Abra-se! - Ephaphatá (O dom de saber ouvir) [SERMO CXLVII]

ABRA-SE!

Ephaphatá

O dom de saber ouvir

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

Hoje se escutares a voz de Deus não feches o teu coração...

(Sl 95,7; Hb 3,7).

Quando o “provincial” telefonou para minha casa, pedindo que eu pregasse a vocês um retiro espiritual tendo por base o verbo escutar, confesso que no primeiro momento minha reação inicial foi dizer não, dada à complexidade do tema sugerido. Falar dois dias inteiros sobre espiritualidade, a um auditório de religiosos, empregando por mote a palavra escutar era um desafio muito grande. Depois, conversando com minha equipe, onde ressalto a inteligência clarividente de Carmen, minha mulher, aos poucos fui ajeitando as idéias e os argumentos, e chegamos a estas colocações que agora, sob as luzes do Espírito Santo, começo a desenvolver.

1. Introdução

Com essa profunda advertência do salmista, corroborada por São Paulo, iniciamos nossa meditação de hoje, lendo o trecho da cura de um surdo-gago, que está no evangelho de São Marcos, no qual buscaremos a inspiração para nossa reflexão. Que esta breve introdução sirva para nos colocar de espírito aberto para intuir a Palavra do Senhor. A partir de agora vamos meditar sobre uma palavra, ou melhor, um verbo: ouvir. As pessoas estão, hoje em dia, em todas as suas atividades, mais acostumadas a escutar do que a ouvir. Os dois verbos podem parecer, similares, sinônimos, mas como veremos, têm sentido bem diverso um do outro.

2. A iluminação bíblica

Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar da Galiléia, atravessando a região da Decápole. Levaram então a Jesus um homem surdo e que falava com dificuldade, e pediram que Jesus pusesse a mão sobre ele. Jesus se afastou com o homem para longe da multidão; em seguida pôs os dedos no ouvido do homem, cuspiu e com a sua saliva tocou a língua dele. Depois olhou para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abra-se!” Imediatamente os ouvidos do homem se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade (Mc 7, 31-35).

3. Das trevas para a luz

Jesus saiu de Tiro e Sidônia, região da Fenícia, hoje Síria e veio para Israel. Veio da região das sombras (terra dos pagãos) para a luz, Israel (terra dos filhos de Deus). Ele quer dar seqüência aos seus sinais miraculosos em favor do povo escolhido. Depois irá pregar a universalidade da pregação da boa notícia da salvação, mas neste primeiro momento se impõe sua ação junto aos israelitas.

No texto bíblico que nos é dado refletir, vemos o milagre de restituição da audição e da fala a um homem privado desses sentidos, não se sabe se essa deficiência ocorreu desde o nascimento ou por conta de algum problema mais recente. A narrativa se limita a dizer que levaram a Jesus um homem doente... privado do sentido da audição e que falava com dificuldade (talvez por causa da surdez).

A cura do surdo-mudo é peculiar ao evangelho de Marcos. Dentre os mais ou menos quarenta milagres que Jesus realizou em sua vida pública, esta narrativa só ocorre no segundo evangelho. O evangelista situa o milagre como algo ocorrido em conexão com os fatos anteriores ao capítulo 7, como se tivesse acontecido no término da viagem de Jesus, vindo da Fenícia. Cumprida a missão na terra de pagãos, Jesus agora se dispunha a trabalhar na terra dos filhos de Javé. É por esse motivo que alguns biblistas chamam essa viagem de “das trevas para a luz”.

O texto não menciona quem levou o homem, apenas impersonaliza os agentes, dizendo que alguém, eles, levaram... Aí se pode ver a solidariedade da comunidade, quando um grupo de pessoas conduz anonimamente um surdo para que Jesus resolva o seu problema crucial. Na contingência do mundo atual, é imperioso que se conduza pessoas que sofrem alguma carência ou deficiência física ou espiritual, à Igreja, a Jesus, para que sejam curadas. Sempre há quem precise de uma ajuda. Nem sempre aparece quem as conduza à solução.

