Viagens e Viajantes- Um Olhar Sobre Saramago II

O presente artigo pretende mostrar por duas viagens, específicas, feitas por José Saramago o retrato de Portugal com suas culturas e tudo que forma este país, bem como seus anseios. A primeira na qual falaremos dar-se-á via mar, Jangada de Pedra, e o segunda por terra, Viagem a Portugal.

Portugal hoje vive um período político muito diferente das glórias que outrora ostentou na história da humanidade. País que antes fora um desbravador dos mares e tendo seus heróis imortalizados com “Os Lusíadas” Portugal passou por um conturbado período econômico que nos dias de hoje procura respirar um pouco mais aliviado em relação há poucas décadas.

Este declínio na economia portuguesa fez com que o passado de glórias de seu império se tornasse parte do passado, tendo hoje todas as ex-colônias africanas proclamando suas independências, sem forças não conseguiu estruturar e tornando-se um país periférico na Comunidade Européia, mesmo tendo o Euro como moeda e participando de uma unificação econômica e por assim dizer, política do continente europeu Portugal sobrevive hoje, com além de outros suportes econômicos com uma indústria turística relativamente forte.

O atraso de Portugal, segundo Alfredo Bosi , em relação à Europa sempre foi tema das discussões dos intelectuais lusos. Desde os tempos do iminente movimento realista e a Questão Coimbrã idealizada por estes adeptos de uma nova corrente filosófica até o caráter crítico de Fernando Pessoa nos primeiros versos de “Mensagem” que Portugal vem sentindo a necessidade de se renovar, considerando-se em atraso em relação aos gigantes europeus, a rigor a França e a Inglaterra. Esta condição já era latente nos primeiros anos do século XX e alvo das críticas dos escritores modernos, partidários não só da modernização portuguesa, mas idealizadores de um Portugal triunfal, senhor do mundo ocidental como nas grandes navegações, e por muitas vezes, assim como presente na obra de Fernando Pessoa, valendo-se de um tom messiânico revitalizando um sebastianismo muito conflitante entre si, ora satirizado ora com tom sério, marcas de um passado histórico mal cicatrizado.

Jangada de Pedra é uma das obras de José Saramago com os traços modernistas mais aflorados. O problema da colocação de Portugal no contexto mundial é exposto de uma forma clara e, muitas vezes mais que explícita, beirando certa agressividade nas idéias. O texto do autor mesmo classificado de pós-moderno e contemporâneo traz estas latentes questões sobre Portugal e este contexto europeu, não aceitando esta condição subordinada e, por conseguinte, aflorando um nacionalismo em parte idealizador em uma narrativa com traços psicodélicos das vanguardas européias (em especial o Simbolismo) sem ser “imaturo” e “inacabado” como a idealização romântica de sociedade e nação.

Jangada de Pedra traz uma crítica afiada e agressiva a todo este contexto, na obra o autor apela para uma faceta onde se identifica um traço que chega a partir para o lado surreal da literatura: a divisão da Península Ibérica do restante da Europa, onde Portugal e Espanha desprendem-se do continente e começam a “navegar” pelos oceanos de forma aparentemente errante.

Toda obra remete-se às várias fases da literatura portuguesa, fases estas que se percebe o heroísmo e estoicismo do homem português exaltados. A tradição camoniana é uma das maiores inspiradoras do texto, trazendo assim um texto com forte apelo dramático e épico, com um aflorado teor epopéico escrito em prosa onde os personagens neste caso assumem um papel secundário sendo assim o “pano de fundo” do texto (a Península) o verdadeiro personagem principal.

Com um tempo psicológico mesmo tendo referências cronológicas, elas não predominam, além de serem em grande parte imprecisas. A Península Ibérica, a vagar, é o espaço pelo Oceano Atlântico, com narradores múltiplos e alternados (variando entre 10 pessoas do singular e plural e 30 pessoas), o que anula um pouco a presença do narrador tradicional. Saramago utiliza de períodos e parágrafos muito longos (estes chegando às vezes a uma página ou mais). Há uma total erradicação dos sinais de pontuação (usando predominantemente a vírgula e o ponto). As falas de narrador e personagens são às vezes confundidas, onde o uso do discurso indireto livre é bastante influenciador. A metalinguagem também se faz presente no romance, onde se percebe leves doses de ironia. Dividida em 23 capítulos, a obra preserva o português lusitano (imposição do autor aos países de língua portuguesa), fazendo-se valer de expressões populares típicas de Portugal.

Pois bem, ao lermos Viagem a Portugal, de José Saramago, temos a sensação de algo compacto e ao mesmo tempo tão complexo em registro geográfico e humano. Compacto pela simplicidade da sua escrita e complexa pelo que essa simplicidade mostra-nos.

De Norte ao Sul e com um registro totalmente narrativo das belezas e da cultura do povo português, Saramago segue numa viagem como um prosador da classe trabalhadora, usando como pano de fundo os próprios componentes, como protagonistas, que fazem à formação de uma identidade nacional.

Em um primeiro momento, ao analisarmos a obra, nossa leitura parece obvia, temos um viajante que vai contando as histórias de um povo, com seus costumes, da mesma forma que nos dá sua opinião sobre alguns aspectos que ele entende dentro do seu compreender. Entretanto, em um segundo momento, temos a impressão que o povo fala para o povo e que essa é a intenção do autor.

