O Reino é como um tesouro escondido

O REINO É COMO UM TESOURO ESCONDIDO

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

O Reino dos céus é semelhante...

Em suas pregações, Jesus privilegia o Reino dos Céus como a realização daquela utopia regeneradora do ser humano e do cosmos. O que vai anunciando por toda a terra da Palestina é a novidade do Reino, onde essa boa notícia repro-duz àquele povo sofrido e oprimido, perspectivas de justiça, de verdade e liberta-ção.

Os evangelistas, cada um ao seu tempo, usando ora critérios helenistas ora fontes da cultura rabínica, empregam as expressões Reino dos Céus ou Reino de Deus, que se pode assegurar serem ambos os termos de absoluta equivalência, trazendo em si juízos de valores idênticos. Nessa perspectiva, o Reino disponibili-zado à humanidade é dom de Deus, por excelência.

Por causa do Reino Jesus veio, e o Reino foi sua palavra, sua vida, sua mor-te e sua ressurreição. Porque o Reino é a vontade do Pai, o sonho projetado que Deus tem para nós, pra sua criação inteira. Seu Reino – seu reinado – é a realiza-ção da vida, da beleza, do amor. Ele reinando, reinamos todos; tudo reina.

Quem tiver olhos para enxergar apenas o pequenino grão de mostarda, um punhado de fermento imerso na massa, ou algumas sementes de trigo sufocadas no meio do joio e da erva daninha, talvez desvalorize e não tenha condições de ver a implantação do Reino dos céus no meio da sociedade humana.

Embora muitos façam confusão, o Reino, por ser eminentemente escatológi-co, não deve ser identificado com a Igreja. A Igreja, por sua condição de res viator, se realiza no tempo, com ênfase à sua característica temporal. A Igreja não é o Reino, mas aponta para ele e caminha em sua direção. Nessa característica, o Reino dos Céus se mostra dinâmico em duas fases: uma atual, escondida e hu-milde, e outra futura, gloriosa e cheia de esplendor. A dinâmica do Reino aponta para o valor transcendente das coisas que vem do Alto. Por conta disto ele eclode no meio de nós, a partir da irrupção do dom de Deus nos corações da humanida-de que crê, espera e ama.

A fé na ressurreição é o centro axial do cristianismo. Fé não é somente a adesão a um conjunto de verdades tidas como irrefutáveis, mas subentende vigo-rosamente um processo de conversão do ser humano ao abraço amoroso do Pai e à oferta generosa da sua graça. A fé adorna o amor que ministra magistrais aulas sobre serviço, doação, renúncia, partilha e entrega. A fé sempre traz consigo o germe do amor. Em sua função pedagógica ela ensina para a vida, para o amor e para o convívio comunitário. O amor sempre pressupõe uma atitude em favor dos outros.Assim como não existe fé sem partilha, igualmente não existe amor sem solidariedade.

A vocação do homem é o céu e não a terra; é Deus e não o paraíso terrestre. Isto não significa que ele seja convidado a se omitir das tarefas históricas da solidarie-dade. Antes, pelo contrário, deve levar a terra e a história juntas para o supremo ideal em Deus (A. M. Galvão. Espiritualidade. Itinerários para seguir a Jesus. Ed. O Recado, 2011).

Na economia da graça, Jesus compara seu Reino com um tesouro escondido no campo, onde um homem vende tudo o que possui para comprar o campo e as-sim se apossar do tesouro. O ato de vender tudo aponta para um despojamento de riquezas, para uma renúncia às paixões e – sobretudo – para o ato de assumir um compromisso com o valor maior. Ninguém poderá comprar o campo se não se des-fizer das coisas inúteis e inferiores que possui, trocando-as por valores verdadei-ros. Só toma posse do Reino quem se dispõe a renunciar o que passa, em troca do que não passa.

O Reino do Céu é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra, e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens, e compra esse campo. O Reino do Céu é também como um comprador que procura pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens, e compra essa pérola (Mt 13,44ss).

A parábola do tesouro escondido retrata o valor do Reino e seu mistério. Como um bem de valor, seu preço vale mais do que tudo o que se possui. Por isso vale a pena se desfazer de tudo para adquiri-lo. Este tesouro é o dom de Deus presente no meio dos homens (a vida da graça), proporcionando-lhe felicidades e agrupando-os em uma grande família, chamada de comunidade.