Nós todos – tenho certeza – já escutamos esse trecho do evangelho de Marcos (7, 31-37), interiorizando algumas vezes, ou passando superficialmente em outras. Para a realização desse expressivo sinal, Jesus usa a palavra ephphathá que no aramaico (a língua que ele falava) quer dizer “abra-se” ou “abre-te”. Em alguns textos aparece como éfeta ou efetá.

4. Os doentes da Palestina

Para a compreensão do tema ora exposto é bom que se tenha algum conhecimento sociológico e histórico do ambiente. Na antiga Palestina o número de doentes (xolê) era bem significativo. O povo era castigado pela lepra, cegueira, surdez, problemas mentais, mutilações oriundas das guerras, etc. Além do fraco nível de evolução da medicina como ciência, havia outros fatores, no antigo Israel, que favoreciam o surgimento de enfermidades, como veremos adiante. Os surdos (hêseš) ouviam mal, em parte pela doença e, muitas vezes por causa da falta de higiene do povo. A higiene, como medida preventiva e profilática, inexistia na Palestina.

A cegueira originava-se, muitas vezes, por causa das condições climáticas da região, como excessiva luminosidade e tempestades de areia. Além disso, como não havia a ciência da oftalmologia, os míopes e os portadores de catarata eram vistos como cegos. A cegueira podia ocorrer, ainda, em função de guerras, acidentes de trabalho e falta de higiene.

Embora os códigos éticos e religiosos proibissem o incesto (cf. Lv 18, 6-18; 20, 11-21; Dt 27, 20-23) e os casamentos consangüíneos, era comum a união entre parentes, gerando aleijados, deficientes e débeis mentais. Nessa perspectiva, nota-se também a incidência da cegueira e da surdez congênita, provavelmente oriunda dessas práticas. O número de paralíticos (piseah) era igualmente bastante significativo em Israel. A Bíblia fala neles (coxos, mancos, aleijados) em geral como pessoas marginalizadas, que viviam pelas estradas, sustentadas pela caridade pública. Eram fruto de acidentes de trabalho, das guerras e de má constituição genética.

Igualmente os loucos (nã’bal) apareciam em grande número nos territórios palestinos. A ausência da consciência (cf. Dt 32, 6) era o início da perda das faculdades mentais. As causas para a existência de tantos loucos em Israel, podem ser buscadas nos males genéticos e congênitos, na fome institucionalizada, no terror das guerras, nas torturas e na perspectiva das deportações.

A Bíblia fala também em lunáticos. Algumas traduções mais modernas referem-se a esses deficientes como epiléticos ou portadores de algum retardo mental ou motor, despindo-os das características das possessões diabólicas, que tanto atemorizavam os povos antigos. A maior parte das pessoas com distúrbios de comportamento, às quais era imputada uma possibilidade de possessão diabólica, na verdade, sem que se queira abraçar um racionalismo absoluto, poderia ser enquadrada como portadora de distúrbios mentais, desde a epilepsia até a esquizofrenia.

Também os mudos eram vistos, muitas vezes como possessos. Há diversas referências no Novo Testamento em que, feito o exorcismo, a pessoa que era muda voltava a falar (cf. Lc 11, 14). Na Antigüidade era dito que a possessão dos maus espíritos deixava a pessoa sem fala. Esses males da comunicação, mudez (total) ou gagueira (parcial) poderiam ser decorrentes de problemas genéticos, choques ou traumas psicológicos, bem como lesões físicas provocadas por acidentes ou combates.

A lepra era a doença de maior incidência na Antigüidade. O leproso (sah’rat) era expulso do convívio da família e da sociedade (cf. Lv 13, 45s; Jó 2, 8). É curioso observar que a palavra lepra usada no AT tem como raiz o termo sãra’ que as versões LXX e Vg traduzem como aquele que foi ferido por Deus.

Muitas doenças de pele, irritações, eczemas, erupções e alergias eram tidas como impurezas e, em muitos casos, segregadas como lepra. A lepra era tão significativamente ligada aos aspectos religiosos, que era indispensável a palavra de um sacerdote para atestar a doença e, posteriormente, levantar a interdição, em caso de uma possível cura (cf. Lv 13-14). Junto com as doenças, o Antigo Testamento fala também na medicina, nas mágicas e em muitas formas de bruxaria.

