ao fim, reponde que não, sempre fazendo uso de citações em latim ad libitum, como se o único prazer gozoso fosse o da prolixidade ou de algo obsoleto, porque, como dizia Chacrinha, o Velho guerreiro, quem não se comunica se trumbica. E há razões inúmeras para o uso equivocado da prolixidade, entre elas a masturbação mental, na qual o sujeito toma como exclusivo de si os mistérios gozosos da palavra, sem permitir uma ação empática do verbo para o sim ou para o não.

7) O sétimo conto trata da iniciação sexual de adolescentes, o título é Empregos da língua, o autor nos apresenta o uso da língua como expressão do erotismo, duas moçoilas conversam sobre as descobertas do corpo. Mãe de uma delas tem material pornográfico em casa. É para lá que vão ambas, conversando sobre hímen sem se importarem muito com serem vestais. Trancafiadas no quarto, a menos inexperiente mostra a maneira adequada de usar a língua, cunilíngus, termo que, como acontece também com a felação, nem mesmo muitos adultos sabem o significado. Mas por que nomear a ação libidinal, se esse é um segredo guardado entre as duas moçoilas, quando a semelhante atrai a semelhante?

8) Tragi(c)rônica é o nome do nono conto e não tem a característica da formação de elenco de fatos, embora hajam fatos narradas de forma caleidoscópica, sem, no entanto, apenas elencar acontecimentos como fariam e fazem falsos escribas, elencando fato a, fato b, fato c e assim em diante, numa lista insípida. O caleidoscópio nos fornece composições de cores, sempre interessantes, e, afirmamos que esse caleidoscópio de palavras referentes a acontecimentos simultâneos é a principal virtude literária do conto. No qual há o acontecimento principal é um roubo de uma peça de igreja, sem o qual não pode ser anunciada a missa que ocorrerá no dia seguinte. A noite é longa; o conto também, e é o mais extenso conto da primeira parte do livro (Torre de Babel) e o comprimento da leitura gera um suspense porque ilude o leitor, causando-lhe a impressão de que tudo está acontecendo para que não aconteça nada. Quando o pároco, na manhã seguinte, percebe que o sino de bronze da igreja foi roubado.

9) A dor é um dos temas mais caros da literatura universal, dor de amor, dor de trauma (físico ou psíquico), dor de perdas, dor amada (masoquismo), dor da decepção, dor da frustração, dor da amputação, quando a parte amputada continua a doer, mesmo quando já não existe o membro, dor do crescimento. Mas não queremos aqui, nem, eventualmente, acolá, escrever sobre todas as representações da dor, embora não possamos esquecer a dor do alívio, quando, por exemplo, se faz a expressão de um cravo ou no momento miccional, quando a expressão vesical da urina no vaso causa também dor de alívio. No conto D de dente, décimo conto da primeira parte do livro (Torre de Babel) a dor de dente é evocada em silêncio, talvez o paciente só fale da dor de dente para dizer a si mesmo ou aos familiares ou ao chefe do trabalho que vai ao dentista, sempre temeroso de perder um dente ou com a vontade explícita de evitar a perda de um dente. A dor de dente tem embutida em si o medo, que potencializa a dor, o medo da perda de um dente, a dor da vaidade frustrada, pela perda do dente, a dor do sentimento de inferioridade causada pelo comprometimento da fachada dentária, mas o conto é curto, não pretendemos, aqui, transcender o tamanho do texto. Quem já foi ao dentista entende bem dessa dor, não é?

10) O penúltimo conto de Torre de Babel, primeira parte do livro, o número dez, sob o título Éden idem, inicia sugerindo uma pausa, pois começa, com uma linha pontilhada, como abaixo, e duas respirações, assim representadas: ..............................................................................................................................................................................................................................O texto é o de um diálogo entre uma mulher é um homem:

– Homem, tenho aqui no ventre um filho seu. – Ora, mulher, então é seu.

Mas a mulher e o homem não são os que se explicitam, eles são uma representação da realidade social, na qual, muitos homens largam seus filhos na mão da mãe e vão embora.

A pausa inicial pode representar o silêncio antes de o drama começar, mas não é porque os dois que dialogam o drama são outros que não iniciaram o drama, mas o representam. Muitos textos revelam no início, no meio ou no fim o mote condutor do fio-da-meada. Éden idem é um conto que revela no início o mote do fio da meada: a rejeição, pelo homem, de um filho em ventre de mulher.

Mas no fim do conto não é dito o que acontece, isto é, se o homem vai propor um aborto, se a mulher reage mandando o homem para as favas, porque é um conto sem fim de enredo, que pode evoluir para uma novela, uma peça de teatro com mais de um ato, ou qualquer outra coisa que o leitor possa imaginar. No conto, nem de brincadeira, poderíamos afirmar que morre todo mundo no final. Ao fim, não sabemos o que vai acontecer; como se tivéssemos assistido a um fato avulso que não pudemos acompanhar até o desfecho.Cabe-nos a ambivalência saudável de nos colocarmos no lugar dos personagens, e assumir como agiríamos no dia seguinte e desde ela ou ele.

11) O último conto da primeira parte, que se chama como já foi dito, Torre de Babel, isto é, o décimo primeiro conto, tem o título Fábula real. A chamada do conto é a situação de um rei tentando manter-se no poder em tempo de iminente queda do trono, metaforizada pela queda do rei de bruços ao levantar-se para agir, numa sinalização de que já não pode mais evitar cair da almofada real. O balde veste a água, o humor derrama. O rei está nu. Enfurecido, retomando a pose real, ao bobo da corte reclamou:

– Ora, palhaço, faça-me rir de algo! Conte uma história.

O bobo conta a história:

“Sim, Eminência. Era uma vez um rei que, na iminência de cair do trono,

inclinou-se mais para frente, e caiu de braços caídos ao chão.

O rei, enfurecido, sob o efeito do histrionismo que é a histeria do humor,

pede de novo algo para rir.

Os recursos estilísticos do autor fazem repetir a mesma história pela

boca do bobo, vezes várias.

Cair do poder dói muito, o rei nega a realidade e, antes do cair de novo,

sugerido pela história, perpetra consequências terríveis contra a verdade

da queda, algo que, sem dúvida, muitos de nós fazemos.

A segunda parte do livro No escuro, armados, de Marcos Tavares, tem o título Os outros.