A comparação do Reino com um tesouro revela que há uma tensão perma-nente entre Reino e mundo. É hora de uma de-cisão entre graça e pecado. É pre-ciso saber escolher entre as realidades de Deus e as ilusões do mundo. Igualmen-te no tocante à descoberta da pérola, é imperioso ter ciência da necessidade de troca entre essa jóia e as demais riquezas que o mundo oferece. Apegar-se aos va-lores humanos é como pretender ficar com bijuterias falsas em detrimento de pe-dras preciosas. Tanto a parábola do tesouro escondido como a da pérola de gran-de valor exprimem a riqueza da vida da graça.

A graça é dom gratuito, é amizade com Deus que diviniza o homem, outor-gando-lhe filiação divina, irmandade com Jesus Cristo, pertença à Igreja, tornan-do-o templo do Espírito Santo, destinatário das promessas e herdeiro do Reino. Dentro dessa perspectiva salvífica, o Reino acontece a quem tem a coragem de buscar a conversão individual, como sinal da libertação coletiva, há tantos sécu-los esperada. Por isso, como ensinam com muita propriedade, os antigos Pais da Igreja, a vida da fé não é um problema para ser resolvido, mas um mistério para ser vivido, vivido na comunhão trinitária, na oração e no amor.

A entrada de Jesus em cena, no evangelho de Marcos, reflete o caráter pro-clamativo e escatológico do anúncio. Na verdade, não se trata de ensinar uma doutrina nova, mas lançar um kérygma (anúncio) com exigências de conversão e adesão à boa notícia (cf. Mc 1,15). O importante é deixar claro que o Reino está próximo, tudo confirmado com curas e outros sinais prodigiosos.

A imagem do Reino dos Céus, constante nos evangelhos, retrata a realização daquilo que Deus vem agregar às expectativas de felicidade do gênero humano. Longe de ser uma utopia, a dinâmica do Reino promove no seio da humanidade a realização do plano de Deus, como uma topia, algo que ele preparou, como um lugar definitivo para aqueles benditos que souberam acolher o dom do Pai, a gra-ça do Filho e as luzes do Espírito Santo.

É nessa perspectiva que se manifesta a verdade de tudo que foi anterior-mente revelado. O Reino assume um caráter mistagógico na medida em que mes-cla realidades humanas com espirituais. É, como na figura de um arco-íris, o céu em união com a terra. Os antigos pregadores não cansavam de ensinar que o Rei-no não é deste mundo, mas começa a se realizar a partir daqui.

Jesus contou-lhes ainda outra parábola: “O Reino do Céu é como o fermento que uma mulher pega e mistura com três porções de farinha, até que tudo fique fer-mentado (Mt 13,33).

Aqui Jesus diz que o Reino, como o fermento imerso na massa, não é perce-bido no primeiro momento. Em seguida cresce a ponto de fermentar e transformar toda a massa, conforme seu objetivo anteriormente traçado. Tanto esta parábola como a anterior (do tesouro no campo) se referem à propagação no evangelho do

Reino, como uma boa noticia, em todo o mundo.

A ressurreição de Jesus, o ponto mais alto de nossa fé, mostra que a vida continua e que as promessas messiânicas vão acontecer, porque o Reino chegou. É preciso intuir essa revelação, abrir nosso entendimento para escutar a voz de Deus sem endurecer o coração (cf. Sl 95[94], 8). Na dinâmica do Reino, Jesus é o único caminho que nos leva ao Pai (cf. Jo 14,6s). Por ele ocorre a instauração do Reino no meio dos homens. Nele é atendido o anseio milenar do homem: “Senhor, deixa-me ver tua face!”. (Ex 33,17s).

O Reino é o centro da mensagem de Jesus. Trata-se da utopia mobilizadora da história humana, onde a justiça se articula com a ordem do dom e do que é gratuito. Se na pessoa de Jesus Cristo, Deus nos há de ressuscitar e nos dar as-sento no seu Reino (cf. Ef 2,6), nossa fé nos revela então que crer passa a ser uma experiência vital e essencialmente comunitária, onde o mistério precisa ser aco-lhido com ternura no coração e transformado com vigor no compromisso com a instauração desse Reino de amor.

Nesse terreno, fé e reflexão sobre Deus se alimentam reciprocamente. O cristão precisa acolher em seu coração a certeza de que Deus pervaga a história humana para, através de um novo caminho, promover a libertação, dando vida a todos, aliando-se aos injustiçados e marginalizados.