6. Jesus se afastou com o homem para longe da multidão

Jesus não gostava de exibicionismos. Se fosse um curandeiro ou milagreiro moderno, ia querer realizar o sinal portentoso na frente de todos, sob os holofotes da mídia, entre vivas e gritos de “aleluia”. O Mestre preferiu fazer diferente. A cura é uma questão íntima entre Deus e o homem; não precisa de auditório ou de espalhafato. Jesus demonstra que não queria ser aclamado pelo povo. Ele jamais demonstrou qualquer atitude de ostentação, como muitos “curandeiros” modernos. É bom saber que a Bíblia nunca proibiu práticas médicas para curar enfermidades. A maioria dos antigos textos judaicos manda entregar os doentes aos cuidados de Deus e, ao mesmo tempo, buscar os recursos da Medicina. O profeta Isaías usou conhecimentos médicos para curar Ezequias (cf.2Rs 20, 7), e o arcanjo Rafael, utilizou um remédio natural para restituir a visão a Tobias (Tb 11, 8. 11ss).

Mas – e as Escrituras procuram deixar claro em sua teocracia – é a Deus, antes de tudo que os Israelitas deviam recorrer, pois ele é o “Senhor da vida’ (cf. Eclo 38, 9), que dá a cura; é ele quem fere e cura (cf. Dt 32, 39; Os 6, 1); ele é o médico do homem, por excelência (cf. Ex 15, 26). Nessa conformidade, vemos que o anjo enviado para curar Sara, filha de Ragüel (cf. Tb 3, 17) chamava-se Rafael (Deus cura).

7. A cura é um sinal

As curas, às vezes em forma de milagre (1Rs 17, 17-24; 2Rs 4, 18-37) querem demonstrar um sinal: Deus inclinou-se sobre a humanidade sofredora para aliviá-la de seus males. O estado saudável do indivíduo é um sinal do Reino, como a afirmar que lá não existem enfermidades e todos os males são curados de forma eficaz e definitiva.

Na Palestina, era comum, por influência egípcia e mesopotâmica, atribuir certas doenças à ação de demônios e maus espíritos. Igualmente, funções fisiológicas, como menstruação, poluções, concepção e parto, eram tidas como impuras, causadas por seres invisíveis e nefastos. Em todo o Oriente Médio, a doença era vista como castigo de Deus ou atividades demoníacas. Isto era decorrente de problemas culturais daqueles povos. Tanto assim que, com relação ao homem surdo, os que o levaram não recorreram aos médicos, mas a Jesus, que fazia milagres e praticava exorcismos.

Por conta disto, as curas eram, em geral, destinadas a expulsar os espíritos do mal. Faziam-se sacrifícios (até humanos, em algumas culturas), para implorar o perdão das entidades espirituais, e assim afastar as doenças dos homens. As curas são sinais do poder e da misericórdia de Deus, que devem ser compreendidas com a visão da fé e não da racionalidade.

8. O poder de Jesus

Voltando ao nosso assunto de hoje, vemos a ação de Jesus, através de palavras e gestos, curando uma pessoa deficiente, um homem limitado pela surdez e pela dificuldade de articular palavras, possivelmente gago. Nesse episódio, vemos que a palavra de Jesus é poderosa... ela é criadora, transformadora e capaz de realizar prodígios... Os milagres de Jesus servem como identidade de suas práticas messiânicas:

Jesus respondeu: “Voltem e contem a João o que vocês estão ouvindo e vendo: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a Boa Notícia” (Mt 11, 4s).

As curas, e já foi falado aqui, evidenciavam poder e também misericórdia com aqueles que sofriam. Aos poucos foram se revelando um sinal da práxis do Messias, conforme anunciado no discurso preliminar de Jesus na sinagoga de Nazaré (cf. Lc 4, 16-21). Apesar dos sinais que Deus tem colocado à nossa frente por séculos, continuamos cegos, surdos, doentes e correndo o risco de nos perdermos. Quando o homem não se ajuda, tornando-se surdo e cego à mensagem de Deus, de Jesus e do evangelho, as coisas se tornam mais difíceis e asquestões parecem não ter mais respostas.