1) E o primeiro conto tem o título No escuro, armados, que dá título ao livro. Os oito gigantes da alma são o amor, o medo, o dever, a ira, o humor, a dor, o desejo e o pensamento. O conto não contém nenhum diálogo, como acontece na primeira parte do livro contos com diálogos vários, vemos no primeiro conto da segunda parte (Os outros) que desde o início da segunda parte os rumos da narrativa mudam radicalmente. O desafio para o leitor é o de identificar qual dos gigantes da alma é o tema do conto. Que se inicia da seguinte maneira com a frase: No escuro, armados a amoladas foices, dois surdos-mudos-cegos duelavam. Sabemos que a comunicação depende em grande parte da audição, da fala e dos olhos. O surdo-mudo-cego é a incomunicabilidade total, mesmo porque ao surdo é necessária a leitura labial, inexistente no surdo-mudo-cego.A questão colocada entre os contendores em luta a amoladas foices é a de identificar sob qual domínio um dos gigantes da alma os mantem. Isto é, qual gigante da alma está incorporado nos adversários em luta. Cegos-surdos-mudos num conto em que no final morrem os dois ou todo mundo, porque além dos dois ninguém existia, porque a existência do outro só era percebida quando se tocavam (tato), quando se sentiam incompletos. Incompletude que é um estado do ser e que, se inexistente, só resta o nada. Qual dos gigantes da alma podem tornar pessoas surdas-mudas-cegas?

2) Ensejamos, agora, antes de comentar o segundo conto da segunda parte do livro No escuro, armados, recordar o conto Tragi(c)rônica da primeira parte (Torre de Babel). O contista russo Anton Tchekhov é o mestre dos contos de atmosfera, ambos os contos Tragi(c)rônica e Praça de espera extrapolam os demais no tangente à atmosfera, no primeiro há a atmosfera da rotina urbana, enquanto ladrões furtam o sino de bronze da igreja, furto que rompe a atmosfera da rotina, ao ser descoberto o roubo; no conto Praça de espera, é abrigada a atmosfera ainda não completamente desenhada surgida a partir do íntimo do menino feminino, com desejos feminis em seus olhinhos azuis que o fazem sentir-se estrangeiro no mundo. Mundo dicotômico, um mundo só visto por ele (ambiência1) e um mundo que lhe é hostil (ambiência2). Representativos de seu hibridismo de menino feminino. Em ambos os contos não há a integração total dos personagens com a atmosfera, como acontece na maioria dos contos de Tchekhov.

3) O terceiro conto da parte segunda, Caso moral, mostra a dificuldade de segmentos amplos da sociedade na lide com artistas, no Brasil, recente, por exemplo, a homofobia em relação a grandes artistas gays, como Cazuza, ou discriminações políticas com se deu em relação a Chico Buarque, por causa de suas posições, o que fez Chico processor insultadores. No Caso moral, o síndico de um condomínio rejeita um candidato a locador porque ele pinta nus, e, pior, tem um caso com um dos nus que pinta! Acusação inventada, óbvio, perversamente, como é comum, hoje, ou desde o advento da extrema-direita em Pindorama. Em transcendência da crítica humorística, da ironia e do sarcasmo, porque nada mais é do que a representação de um cinismo puro, infenso à autocrítica, que é o que acontece no fascismo.

4) O quarto conto tem título entre aspas “Meus meninos” e as aspas significam uma meia-verdade, claro que só doentiamente, alguém pode pensar que é dono (a) de alguém. Estão protegidos, tem mãe, que os crê unidos pelo cordão umbilical e os sente sob a proteção do útero, como somente o útero os entendesse em total pureza. Sem considerar, num viés cristão, a existência do pecado original; ou que muito excepcionalmente existe um ser humano puro; ou que dentro da pureza tudo se pode sem nada macular. Um era um ano mais velho que o outro, mas não parecia, imagem um do outro havia no espelho, mesmo que não houvesse espelho, mas havia, e, quando houve, o mais feminino se enxergou nele, enciumando o outro, que se torna enciumado sádico, enquanto o que se vira delicadamente masoquista, ainda assim puros, quando se relacionam na horizontalidade da cama, onde, descobertos, sob a emoção da mãe ao vê-los tão unidos, ouvem-na dizer “Meus meninos”.

5) O tema do incesto é muito presente na literatura, no conto não se trata apenas de incestos, há muitas mães capazes de destruir mentes dos filhos a partir do horroroso ideal de pureza com que os veste ou despe. Os meninos, puros, encontram na pureza uma liberdade total e permitida. A figura paterna não parece existir, ou existe quando a mulher se aliena dela, porque, sob o efeito da maternidade absoluta, isso lhe basta para aniquilar o resto do mundo. Mulheres que se completam totalmente com a maternidade. Aliás, num plano macro, a pureza é um dos maiores males do mundo. Muitas mulheres compulsivamente maternais, não raro, são forçadas a se perguntarem: Agora vão dizer que a culpa toda é da mãe!Viva as mulheres capazes do pragmatismo de exercer as funções de mãe, mulher e trabalhadoras. Ir além do incesto num conto sobre incesto é golpe de mestre.

6) O conto quinto, sob o título De florações é uma condenação ao romantismo, a história é a de Rosaflor, filha de Florisvaldo e Rosalinda, e a premissa é a de que o que é belo é o que é para ser mostrado, pois desde a união dos pais no nome da filha, fruto de um amor bonito, espera-se que Rosaflor floresça, na expressão da beleza idealizada pelos genitores, minha rosa, minha flor ... – acarinhavam-na. Razão e sensibilidade diferem de índole e consequência, é Rosaflor tem a índole da exibicionista, demandada, mostra a flor, se expõe. Adulteram-na as más companhias, que conspurcam sua beleza, a vizinhança afirma ela ter esse estigma (índole) da natureza se deteriorando. E se o romantismo teve o impulso da expressão das individualidades, livre escolha do amor, tem também seu lado doentio.

7) Grávida, Rosaflor aborta, e pari o desafeto dos pais abandonando-a para viverem o seu romantismo longe dela, desenhando um tipo não dialógico de conflito de gerações, e sabe-se lá quando isso aconteceu ou ainda acontece e acontecerá.

8) O sexto conto da parte secundípara, Autorretrato, é, praticamente, um miniconto. Trata da mania de grandeza, delírio megalomaníaco. Ele, o personagem, se acha o tal! Mas a sua estatura é a de ancho e baixo. O tamanho mínimo do conto também traduz o tamanho do personagem e que tais.

9) Fadações é o título do conto número sete dessa segunda parte, fadação é neologismo, não existe no dicionário. Fada e ação compõem o ajuntamento de fadação, O conto nos traz a história de um príncipe sem vocação para reinar e com voz de contralto para cantar, e de duas fadas: a madrinha e a afilhada sonhadora que não sabe dos limites impostos às fadas. Fado é destino, sorte, estrela; o que necessariamente tem de ser; vaticínio, decreto do destino. Fadas só podem fazer mágicas, não podem amar, conta-nos a fada madrinha. Mas a fada afilhada quer o príncipe. Surge outro personagem o gênio da lâmpada, aquele que satisfaz desejos. Tudo ocorre no reino de fantasias primitivas, como sói acontecer de forma espalhada. Recentemente, Maria Homem fez uma fala no You Tube sobre o Mito da Princesa, rasgando a fantasia de quem vive em esferas sonhadoras infantis. Este é o tema do conto: a história de um amor sem princípio nem fim. Sem pé nem cabeça. A nós parece que a segunda parte do livro, No escuro, armados, trata, essencialmente, da incomunicabilidade. Octávio de Farias, citado de memória, escreveu: O amor existe, o problema é a falta de comunicação entre as pessoas. E a falta de comunicação pode ser fruto de fantasias incomunicáveis.

