O SURTO DE ALÉM-PALAVRA

Atendendo a uma solicitação de leitura e comentário feita pelo Orkut, chego ao texto que a autora classificou como “soneto”, num evidente equívoco inicial, creio que por ignorar as regras deste espécime do classicismo poético. Examinemos:

DEVOLVE...

Anjopoesia

Devolve minha paz...

a que tinha

antes de te conhecer

Devolve minha luz

que perdi...

quando coloquei

meus olhos em você

Devolve meu sorriso

que parei de ter...

quando sorri para você

Devolve minha alma

que está contigo

desde o dia

em que te conheci...

– Enviado por Anjopoesia em 11/10/2012.

– Reeditado em 12/10/2012.

http://www.recantodasletras.com.br/sonetos/3926399

– Código do texto: T3926399.

Anjo, amada amiga! A obra em exame tem somente o número de versos pertinentes ao soneto – como estrutura – e nada mais que o identifique como passível de classificação como tal. O soneto é uma apresentação formal do pensamento poético clássico, e, desde o séc. XIII conta, tradicionalmente, com 14 (quatorze) versos, distribuídos em dois quartetos e dois tercetos com contagem silábica uniforme. São exceções pontuais o soneto shakespereano, o monostrófico (uma só estrofe) ou o estrambótico, os quais apresentam formatos diferenciados quanto à disposição dos versos. Seria oportuno e conveniente escandir – fazer a contagem silábica – de cada um dos versos do texto que a autora pretende apresentar como exemplar de sonetística. Como bem se pode ver, não há obediência a estas regras, portanto, não se trata de um SONETO, e, sim de um POEMA, em versos brancos, sem rima, exemplar típico da contemporaneidade poética, e deveria ter sido classificado como “poema”. Os versos formam um singelo "recado amoroso", que é como denomino o exemplar que contém lirismo, mas não contém a Poesia, gênero literário. Ao demais, a peça está minada de possessão individualista, pelo excessivo uso de pronomes possessivos, e isso não condiz com uma peça que efetivamente contenha Poesia. A arte poética deve conter laivos de Confraternidade (se bem que rarefeita no lírico-amoroso), isto é, liberdade de escolha de atos e opções entre as pessoas, com Universalidade de linguagem. A rigor, temos aqui um texto lírico-amoroso, visto que não ocorre o uso de figuras de linguagem, especialmente as METÁFORAS. E, sem estas, não há como se identificar Poesia no texto, porque resta negado o uso da linguagem conotativa, ficando no sentido denotativo, que é o uso da palavra no lugar comum da vida, o usual. E Poesia não é a linguagem usual do dia a dia – é a exceção – vale dizer, a palavra em seu vestido de festa, formosa, e que vai além do que o próprio autor quis dizer. Portanto, não pode conter um discurso aberto, derramado, direto, sem nenhuma codificação de linguagem. Pela Poesia, o surto de além-palavra fica entranhado no tecido dela, na tessitura do mistério que lhe dá corpo para além de sua própria forma e lavratura, e que não se constata nem fica visível a uma simples leitura. Aliás, como todo o Mistério que se preza...

– Do livro QUINTAIS DO MISTÉRIO, 2012.

http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/3966236