O coração desse povo se tornou insensível. Eles são duros de ouvido e fecharam os olhos, para não ver com os olhos, e não ouvir com os ouvidos, não compreender com o coração e não se converter. Assim eles não podem ser curados (Mt 13, 15).

9. Escutar ou ouvir?

Igual ao ver, o ato de ouvir como atitude de espiritualidade é uma característica dos seguidores de Jesus. Aqui vemos que ouvir é diferente de escutar:

Minhas ovelhas ouvem a minha voz (Jo 12,27)

Quem é da verdade ouve a minha voz (Jo 18,37)

Tem pessoas de olhos bem abertos, sãos de visão, que enxergam, mas não vêem. Talvez por este motivo que o cego de Jericó tenha proferido um pedido que se tornou uma das grandes orações do cristianismo:

Senhor, eu quero ver! (Lc 18,41).

O pedido “eu quero ver” do cego de Jericó se transfere a um “eu quero ouvir” do homem de nossa história. Sobre o ver, Jesus diria a seus ouvintes:

Quem me vê, vê o Pai (cf. Jo 14,9).

Quem ouve a vocês (ouve a Igreja) é a mim que ouve

Na verdade, dentro do contexto em que a narrativa da cura do surdo da Galiléia se coloca, vemos que escutar é um ato natural, biológico. O doente da narrativa por ter problemas físicos, não escutava; era surdo. No entanto há uma outra deficiência mais grave: a impossibilidade de ouvir. Certamente é este o sentido figurado que o evangelista quis dar à narrativa, além de contar um milagre de cura.

De fato, ouvir é mais do que escutar. Muito mais! Tem gente que escuta os sons de forma clara, mas não ouve a mensagem comunicada, passa por cima do seu conteúdo, e de seus valores agregados. Não seria esse o problema da humanidade nos dias de hoje? Mesmo assim, Jesus ensina que quem escuta seus enviados, sua Igreja, escuta a sua voz e a voz do Pai. Por esta razão foi dito por Jesus:

Quem tem ouvidos para ouvir ouça! (Lc 8,8).

Ora, ouvidos todos têm, no sentido de possuir orelhas e captar sons. A maioria das pessoas escuta, nas nem todos ouvem. E é esse o questionamento que a nós se coloca hoje: ouvimos além de escutar? Aos comunicadores, evangelizadores, e aos que têm a missão de pregar e multiplicar a Palavra de Deus, é imperioso o desenvolvimento da capacidade de ouvir. Escutar só não basta! Se não abrirmos nossos ouvidos para ouvir o que Deus quer de nós, seremos, no dizer do profeta, “cães mudos” (cf. Is 56,10). Para que serve um cão mudo? Para nada, praticamente. Quem não ouve profere palavras vazias, discursos ocos, pregações inconsistentes. E não atinge o objetivo nem vai a parte alguma.

10. Aprender a ouvir

Para o desenvolvimento da atividade de discípulos do Senhor, é preciso que se aprenda a ouvir. É por essa razão que o ephphathá deve fazer parte de nossa oração diuturna. Saber ouvir o que Deus tem para nos dizer e igualmente estar atento às necessidades dos outros. Deus nos fala através de várias fontes como, por exemplo, as Sagradas Escrituras, a Igreja, as pregações de homens inspirados, a natureza e os “sinais dos tempos”. Nós só poderemos ensinar a ouvir se tivermos aprendido corretamente a sintonizar com o ensinamento divino.

Para ser feliz o cristão precisa ouvir a Palavra para colocá-la adequadamente em prática. Como vou praticar se desconheço os fundamentos do que deve ser executado? O ouvir e o ensinar a ouvir devem ser a tarefa primordial dos missionários. No desenvolvimento de nossa atividade ligada às coisas de Deus, teólogo, padre, pastor, religioso, professor, pregador, escritor, animador de comunidade, o ato de ouvir e estar atento é parte integrante do processo de aprender.