10) Oitavo conto da segunda parte de No escuro, armados: Ao amigo Alfred é um conto temático da rejeição baseada em julgamento, há um crime de interesse causado por um fracassado, Alfred. Enquanto a ambição injusta e a cobiça, a incompetência e a falta de caráter compõem os quatro lados da moldura do retrato do personagem; diz o conto:“Se o cobrador bate à tua porta, às primeiras horas da manhã, a cobrar promissória já há seis meses vencida”; e mais adiante:“... se um ofício de justiça te intima (e igualmente intimida) a depoimento no processo acusatório de homicídio, cuja vítima foi teu avô;”. O conto é uma lauda de acusação, não apenas a judicial que há de vir, porque, se o leitor se colocar no lugar do amigo Alfred, se verá cercado por quem o ironiza ou dele suspeita. O tema é recorrente na literatura e no cinema, sinta-se quem quiser no lugar de Alfred, fica esse suspense. Os exemplos ruins possuem valor como o contrário do que se deve fazer. Entretanto, às vezes não servem de nada.

11) O salto mortal é o nono conto da segunda parte de No escuro, armados. É um conto de humor negro, embutidos nele a euforia, o histrionismo (histeria do humor) e a perda do senso de realidade como consequente. Maria das Graças, secretária, procura uma alegria, mesmo rara. Vai ao circo, sofre um acidente vascular na plateia e é socorrida pelo anão mais forte do mundo, logo ela que detestava anões. Tudo faz parte do show: o riso histriônico que lhe rompe a veia; o show que tem que continuar; os personagens do circo com suas bizarrices e tristezas e, principalmente, a parca alegria de uma mulher pobre. É raro ver acontecer um conto de humor negro de total histrionismo. Esse é o mérito do conto.

12) Opus 1 é o décimo conto. É a história de um roubo de sino de igreja, a narrativa é cinematográfica e circula no entorno do sino, que jamais será visto, embora possa ser imaginado pelo leitor, de forma imagética e afetiva. Há os gatos nos telhados e os gatunos sinuosos, enquanto tudo ocorre em surdina, como se fosse uma aventura, malfadada, porém perfeita no que tange ao roubo do sino, só percebido pelo pároco no dia seguinte, causando-nos dor e compaixão, sentimentos mais suportáveis se advindos de expressões artísticas de que naturezas várias, pois essa é a função da arte: mitigar dores da realidade como se elas não estivesse acontecendo, o que nos torna capazes até mesmo de torcer pelos ladrões, na realização de impulsos quais que a maioria não realizaria de verdade. Minimizando nossas culpas a fim de nos tornar capazes de pensá-las.

12) Fabulosa é o décimo primeiro conto de No escuro, armados (2ª parte) e a premissa a se utilizar para pensar o conto é a de que quando a distopia não conversa com a tradição a crise trazida pela distopia se acentua; se agrava e exige dos incomunicantes força de superação, às vezes e para muita gente inalcançável. Fabulosa é a voz (representante da tradição oral de contar histórias de escritores ou inventadas pela imaginação, contos, fábulas de cunho moral ou não, recitar poesias entre as quais as parlendas os poemas infantis cantados ou declamados de cor e salteado). Tornada muda e oca. No que se pode diagnosticar o processo de alzheimerirzação da vida dos idosos de várias formas apartados dos netos ou dos filhos incapazes de manter o hábito de fomentar a imaginação dos seus rebentos. A organização do conto tem numeração de parágrafos de 1 a 12, quase de forma didática, pura sutileza. Pedagogia só se deve usar na escola, quase nunca na literatura. A ironia do conto está exatamente em ser didático. O conto começa da seguinte forma (citaremos apenas a primeira frase do parágrafo primeiro: Era uma vez uma voz que, desde o tempo dos avós, nunca obtivera nunca obtivera uma vez. Note-se a presença de rimas soantes no interior da frase (vez com vez; uma voz com avós; avós com avo). E, não apenas em poemas para crianças, as rimas soantes são mais facilmente percebidas e compreendidas e sentidas. O autor usa do recurso para ser enfático a fim de que só não compreenda o incapaz (tornado incapaz?) ou os bem burrinhos. Tal paié o décimo segundo conto da segunda parte. E o desejo do marido de Maria das Dores é o de nascer filho macho, com seu nome e sobrenomes seguidos da palavra filho. Há o risco de Maria parir na rua, desmaia na frente do supermercado no início do trabalho de parto. Celular: um homem liga e chama a ambulância. Das Dores terá trigêmeos, pari duas meninas. São muitos os dramas da sala de parto. Das duas filhas nascidas o pai sabe. Gêmeas monozigóticas. Espera ansioso o filho (a) heterozigótico (a). Aquele embrião que se tornou gente em bolsa amniótica à sós (a). A possibilidade de nascer a heterozigótica, segundo a expectativa paterna, nula é! Nasce Ana, o pai passa mal. Para o bem e para o mal são muitos homens e mulheres a querer e desejar um filho extensão de si mesmos.

13) Revisão é o título do conto décimo terceiro dessa segunda parte (Os outros). Talento é nome da moeda grega clássica, dizer que quem tem muito talento, no sentido de dom artístico ou em algo técnico, é uma derivação da ideia de riqueza, fortuna, mas o revisor do jornal, antes do jornal, apesar de ter talento para as letras, não teve instrução formal, é um brasileiro que de jeitinho e jeitinho foi sobrevivendo e se aprimorando o melhor que pode, e o melhor que pode é otimamente. Dá seus palpites, que não seriam apenas palpites, se as revisões fossem, justamente, aceitas, e a revisão não é apenas a dos textos alheios mal escritos, é a da vida passada à limpo até o momento em que o se aprimorar o torna inviável para o deus do mercado de trabalho medíocre em grande parte. Provoca no leitor uma tristeza, uma sensação de degradação da potência. Um espasmo na garganta. Desde que o leitor seja capaz de se colocar no lugar do outro, algo que vem se tornando raro em nossa sociedade e no mundo.

14) O conto número quatorze dessa segunda parte é O conto Num domingo, dia de feira e nos fala do mercado informal de trabalho (lumpesinato) e da mendicância, não a de pedir dinheiro, mas a dos tristes dependentes da xepa ou da moeda perdida; é relato do que acontece na feira livre de domingo. Enternece, compassivamente, o leitor. O primeiro personagem é a mulher vadia à procura de um ponto. Feirantes com seus trocadilhos e chamadas criativas na tentativa de vender seus produtos fazem a festa do domingo, meio fim de festa, no qual os personagens sem nomes elencam maravilhosamente o redemoinho de emoções e de luta pela sobrevivência e dos ditos que a reproduzam. Retrato do país mostrado como é, tristeza em beleza e alegria esperançosa de um povo que dá um jeitinho para viver o menos mal possível de forma tão pungente e insofismável, como se fosse rotina sã viver na semi-marginalidade ou na marginalidade afeita a delitos, ainda, assim, repelidos pela maior parte de um povo honesto.