José Saramago, como é de conhecimento, foi um homem que emergiu, de forma admirável, de suas raízes. Um autodidata, que somente alcançou a fama depois de labutar muito, quem sabe da mesma forma na qual o viajante, liricamente, conta-nos do seu povo. Porque construir um país em identidade, com todas as suas riquezas é, nesta obra, retratado por meio de toda a sua cultura. Arriscamo-nos a dizer que Saramago ao retratar o seu país, acaba por se retratar e com isso mostrando todo esse processo de construção. Ou seja, a identidade não é algo isolado, ela se forma à medida que a vida acontece. E isso nos parece claro quando lemos na obra a seguinte declaração: “Depois, como quem diz o nome do autor da obra: “ O povo”, Não há dúvida. Quase no fim da sua viagem, o viajante veio ouvir a Lagos a palavra final” . Nessa mesma linha de pensar, ao analisarmos o índice da obra, percebemos que existe uma “teia” entre as cidades e as pessoas, marcando também essa identidade. Porque cidades e pessoas citadas em páginas anteriores aparecem logo mais na frente e vice e versa, isso para nós é caminho de construção identificável. Ou seja, o que foi passado, agora está no presente e o que é presente retorna ao passado para se firmar. Não há caminhos paralelos entre passado e futuro, é um único caminho com diversas bifurcações que faz com que o presente aconteça.

A questão de identidade tem sido abordada por Saramago de uma forma, na qual quem a faz é o povo. Por meio de reflexão, o autor coloca o leitor como identificador de si mesmo, fazendo do papel de identidade muito mais que uma criação literária e transformando essa criação em ferramenta para essa identificação.

Em ambas as obras temos uma viagem e viajante. Na primeira obra temos um país como viagem, na qual o viajante passa em cada recanto do seu país, mostrando suas culturas, seu povo, detalhadamente citados como nesta passagem logo no início da obra: “... O viajante não pode parar em todo o lado, não pode bater a todas as portas a fazer perguntas e a curar das vidas de quem lá mora. Mas como não sabe nem quer despegar-se dos seus gostos e tem a fascinação do trabalho das mãos dos homens, vai até Adeganha onde lhe disseram que há uma preciosa igrejinha românica, assim deste tamanho. Vai e pergunta, mas antes pasma diante da grande e única laje granítica que faz de praça, eira e cama de luar no meio da povoação. Em redor, as casas são aquelas que em Trás-os-Montes, mais se encontram nos lugares esquecidos, é a pedra sobre a pedra, a padieira rente ao telhado, do sono comum. Chamado a prestar contas, este homem dirá: eu e meu boi dormimos debaixo do mesmo tecto. O viajante comprometido. Amanhã, chegando à cidade, lembrar-se-á destes casos? E se lembrar, como se lembrar? Estará feliz? Ou tanto disto como daquilo? É muito bonito, sim senhores, pregar sobre a fraternidade dos peixes e a dos homens? Enfim, a igreja é esta. Não caiu em exagero quem a gabou.”

Já na segunda obra temos um país como viajante, como aparece no trecho da obra: “... E bem precisos eram. Quando se tornou patente e insofismável que a Península Ibérica se tinha separado por completo da Europa....Então, a Península Ibérica moveu-se um pouco mais, um metro, dois metros, a experimentar as forças.As cordas que serviam de testemunhos, lançadas de bordo a bordo, tal qual os bombeiros fazem nas paredes que apresentam rachas e ameaçam desabar, rebentaram como simples cordéis, algumas mais sólidas arrancaram pela raiz as árvores e os postes a que estavam atadas. Houve depois uma pausa, sentiu-se passar nos ares um grande sopro, como a primeira respiração profunda de quem acorda, e a massa de pedra e terra, coberta de cidades , aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus animais, começou a mover-se, barca que se afasta do porto e aponta ao mar outra vez desconhecido .”

Como já citamos a viagem por terra e o viajante por mar. Viajante e Viagem encontram-se por metáforas para mostrar país e povo.

Genialmente e liricamente, José Saramago consegue reunir nessas duas obras dois pensamentos importantes, entre tantos que nos fazem entender Portugal.

O primeiro habita em mostrar uma identidade, via terra e o segundo em firmar essa identidade, via mar, porque por mais que Portugal solte-se da Europa, se solta consigo, com seu povo e cultura, algo já citado em Viagem a Portugal e tudo que flutua nessa Nau, dita por Saramago em Jangada de Pedra, está aos pés do Viajante em Viagem a Portugal.

Viajante e Viagem habitam os mesmos espaços, seja por terra ou por mar, Saramago, mostra por meio da literatura sua cultura e acima de tudo uma identidade formada pelo seu povo.

Quer revendo o passado com o olhar moderno, quer criando uma alegoria finissecular, especulando sobre o sentido da vida e da morte, ou mesmo denunciando que a globalização econômica é uma nova forma de totalitarismo, Saramago tem sido um gênio da Literatura Portuguesa.

A questão da identidade, para Saramago, vai muito além dos limites da criação literária; invade o espaço padronizado da agnosis, faz com que nos transportemos ao seu universo diegético, identificando-nos com os seres de papel que criou, conquistando, por meio da reflexão, a experiência suprema da episteme.

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Gislaine Becker
Enviado por Gislaine Becker em 26/08/2009
Reeditado em 27/08/2009
Código do texto: T1775997
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