Todo aquele que ouve a Palavra do Reino e não a compreende, é como a semente que caiu à beira do caminho: vem o Maligno e rouba o que foi semeado no coração dele (Mt 13, 19).

Depois que a gente aprende a ouvir, depois que nossos ouvidos estão convenientemente abertos, é então possível levar a termo outra etapa: o ensinar a ouvir. Só ensina quem aprendeu corretamente...

Se ouvires a voz de Deus não feches o teu coração... (Hb 3,7).

11. A dificuldade de agir

Quando eu não ouço os clamores do povo que sofre, quando não enxergo a miséria e a injustiça ao meu redor, meu trabalho, meu ministério fica prejudicado. Assim ocorre também com a oitiva da Palavra de Deus. Há quanto tempo venho escutando o que é preconizado pelo evangelho? Dez, vinte, trinta anos?

E que efeitos essa Palavra tem realizado em mim, em minha conversão, na transformação da minha comunidade, no meio dos meus alunos? Se não há eficácia na minha atividade, é porque tenho escutado, mas não ouvido. E não ouvindo, o que tenho falado é um palavrório oco, cheio de verborragias inúteis. Será que me converti em um cão mudo? É preciso orar com vigor e veemência: Senhor, ephphathá, abre meus ouvidos para ouvir o que queres de mim!

Quando as Escrituras falam em ephaphatá (no grego, ἐφφαθά, no hebraico, )elas estão se referindo de uma forma dúplice, à abertura dos ouvidos (para escutar) e do espírito e da alma (para ouvir e compreender). O ephaphatá se insere em um propósito de comunicação de duplo canal, num falar e ouvir entre Deus e o ser humano. Para a realização do milagre Jesus utiliza sua saliva e sua Palavra. Os antigos povos semitas atribuíam à saliva um poder terapêutico... A de Jesus é milagrosa!

A narrativa informa que Jesus ergue os olhos, de onde vem o socorro (Sl 121,1; 123,1); e profere um gemido que funciona como uma súplica inefável (cf. Rm 8,26) e um gesto de piedade com o sofrimento do homem. O “abra-se” é uma ordem peremptória de Jesus. O gemido é também a forma como ele se comunica com o Espírito. Sobre esse tipo de cura enxergamos a profecia dos tempos messiânicos, representada pela volta do povo exilado a Sião:

Os olhos do cego se desgrudarão, os ouvidos do surdo se abrirão... (Is 35,5).

12. Ouvir para ser solidário

Digna de nota, conforme já mencionamos, é a atitude das pessoas daquela região, que confiantes no poder regenerador de Jesus, trouxeram o deficiente para que fosse curado. É assim que nós agimos hoje? Ou preferimos nos encastelar atrás de nossas orações individualistas? Ou somos daqueles que, ao invés de confiar na providência divina, levamos nossos doentes (ou a nós mesmos) aos bruxos, feiticeiros, cartomantes ou benzedeiras? Ou achamos que só a medicina convencional é suficiente? A gente, muitas vezes, por conta de uma fé deficiente ou mal orientada deixa de crer no Deus verdadeiro para correr – como diria São Paulo – atrás de fábulas. Estas práticas são lamentáveis, e não levam a nada, exceto à alienação e ao relativismo da fé.

No episódio da cura do surdo, muitas lições e questionamentos se colocam à nossa frente, no que tange à comunicação com Deus, com o próximo e a comunidade. Tais questionamentos nos inquietam na medida em que nos levam à obrigação de escutar a Palavra de Deus e aos sinais dos tempos. Mas, de outro lado, se apenas “escutamos”, os ruídos, as queixas das pessoas, as admoestações de nossos superiores, o barulho da televisão, o clamor de nossos inúmeros “compromissos”, ficamos com os ouvidos cheios de barulho, como que entupidos de areia, mas não ouvimos nada de conteúdo.