15) O último conto da segunda parte é o de número quinze, sob o título From Dores do Rio Preto, with love, nele o autor trata do tema solidão ao explorar referências toponímicas distantes do lugar no qual de fato está: diante da Matriz católica, se perguntando e se eu estivesse em frente ao Big Ben. Há uma atividade de deslocamento, isto é, o lançamento de hipóteses, sob forma de pergunta sem respostas, porque é impossível estar fisicamente presente nos diversos lugares citados se se está apenas em um lugar de onde é impossível tentar qualquer reação de fuga, exceto a delirante. O Eu lírico está na praça da Matriz católica e não está em frente a catedral de Notre Dame, nem no Louvre e daí em diante, à espera de uma carta que talvez venha de Londres, criando expectativas falsas, algo que, individualmente, é pior até do que elaborar premissas falsas, como se esse ilusionismo pudesse gerar conforto, quando é apenas uma posição esquizoparanoide ( um conjunto de ansiedades e defesas, que tentam controlar a ansiedade, mas acabam por aumenta-la, num ciclo vicioso sem fim muitas vezes). O conto aborda a incomunicabilidade do ser consigo mesmo, num enlouquecimento capaz de ser percebido socialmente ou não, capaz do sujeito transbordar a tensão a qualquer momento, em catarse, sem grande chance de ser compreendido pelos outros, situação terrível, autodestrutiva, na qual muitos se encontram sem saber a razão. Situação eivada de ideações suicidas; fantasias de fugas irrealizáveis, que podem terminar bem mal.

Procuramos, na resenha de No escuro, armados, antes de tudo, viver a vida; pois o ato da leitura é uma vivência. Tavares nos faz viver, amar, sofrer, rir compassivamente e chorar. Constatações não são pessimismos, são ações necessárias ao desenvolvimento do pensar sobre si e sobre os outros, a “apologia da incomunicabilidade” presente no livro é apenas ênfase, crítica e autocrítica diante da possibilidade de nos apresentar apenas o que se pode, não ir às fabulações mistificadoras ou arquetípicas próprias da alienação. No livro há amor, delicadeza, respeito pelos seres humanos e compreensão das almas.

O que dizer mais?

Ler o livro com a passionalidade e a razão, posta a sensibilidade a este serviço é como ter experimentado algo novo e marcante para o intelecto e para a alma, mesmo para o leitor escarmentado.

Nota: o autor fez as seguintes sugestões:

No escuro, armados: contos/Marcos Tavares 2ª Ed – Vitória, ES: Arte da cura.

2017.

Marcos Tavares nasceu em Vitória (1957 –). Chegou a estudar

Matemática e Economia na Universidade Federal do Espírito Santo, graduou-

se em Letras pela Universidade estadual de Minas Gerais. É membro titular da

Academia Espírito-santense de Letras. Afeito a neologismos, se autodenomina

poemador e contista, surgido no boom da geração literária dos anos 1980. Já

premiado em certames literários, publicou o livro de poemas Gemagem (2005);

antes publicara o livro de contos No escuro, armados (1987); no segundo lustro

da segunda década do terceiro milênio publicou a segunda edição do livro de

contos No escuro, armados (2017), seus textos dota-os de efeitos vários, tais

como: neologismos, anagramas, polissemias. A segunda edição do livro

comporta textos de fortuna crítica, num total de sessenta e oito páginas, que

fazem comentários gerais sobre o livro. Nosso texto procura analisar conto a

conto, individualizar os dramas, sem, no entanto, entrar em considerações

sobre o estilo do autor.

No escuro, armados possui orelha, escrita por Oscar Gama Filho,

desafiadora; nela se discorre sobre os recursos técnicos do autor, sua

capacidade de uso de figuras de estilo, uso de neologismos; e até que a ficção

do autor pode ser considerada neobarroca. Mas não será utilizada como guia

para a análise literária do texto, porque transformaria a resenha em teoria

literária.

É necessário que se diga algo conto a conto sem aumentar um ponto. O

livro abriga vinte e seis contos, divididos em duas partes: Babel revisitada e Os

outros, cada uma com onze e quinze contos, respectivamente. Afora a orelha

erudita, o livro contém também os itens A justificativa do projeto e Prólogo mais

ou menos, e é dever citá-los, antes de começar as considerações propostas.

E o primeiro conto da parte Babel revisitada: A sete chaves faz o elogio

da palavra helênica e cristã, simultaneamente, tornando coisas que,

eventualmente, se repelem uma unidade. O conto faz referência a citações do

Apocalipse e a central é a seguinte: “...” o que tem a chave de Davi; o que o

abre, e ninguém fecha; e fecha e ninguém abre.” (Apocalipse,III:7). Os

personagens do conto são Ulysses e Calypso, ninfa do mar moradora da Ilha

de Ogígia, na qual Ulysses aportou para repousar da viagem de volta a sua

casa, tendo sido sensualmente aprisionado por Calypso, que o impedia de

seguir viagem, até que Zeus mandou Hermes (o mensageiro) ordenar a

Calypiso a libertação do herói. E é metaforicamente, sem a citação de Hermes,

que o autor se refere à chegada do deus do vento no início do conto:

Em sopro, correntes de ar faziam-lhe a torto o corpo, e, rentes à cabeça,

tendiam a arremessar ao léu o seu chapéu.

Que extraordinário, o autor consegue ajustar duas peças de lego

completamente diversas numa unidade: a tradição cristã e a herança helênica!

No segundo conto da primeira parte do livro, sob o título O detento SSO

ou Vox Populi, o detento é o homem calado do presídio, enquanto os outros

jogam xadrez, ele joga sozinho jogo da velha, jogo que desenhado no papel

remete à imagem da grade do xadrez (prisão). Prisão não feita apenas de

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concreto, porque SSO é prisioneiro da sua incapacidade de articular discurso

inteligível, o que é mostrado ao tentar preencher espaços no exercício de

correspondência de colunas, na primeira coluna provérbios populares com

espaços vazios: tal como A ocasião faz o ..... , que teria de ser preenchida com

a palavra ladrão; mas é preenchida com a palavra homem, que deveria

preencher outra lacuna . Deixa de preencher duas lacunas, as demais são

preenchidas de forma aleatória na demonstração da lógica da ignorância sobre

o que é não conseguir se comunicar consigo mesmo, prisioneiro de presídio

em ilha de segurança máxima, cercada por jacarés, onde, desde a cela,

planeja uma fuga impossível.