Uma experiência de Deus que não nos desinstale, que não crie em nós uma ponderável inquietação social, não é verdadeira. Alguns se contentam com uma religião costumeira, de rotina. O seguimento de Jesus não pode ser vivido desta forma. O evangelho está sempre a exigir de nós respostas e atitudes com relação aos problemas do mundo.

Existem ainda nos evangelhos, outras comparações estabelecidas pela pe-dagogia de Jesus para que os crentes consigam entender o real sentido do dom de Deus. Assim, o Reino dos céus é semelhante:

 a uma semente de mostarda jogada à terra (cf. Mt 13,31s);

 a uma rede lançada ao mar (cf. Mt 13,47-50);

 a um rei que resolveu acertar contas com seus devedores

(cf. Mt 6,12);

 a um pai de família que saiu para contratar trabalhadores

(cf. Mt 20,1-6);

 a um rei que preparou as bodas do filho (cf. Mt 22,1-14);

 a dez virgens (cf. Mt 25,1-13);

 a um homem que partiu em viagem (cf. Mt 25,14-30).

O evangelho diz que o Reino é dos violentos, dos que o tomam à força (cf. Mt 11,12). Essa violência pode ser interpretada como a conversão, em que o ser hu-mano violenta sua natureza e adere aos caminhos do Reino, deixando para trás todas as nefastas tendências do mal enraizadas em sua natureza.

Ao ensinar as semelhanças do Reino, em paralelo Jesus pede atenção para que nossos erros , falhas e pecados não se tornem a causa da perda da vida eterna, tão custosamente adquirida por ele, ao preço de seu próprio sangue (A. M. Galvão. O Reino dos céus, Ed. Ave-Maria, 1994)..

Com a instauração do Reino o abjeto mundo de pecado revela o fim do do-mínio da morte, da transgressão e do ódio sobre todo o gênero humano. Para que se processe essa dinâmica, se impõe uma ruptura, sem a qual a conversão não ocorre: é preciso mudar de vida, mudar sentimentos, mudar as convicções de nosso coração. Na explanação dos valores do Reino, Jesus se faz presente no ho-mem, tornando-o reduto de dignidade.

O que aqui na terra construímos será guardado para o futuro (GS 39). Que o ad-vento do Reino não nos torne demissionários de nossas indelegáveis tarefas daqui da terra (cf. 2Ts 3,11s). A esperança do futuro irá desdramatizar as tribulações do presente (L. Boff. A vida para além da morte. Ed. Vozes, 1973).

É irrecusável a exigência de abraçar a causa do evangelho e assim tornar-se servidor e amigo de Jesus Cristo. Só desta forma nos inserimos definitivamente no processo daquela salvação que Jesus veio inaugurar. Ele constrói, assim, em nos-sos corações, um modelo de sociedade humana segundo o projeto divino, numa proporção ao Reino dos céus. O povo de Deus adota em sua caminhada humana retalhos da vida do céu, substituindo a violência pelo Amor, a mentira pela Ver-dade e as trevas pela Luz.

Quando clamamos o nome do Pai do céu, pedindo que “venha o Reino”, es-tamos abrindo a expectativa da irrupção de um tempo de graça e fartura de dons, onde amor de Deus transborda em nossos corações. Esta é a realidade do Reino que deixa de ser uma possibilidade abstrata para se tornar uma realidade palpá-vel e concreta.

Na dialética das trevas e da luz, Jesus nos mostra o vigor da sua pedagogia libertadora. Libertar-se é renunciar à escuridão para abrir-se à claridade que bro-ta da mensagem de Jesus. O Reino vem acompanhado de muitos sinais para de-monstrar que sua realidade aponta para o céu, embora se saiba que ele começa a ser edificado a partir desta vida. É salutar que se descubra os sinais do Reino nas pequenas coisas da nossa vida.

Ao aceitar sua morte (e morte de cruz!), Jesus não responde com sentimen-tos humanos, mas retribui ao ódio com amor, rompendo a escalada da violência que nasce do uso do ódio pelo ódio. Jesus mostra como se pode, na terra, pensar como no céu, ensinando que é assim que se consolida o caminho para o Reino do Pai. Depois de tudo que foi dito aqui, é salutar a gente prestar atenção para as palavras de Jesus:

Se a justiça de vocês não exceder a dos escribas e a dos fariseus, vocês não entra-rão no Reino dos céus (Mt 5,29).

O autor é biblista e doutor em Teologia Moral. Escritor, publicou mais de cem obras no Brasil e exterior, entre elas “O Reino dos Céus”, Ed. Ave-Maria, 1994.