13. Ouve, ó Israel!

O ato de ouvir, mais além de um simples escutar, é estar atento. Tanto assim que desde a caminhada do povo no deserto, por volta do século XIII a.C., já era preconizado: sh’má Israel Elohém Adonai e’had (Ouve, Israel, o Senhor Deus é único!). O sh’má (alguns dizem shemá) é uma ordem eterna de ouvir as verdades de Deus. A ordem era ouvir a grande verdade sobre o poder de Javé. Sobre esse ato de ouvir, bem mais tarde São Paulo, queixando-se que o povo não ouviu a pregação do evangelho, alertaria que a fé entra pelo ouvido (pelo ato de ouvir):

Ora, como poderão acreditar, se não ouviram falar dele? A fé depende, portanto, da pregação, e a pregação é o anúncio da palavra de Cristo. Agora, eu pergunto: Será que eles não ouviram? Ao contrário: pela terra inteira correu a voz deles e suas palavras foram até os confins do mundo. Pergunto ainda: Será que Israel não entendeu? (Rm 10,14-19).

No final do “sermão da montanha”, autêntica “plataforma” do cristianismo, Jesus fala na necessidade de ouvir sua palavra e colocar em prática. Não adianta apenas ter fé, é salutar converter-se,passar das palavras para os atos; da teoria para a prática. É Jesus quem adverte:

Aquele que ouve as minhas palavras e as coloca em prática é semelhante a um homem prudente... (Mt 7,24).

Pois a advertência do Mestre vem ao encontro daquilo que é o fundamento desta nossa reflexão. É preciso, mais que escutar, ouvir. O ato de escutar é superficial; qualquer um escuta. A gente escuta, naturalmente, pois não é surdo, mas porque não interioriza, e deixa de prestar a atenção devida, não ouve. O cristão efetivamente convertido se torna uma “ovelha do rebanho de Jesus”:

Minhas ovelhas ouvem a minha voz (Jo 12,27).

Nesse particular, escutar é receber a mensagem com os ouvidos e deixar tudo como está. Ouvir é mais profundo: é acolher com o coração e comprometer-se com as transformações.

14. Na vida social, tantos desafios

Antigamente, antes da reforma da liturgia do Concílio Vaticano II, havia o rito do efetá, quando o celebrante tocava os ouvidos do batizando, tornando-o apto a escutar a Palavra de Deus. Sem que se saiba porque, o efetá, um ritual tão significativo, foi excluído da liturgia (e do simbolismo) batismal.

A vida moderna é cada vez mais pródiga em desafios. O escritor grego Cornelius Kastoriadis († 1997) era um filósofo sensível às realidades humanas. Sua afirmação a seguir é rica em conteúdo humanístico e social: “A sociedade moderna faz novas perguntas que exigem novas respostas”. Essas questões tomam um vulto de desafio. Dentro deste contexto psicossocial constatamos a necessidade de ouvir a verdade e saber torná-la pública e acessível àqueles que buscam seus valores. Não é esta a nossa missão? Por que muitas vezes não conseguimos chegar aos nossos objetivos? Porque nos falta, muitas vezes, o essencial: a capacidade de ouvir o essencial. A comunicação é uma ferramenta que caminha em paralelo com nossa vida, e deve fazer parte do nosso ser-cristão.

Um eficaz processo de comunicação multidimensional (com Deus, conosco e com o próximo) é capaz de nos conduzir a uma vigorosa ascese de vida... Ouvir as verdades de Deus conduz à purificação, do nosso coração e do espírito dos que dependem de nosso trabalho missionário. Uma vigorosa higiene do corpo e do espírito ajudam a construir a verdadeira espiritualidade. Só se constrói coisas positivas em cima de bases bem sólidas. Para desenvolver essa ascese é preciso ler as realidades, ver os fatos e ouvir o que Deus quer da gente. Quando nos afastamos de Deus, nossa vida se desorganiza, e essa falta de estrutura nos aproxima do fracasso. Existem vários efeitos desse “acúmulo e da bagunça”: a) sentir-se desorganizado; b) julgar-se fracassado; c) manter-se desorganizado; d) insistir em se achar limitado; e) viver apegado ao passado; f) sofrer com mania de perseguição...