No conto terceiro do livro No escuro, armados, sob o título Excertos, em

si ambíguo, o tema é o da ideação suicida, narrado na primeira pessoa, mas

como se houvesse outra, um eu dividido entre o se manter e o se extinguir,

fenômeno que acontecesse em pensamento delirante, tangente à finitude

provocada, com palavras que se referem à primeira pessoa em negrito no

diário duma personagem (eu), entre 16/JAN/75 e 16/DEZ/75 e talvez além. No

conto o autor usa a sinéquese (termo da medicina representativo de colagem

patológica de articulações vizinhas), usado aqui como recurso estilístico eivado

de significado e de sentido, porque, ao unir palavras como em Ó deusgraça,

palavra inexistente, mas que, fruto de união de duas palavras diferentes ganha

significado de súplica, como se a desgraça comportasse um deus tornando-a

graça, e esse recurso é repetido algumas vezes. Para, ao fim do conto, na

condição de autor o narrador pedir piedade por não ter culpa de nada, numa

demonstração da independência entre o eu, da ideação suicida, e quem o

narra na primeira pessoa. A sinéquese das palavras une palavras de gêneros

diferentes representativas do sim e do não, como respostas à morte.

No quarto conto, Conversação de anjo, o autor nos revela o que só os

amantes amantíssimos sabem: no amor só é bebida a embriaguez, e, Lúcia,

massageada, lhe traz aroma de perfume, sob carinhos no corpo, pois, de fato,

há certos anjos que nos abaixam a guarda, e há uma corridinha à porta do

quarto, preocupação rápida em vedar o orifício da fechadura, para que o

momento da intimidade seja compartilhado apenas com os leitores, sem

exibicionismos, porque o erotismo possui um pudor doce, sem ser possível

concordar com Carlos Drummond de Andrade, que escreveu, Oh! Sejamos

pornográficos (docemente pornográficos). O que não macula o fato de o conto

vivenciar a alegria de Eros, o Eros em contentamento, dentro de quatro

paredes nada olímpicas, isto é, simples, como a amorosidade verdadeira é.

Poderia aqui citar as metáforas eróticas várias; citarei apenas uma, contida no

texto: “... a mão aliciante, posta no fogo. Em teia de aranha, bem na mosca”. E

que pequena morte é o amor! E quantas ressureições ele proporciona.

O conto O último trago ocupa a quinta posição entre os onze contos do

livro No escuro, armados, nele o autor nos revela como o apego é viciante, o

vício em questão é o do etilismo vivenciado dentro do Bar do luar ao contrário [

ou Bar do Raul], a lua evoca tristezas, o luar ao contrário é o do

contentamento, é o de quem está prazerosamente no mundo da lua,

representado pelo bem-estar do bebum com a ambiência, a da mulher que

aparece na telenovela, a do jogo de sinuca, a soma de todas as coisas

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existentes num amado boteco. A intenção do alcoolista, já com a mesa cheia

de cascos de bebida, é a de tomar o último trago, mas largar o prazer da

ambiência real do bar é difícil, é como se fosse uma morte, representada pelo

revolver dentro da calça, causando o dilema entre o suicídio, porque o bolso

está quase todo vazio de dinheiro, e a constatação de que alguma coisa

precisa se feita. Nada vale quase mais nada, exceto o revólver, alguém

pergunta, quando o cano já está apontado para o crânio: - Alguém quer

negociar?

Não esperem nenhuma resposta no momento, embora a resposta esteja

na ambiência alheada do que possa acontecer com alguém.

No conto número seis do livro, sob o título De codificações, o abuso da

erudição de um professor de linguística, interpelado, via telefone, por pessoa

interessada que o mestre publique numa revista um artigo, mostra que a

erudição pode ser bela, quando não se torna hostil ao ponto de conceitos

linguísticos destruírem a polissemia de um diálogo ou de um texto, no caso o

conto, sob nossa análise. O mestre dá variadas interpretações ao que ouve, faz

o uso de conceitos de teóricos, como um dito por Lévi-Strauss entre outros. A

cada pergunta feita pelo interlocutor e, ao fim, reponde que não, sempre

fazendo uso de citações em latim ad libitum, como se o único prazer gozoso

fosse o da prolixidade ou de algo obsoleto, porque, como dizia Chacrinha, o

Velho guerreiro, quem não se comunica se trumbica. E há razões inúmeras

para o uso equivocado da prolixidade, entre elas a masturbação mental, na

qual o sujeito toma como exclusivo de si os mistérios gozosos da palavra, sem

permitir uma ação empática do verbo para o sim ou para o não.

O sétimo conto trata da iniciação sexual de adolescentes, o título é

Empregos da língua, o autor nos apresenta o uso da língua como expressão

do erotismo, duas moçoilas conversam sobre as descobertas do corpo. Mãe

de uma delas tem material pornográfico em casa. É para lá que vão ambas,

conversando sobre hímen sem se importarem muito com serem vestais.

Trancafiadas no quarto, a menos inexperiente mostra a maneira adequada de

usar a língua, cunilíngus, termo que, como acontece também com a felação,

nem mesmo muitos adultos sabem o significado. Mas por que nomear a ação

libidinal, se esse é um segredo guardado entre as duas moçoilas, quando a

semelhante atrai a semelhante?

Tragi(c)rônica é o nome do oitavo conto e não tem a característica da

formação de elenco de fatos, embora hajam fatos narradas de forma

caleidoscópica, sem, no entanto, apenas elencar acontecimentos como fariam

e fazem falsos escribas, elencando fato a, fato b, fato c e assim em diante,

numa lista insípida. O caleidoscópio nos fornece composições de cores,

sempre interessantes, e, afirmamos que esse caleidoscópio de palavras

referentes a acontecimentos simultâneos é a principal virtude literária do conto.

No qual há o acontecimento principal é um roubo de uma peça de igreja, sem o

qual não pode ser anunciada a missa que ocorrerá no dia seguinte. A noite é

longa; o conto também, e é o mais extenso conto da primeira parte do livro

(Torre de Babel) e o comprimento da leitura gera um suspense porque ilude o

leitor, causando-lhe a impressão de que tudo está acontecendo para que não

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aconteça nada. Quando o pároco, na manhã seguinte, percebe que o sino de

bronze da igreja foi roubado.

A dor é um dos temas mais caros da literatura universal, dor de amor,

dor de trauma (físico ou psíquico), dor de perdas, dor amada (masoquismo),

dor da decepção, dor da frustração, dor da amputação, quando a parte

amputada continua a doer, mesmo quando já não existe o membro, dor do

crescimento. Mas não queremos aqui, nem, eventualmente, acolá, escrever

sobre todas as representações da dor, embora não possamos esquecer a dor

do alívio, quando, por exemplo, se faz a expressão de um cravo ou no

momento miccional, quando a expressão vesical da urina no vaso causa

também dor de alívio. No conto D de dente, décimo conto da primeira parte do

livro (Torre de Babel) a dor de dente é evocada em silêncio, talvez o paciente

só fale da dor de dente para dizer a si mesmo ou aos familiares ou ao chefe do

trabalho que vai ao dentista, sempre temeroso de perder um dente ou com a

vontade explícita de evitar a perda de um dente. A dor de dente tem embutida

em si o medo, que potencializa a dor, o medo da perda de um dente, a dor da

vaidade frustrada, pela perda do dente, a dor do sentimento de inferioridade

causada pelo comprometimento da fachada dentária, mas o conto é curto, não

pretendemos, aqui, transcender o tamanho do texto. Quem já foi ao dentista

entende bem dessa dor, não é?

O penúltimo conto de Torre de Babel, primeira parte do livro, o número

dez, sob o título Éden idem, inicia sugerindo uma pausa, pois começa, com

uma linha pontilhada, como abaixo, e duas respirações, assim representadas:

...............................................................................................................................

– ............................................................................................................................

– ............................................................................................................................

O texto é o de um diálogo entre uma mulher é um homem:

– Homem, tenho aqui no ventre um filho seu.

– Ora, mulher, então é seu.

Mas a mulher e o homem não são os que se explicitam, eles são uma

representação da realidade social, na qual, muitos homens largam seus filhos

na mão da mãe e vão embora.

A pausa inicial pode representar o silêncio antes de o drama começar,

mas não é porque os dois que dialogam o drama são outros que não iniciaram

o drama, mas o representam. Muitos textos revelam no início, no meio ou no

fim o mote condutor do fio-da-meada. Éden idem é um conto que revela no

início o mote do fio da meada: a rejeição, pelo homem, de um filho em ventre

de mulher.

Mas no fim do conto não é dito o que acontece, isto é, se o homem vai

propor um aborto, se a mulher reage mandando o homem para as favas,

porque é um conto sem fim de enredo, que pode evoluir para uma novela, uma

peça de teatro com mais de um ato, ou qualquer outra coisa que o leitor possa

imaginar. No conto, nem de brincadeira, poderíamos afirmar que morre todo

mundo no final. Ao fim, não sabemos o que vai acontecer; como se tivéssemos

assistido a um fato avulso que não pudemos acompanhar até o desfecho.

Cabe-nos a ambivalência saudável de nos colocarmos no lugar dos

personagens, e assumir como agiríamos no dia seguinte e desde ela ou ele.

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O último conto [Nesse conto , Anaximandro Amorim apontou existência

de ritornello] da primeira parte, que se chama como já foi dito, Torre de Babel,

isto é, o décimo primeiro conto, tem o título Fábula real. A chamada do conto é

a situação de um rei tentando manter-se no poder em tempo de iminente queda

do trono, metaforizada pela queda do rei de bruços ao levantar-se para agir,

numa sinalização de que já não pode mais evitar cair da almofada real. O balde

veste a água, o humor derrama. O rei está nu. Enfurecido, retomando a pose

real, ao bobo da corte reclamou:

– Ora, palhaço, faça-me rir de algo! Conte uma história.

O bobo conta a história:

“Sim, Eminência. Era uma vez um rei que, na iminência de cair do trono,

inclinou-se mais para frente, e caiu de braços caídos ao chão.

O rei, enfurecido, sob o efeito do histrionismo que é a histeria do humor,

pede de novo algo para rir.

Os recursos estilísticos do autor fazem repetir a mesma história pela

boca do bobo, vezes várias.

Cair do poder dói muito, o rei nega a realidade e, antes do cair de novo,

sugerido pela história, perpetra consequências terríveis contra a verdade da

queda, algo que, sem dúvida, muitos de nós fazemos.

&

A segunda parte do livro No escuro, armados tem o título Os outros; e o

primeiro conto tem o título No escuro, armados, que dá título ao livro. Os oito

gigantes da alma são o amor, o medo, o dever, a ira, o humor, a dor, o desejo e

o pensamento. O conto não contem nenhum diálogo, como acontece na

primeira parte do livro contos com diálogos vários, vemos no primeiro conto da

segunda parte (Os outros) que desde o início da segunda parte os rumos da

narrativa mudam radicalmente.

O desafio para o leitor é o de identificar qual dos gigantes da alma é o

tema do conto. Que se inicia da seguinte maneira com a frase:

No escuro, armados a amoladas foices, dois surdos-mudos-cegos

duelavam.

Sabemos que a comunicação depende em grande parte da audição, da

fala e dos olhos. O surdo-mudo-cego é a incomunicabilidade total, mesmo

porque ao surdo é necessária a leitura labial, inexistente no surdo-mudo-cego.

A questão colocada entre os contendores em luta a amoladas foices é a

de identificar sob qual domínio um dos gigantes da alma os mantem. Isto é,

qual gigante da alma está incorporado nos adversários em luta. Cegos-surdos-

mudos num conto em que no final morrem os dois ou todo mundo, porque além

dos dois ninguém existia, porque a existência do outro só era percebida

quando se tocavam (tato), quando se sentiam incompletos. Incompletude que é

um estado do ser e que, se inexistente, só resta o nada.

Qual dos gigantes da alma podem tornar pessoas surdas-mudas-cegas?

Ensejamos, agora, antes de comentar o segundo conto da segunda

parte do livro No escuro, armados, recordar o conto Tragi(c)rônica da primeira

parte (Torre de Babel). O contista russo Anton Tchekhov é o mestre dos contos

de atmosfera, ambos os contos Tragi(c)rônica e Praça de espera extrapolam os

demais no tangente à atmosfera, no primeiro há a atmosfera da rotina urbana,

enquanto ladrões furtam o sino de bronze da igreja, furto que rompe a

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atmosfera da rotina, ao ser descoberto o roubo; no conto Praça de espera, é

abrigada a atmosfera ainda não completamente desenhada surgida a partir do

íntimo do menino feminino, com desejos feminis em seus olhinhos azuis que o

fazem sentir-se estrangeiro no mundo. Mundo dicotômico, um mundo só visto

por ele (ambiência1) e um mundo que lhe é hostil (ambiência2).

Representativos de seu hibridismo de menino feminino. Em ambos os contos

não há a integração total dos personagens com a atmosfera, como acontece na

maioria dos contos de Tchekhov.

O terceiro conto da parte segunda, Caso moral, mostra a dificuldade de

segmentos amplos da sociedade na lide com artistas, no Brasil, recente, por

exemplo, a homofobia em relação a grandes artistas gays, como Cazuza, ou

discriminações políticas com se deu em relação a Chico Buarque, por causa de

suas posições, o que fez Chico processor insultadores. No Caso moral, o

síndico de um condomínio rejeita um candidato a locador porque ele pinta nus,

e, pior, tem um caso com um dos nus que pinta! Acusação inventada, óbvio,

perversamente, como é comum, hoje, ou desde o advento da extrema-direita

em Pindorama. Em transcendência da crítica humorística, da ironia e do

sarcasmo, porque nada mais é do que a representação de um cinismo puro,

infenso à autocrítica, que é o que acontece no fascismo.

O quarto conto tem título entre aspas “Meus meninos” e as aspas

significam uma meia-verdade, claro que só doentiamente, alguém pode pensar

que é dono (a) de alguém. Estão protegidos, tem mãe, que os crê unidos pelo

cordão umbilical e os sente sob a proteção do útero, como somente o útero os

entendesse em total pureza. Sem considerar, num viés cristão, a existência do

pecado original; ou que muito excepcionalmente existe um ser humano puro;

ou que dentro da pureza tudo se pode sem nada macular. Um era um ano mais

velho que o outro, mas não parecia, imagem um do outro havia no espelho,

mesmo que não houvesse espelho, mas havia, e, quando houve, o mais

feminino se enxergou nele, enciumando o outro, que se torna enciumado

sádico, enquanto o que se vira delicadamente masoquista, ainda assim puros,

quando se relacionam na horizontalidade da cama, onde, descobertos, sob a

emoção da mãe ao vê-los tão unidos, ouvem-na dizer “Meus meninos”.