Tantos percalços que nos afligem, como os relatados acima, são fruto da nossa cegueira (não querer ver), da nossa surdez (não querer ouvir) e da nossa paralisia (nossa incapacidade de agir). Será que algumas de nossas atitudes não se enquadram nesses fatores negativos? Há ainda uma série de fatores negativos que servem de obstáculo para nossa comunicação com Deus, como consagrados e batizados, dificultando nossa vida e dificultando a chegada da graça divina sobre nós. Por exemplo: a) a mediocridade; b) a pobreza de objetivos; c) a superficialidade; d) a teimosia; e) a auto-suficiência; f) a vaidade; g) a perda da espiritualidade; h) a falta de uma ascese de vida; i) a persistência no pecado.

De fato, a prática desses valores negativos e ambíguos nos conduz àquela estagnação espiritual que nos deixa surdos, cegos e entrevados, com relação a Deus e ao seu projeto.

CONCLUSÃO

Por fim, nunca é demais repetir que é salutar uma atenção sobre os sinais que são colocados à nossa frente. Se um motorista dirigir sem dar bola aos sinais da estrada, ele fatalmente vai se acidentar. Se um cristão levar sua vida sem entrar em comunhão com o Deus Uno e Trino, afastando-se do mal renunciando às coisas inúteis da existência, ele estará comprometendo o seu futuro. Conforme afirma Jesus no evangelho (apócrifo) de Tomé “Se abandonas os pesos desnecessários que estão em ti, o que deixas sair te salvará; se não te livras deles, o que não deixas sair te destruirá”, o que nos remete à necessidade daquela ascese já aludida. No passado, no tempo dos exílios e das deportações, o povo judeu clamava insistentemente a Deus, com medo que o Senhor não escutasse suas preces:

Javé ouve a minha prece! Dá ouvido aos meus gritos! Não fiques surdo ao meu pranto (Sl 29,13).

Depois, já no período da volta do exílio, as palavras dos profetas estabeleceram outras colocações: Deus sempre ouve seu povo e está continuamente disponível, mas é preciso procurá-lo e pedir sua intervenção.

Procurem o Senhor enquanto ele se deixa encontrar; clamem por ele enquanto ainda está perto (Is 55,6).

É a partir dos eventos históricos que Israel vai aprender a escutar e, mais do que isto, a ouvir a Palavra de Deus. Na plenitude dos tempos,Jesus, a Palavra (o logos) de Deus vem a nós para proclamar a boa notícia, que conhecemos como evangelho. No sul temos um “canto de aclamação” (“As tuas palavras”) que, referindo-se às Palavras de Jesus, diz:

“... nelas está tudo o que você

sempre tentou encontrar,

basta querer, basta tentar,

basta saber procurar...”.

Isto evidencia, conclusivamente, a necessidade que temos de ter ouvidos abertos para Deus. É imperioso orarmos o ephphathá para que o Senhor abra nossos ouvidos à sua verdade. Uma vez abertos os nossos ouvidos devemos batalhar para que os outros também se manifestem abertos. Este é o mandato do Senhor, e portanto, nosso dever. Há como que uma bem-aventurança de Jesus endereçada àqueles que ouvem e vêem as maravilhas de Deus.

Vocês, porém, são felizes, porque seus olhos vêem e seus ouvidos ouvem...

(Mt 13,16).

Que o Senhor Deus abra nossos ouvidos e mentes

para ouvir sua palavra!

Amém!

Questões para orientar o debate em grupo

1. Dentro do que foi exposto, tinha eu a noção da diferença entre

escutar e ouvir?

2. Qual a importância de se ouvir a Palavra de Deus?

3. Qual a essência da comunicação para o missionário cristão?

4. Por que foi dito que só podemos ensinar a ouvir se antes

aprendermos

a ouvir?

5. Em que pontos devemos dar início a uma ascese de vida?

6. Diante do não ver, não ouvir ou não agir, qual a solução que se

impõe?

Texto de um retiro espiritual pregado a um grupo de quarenta religiosos na cidade do Rio de Janeiro, no final de agosto de 2011.