O tema do incesto é muito presente na literatura, no conto não se trata

apenas de incestos, há muitas mães capazes de destruir mentes dos filhos a

partir do horroroso ideal de pureza com que os veste ou despe. Os meninos,

puros, encontram na pureza uma liberdade total e permitida. A figura paterna

não parece existir, ou existe quando a mulher se aliena dela, porque, sob o

efeito da maternidade absoluta, isso lhe basta para aniquilar o resto do mundo.

Mulheres que se completam totalmente com a maternidade. Aliás, num plano

macro, a pureza é um dos maiores males do mundo. Muitas mulheres

compulsivamente maternais, não raro, são forçadas a se perguntarem: Agora

vão dizer que a culpa toda é da mãe!

Viva as mulheres capazes do pragmatismo de exercer as funções de

mãe, mulher e trabalhadoras. Ir além do incesto num conto sobre incesto é

golpe de mestre.

O conto quinto, sob o título De florações é uma condenação ao

romantismo, a história é a de Rosaflor, filha de Florisvaldo e Rosalinda, e a

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premissa é a de que o que é belo é o que é para ser mostrado, pois desde a

união dos pais no nome da filha, fruto de um amor bonito, espera-se que

Rosaflor floresça, na expressão da beleza idealizada pelos genitores, minha

rosa, minha flor ... – acarinhavam-na.

Razão e sensibilidade diferem de índole e consequência, é Rosaflor tem

a índole da exibicionista, demandada, mostra a flor, se expõe. Adulteram-na as

más companhias, que conspurcam sua beleza, a vizinhança afirma ela ter esse

estigma (índole) da natureza se deteriorando. E se o romantismo teve o

impulso da expressão das individualidades, livre escolha do amor, tem também

seu lado doentio.

Grávida, Rosaflor aborta, e pari o desafeto dos pais abandonando-a para

viverem o seu romantismo longe dela, desenhando um tipo não dialógico de

conflito de gerações, e sabe-se lá quando isso aconteceu ou ainda acontece e

acontecerá.

O sexto conto da parte secundípara, Autorretrato, é, praticamente, um

miniconto. Trata da mania de grandeza, delírio megalomaníaco. Ele, o

personagem, se acha o tal! Mas a sua estatura é a de ancho e baixo. O

tamanho mínimo do conto também traduz o tamanho do personagem e que

tais.

Fadações é o título do conto número sete dessa segunda parte, fadação

é neologismo, não existe no dicionário. Fada e ação compõem o ajuntamento

de fadação, O conto nos traz a história de um príncipe sem vocação para reinar

e com voz de contralto para cantar, e de duas fadas: a madrinha e a afilhada

sonhadora que não sabe dos limites impostos às fadas. Fado é destino, sorte,

estrela; o que necessariamente tem de ser; vaticínio, decreto do destino. Fadas

só podem fazer mágicas, não podem amar, conta-nos a fada madrinha. Mas a

fada afilhada quer o príncipe. Surge outro personagem o gênio da lâmpada,

aquele que satisfaz desejos. Tudo ocorre no reino de fantasias primitivas, como

sói acontecer de forma espalhada. Recentemente, Maria Homem fez uma fala

no You Tube sobre o Mito da Princesa, rasgando a fantasia de quem vive em

esferas sonhadoras infantis. Este é o tema do conto: a história de um amor

sem princípio nem fim. Sem pé nem cabeça.

A nós parece que a segunda parte do livro, No escuro, armados, trata,

essencialmente, da incomunicabilidade. Octávio de Farias, citado de memória,

escreveu: O amor existe, o problema é a falta de comunicação entre as

pessoas. E a falta de comunicação pode ser fruto de fantasias incomunicáveis.

Oitavo conto da segunda parte de No escuro, armados: Ao amigo Alfred

é um conto temático da rejeição baseada em julgamento, há um crime de

interesse causado por um fracassado, Alfred. Enquanto a ambição injusta e a

cobiça, a incompetência e a falta de caráter compõem os quatro lados da

moldura do retrato do personagem; diz o conto:

“Se o cobrador bate à tua porta, às primeiras horas da manhã, a cobrar

promissória já há seis meses vencida”; e mais adiante:

“... se um ofício de justiça te intima (e igualmente intimida) a depoimento

no processo acusatório de homicídio, cuja vítima foi teu avô;”

O conto é uma lauda de acusação, não apenas a judicial que há de vir,

porque, se o leitor se colocar no lugar do amigo Alfred, se verá cercado por

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quem o ironiza ou dele suspeita. O tema é recorrente na literatura e no cinema,

sinta-se quem quiser no lugar de Alfred, fica esse suspense. Os exemplos ruins

possuem valor como o contrário do que se deve fazer. Entretanto, às vezes

não servem de nada.

O salto mortal é o nono conto da segunda parte de No escuro, armados.

É um conto de humor negro, embutidos nele a euforia, o histrionismo (histeria

do humor) e a perda do senso de realidade como consequente. Maria das

Graças, secretária, procura uma alegria, mesmo rara. Vai ao circo, sofre um

acidente vascular na plateia e é socorrida pelo anão mais forte do mundo, logo

ela que detestava anões. Tudo faz parte do show: o riso histriônico que lhe

rompe a veia; o show que tem que continuar; os personagens do circo com

suas bizarrices e tristezas e, principalmente, a parca alegria de uma mulher

pobre. É raro ver acontecer um conto de humor negro de total histrionismo.

Esse é o mérito do conto.

Opus 1 é o décimo conto. É a história de um roubo de sino [ narra

episódio durante execução musical, em que há farto uso de termos correlatos à

arte de Betthoveen, ou seja, na mesma área semântica] de igreja, a narrativa é

cinematográfica e circula no entorno do sino, que jamais será visto, embora

possa ser imaginado pelo leitor, de forma imagética e afetiva. Há os gatos nos

telhados e os gatunos sinuosos, enquanto tudo ocorre em surdina, como se

fosse uma aventura, malfadada, porém perfeita no que tange ao roubo do sino,

só percebido pelo pároco no dia seguinte, causando-nos dor e compaixão,

sentimentos mais suportáveis se advindos de expressões artísticas de que

naturezas várias, pois essa é a função da arte: mitigar dores da realidade como

se elas não estivesse acontecendo, o que nos torna capazes até mesmo de

torcer pelos ladrões, na realização de impulsos quais que a maioria não

realizaria de verdade. Minimizando nossas culpas a fim de nos tornar capazes

de pensá-las,

Fabulosa é o décimo primeiro conto de No escuro, armados (2ª parte) e

a premissa a se utilizar para pensar o conto é a de que quando a distopia não

conversa com a tradição a crise trazida pela distopia se acentua; se agrava e

exige dos incomunicantes força de superação, às vezes e para muita gente

inalcançável. Fabulosa é a voz (representante da tradição oral de contar

histórias de escritores ou inventadas pela imaginação, contos, fábulas de

cunho moral ou não, recitar poesias entre as quais as parlendas os poemas

infantis cantados ou declamados de cor e salteado). Tornada muda e oca. No

que se pode diagnosticar o processo de alzheimerirzação da vida dos idosos

de várias formas apartados dos netos ou dos filhos incapazes de manter o

hábito de fomentar a imaginação dos seus rebentos.

A organização do conto tem numeração de parágrafos de 1 a 12, quase

de forma didática, pura sutileza. Pedagogia só se deve usar na escola, quase

nunca na literatura. A ironia do conto está exatamente em ser didático. O conto

começa da seguinte forma (citaremos apenas a primeira frase do parágrafo 1):

1) Era uma vez uma voz que, desde o tempo dos avós, nunca obtivera

nunca obtivera uma vez.

Note-se a presença de rimas soantes e de parônimos [homófonos,

homógrafos] no interior da frase (vez com vez; uma voz com avós; avós com

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avo). E, não apenas em poemas para crianças, as rimas soantes são mais

facilmente percebidas e compreendidas e sentidas. O autor usa do recurso

para ser enfático a fim de que só não compreenda o incapaz (tornado

incapaz?) ou os bem burrinhos.

Tal pai

É o décimo segundo conto da segunda parte. E o desejo do marido de

Maria das Dores é o de nascer filho macho, com seu nome e sobrenomes

seguidos da palavra filho. Há o risco de Maria parir na rua, desmaia na frente

do supermercado no início do trabalho de parto. Celular: um homem liga e

chama a ambulância. Das Dores terá trigêmeos, pari duas meninas. São

muitos os dramas da sala de parto. Das duas filhas nascidas o pai sabe.

Gêmeas monozigóticas. Espera ansioso o filho (a) heterozigótico (a). Aquele

embrião que se tornou gente em bolsa amniótica à sós (a). A possibilidade de

nascer a heterozigótica, segundo a expectativa paterna, nula é! Nasce Ana, o

pai passa mal.

Para o bem e para o mal são muitos homens e mulheres a querer e

desejar um filho extensão de si mesmos.

Revisão é o título do conto décimo terceiro dessa segunda parte (Os

outros). Talento é nome da moeda grega clássica, dizer que quem tem muito

talento, no sentido de dom artístico ou em algo técnico, é uma derivação da

ideia de riqueza, fortuna, mas o revisor do jornal, antes do jornal, apesar de ter

talento para as letras, não teve instrução formal, é um brasileiro que de jeitinho

e jeitinho foi sobrevivendo e se aprimorando o melhor que pode, e o melhor

que pode é otimamente. Dá seus palpites, que não seriam apenas palpites, se

as revisões fossem, justamente, aceitas, e a revisão não é apenas a dos textos

alheios mal escritos, é a da vida passada à limpo até o momento em que o se

aprimorar o torna inviável para o deus do mercado de trabalho medíocre em

grande parte. Provoca no leitor uma tristeza, uma sensação de degradação da

potência. Um espasmo na garganta. Desde que o leitor seja capaz de se

colocar no lugar do outro, algo que vem se tornando raro em nossa sociedade

e no mundo.

O conto número quatorze dessa segunda parte, é O conto Num

domingo, dia de feira e nos fala do mercado informal de trabalho (lumpesinato)

e da mendicância, não a de pedir dinheiro, mas a dos tristes dependentes da

xepa ou da moeda perdida; é relato do que acontece na feira livre de domingo.

Enternece, compassivamente, o leitor. O primeiro personagem é a mulher

vadia à procura de um ponto. Feirantes com seus trocadilhos e chamadas

criativas na tentativa de vender seus produtos fazem a festa do domingo, meio

fim de festa, no qual os personagens sem nomes elencam maravilhosamente o

redemoinho de emoções e de luta pela sobrevivência e dos ditos que a

reproduzam. Retrato do país mostrado como é, tristeza em beleza e alegria

esperançosa de um povo que dá um jeitinho para viver o menos mal possível

de forma tão pungente e insofismável, como se fosse rotina sã viver na semi-

marginalidade ou na marginalidade afeita a delitos, ainda, assim, repelidos pela

maior parte de um povo honesto.

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O último conto da segunda parte é o de número quinze, sob o título

From Dores do Rio Preto, with love, nele o autor trata do tema solidão ao

explorar referências toponímicas distantes do lugar no qual de fato está: diante

da Matriz católica, se perguntando e se eu estivesse em frente ao Big Ben. Há

uma atividade de deslocamento, isto é, o lançamento de hipóteses, sob forma

de pergunta sem respostas, porque é impossível estar fisicamente presente

nos diversos lugares citados se se está apenas em um lugar de onde é

impossível tentar qualquer reação de fuga, exceto a delirante. O Eu lírico está

na praça da Matriz católica e não está em frente a catedral de Notre Dame,

nem no Louvre e daí em diante, à espera de uma carta que talvez venha de

Londres, criando expectativas falsas, algo que, individualmente, é pior até do

que elaborar premissas falsas, como se esse ilusionismo pudesse gerar

conforto, quando é apenas uma posição esquizoparanoide ( um conjunto de

ansiedades e defesas, que tentam controlar a ansiedade, mas acabam por

aumenta-la, num ciclo vicioso sem fim muitas vezes).

O conto aborda a incomunicabilidade do ser consigo mesmo, num

enlouquecimento capaz de ser percebido socialmente ou não, capaz do sujeito

transbordar a tensão a qualquer momento, em catarse, sem grande chance de

ser compreendido pelos outros, situação terrível, autodestrutiva, na qual muitos

se encontram sem saber a razão. Situação eivada de ideações suicidas;

fantasias de fugas irrealizáveis, que podem terminar bem mal.

Procuramos, na resenha de No escuro, armados, antes de tudo, viver a

vida; pois o ato da leitura é uma vivência. Tavares nos faz viver, amar, sofrer,

rir compassivamente e chorar. Constatações não são pessimismos, são ações

necessárias ao desenvolvimento do pensar sobre si e sobre os outros, a

“apologia da incomunicabilidade” presente no livro é apenas ênfase, crítica e

autocrítica diante da possibilidade de nos apresentar apenas o que se pode,

não ir às fabulações mistificadoras ou arquetípicas próprias da alienação. No

livro há amor, delicadeza, respeito pelos seres humanos e compreensão das

almas.

O que dizer mais?

Ler o livro com a passionalidade e a razão, posta a sensibilidade a este

serviço é como ter experimentado algo novo e marcante para o intelecto e para

a alma, mesmo para o leitor escarmentado.

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 14/02/2022
Reeditado em 15/02/2022
Código do texto: T7452216
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