A variação linguística: ensino de língua ou línguas?

Considerações sobre os Estudos da Sociolinguística: da Variação Linguística ao Ensino de Línguas

Objetivamos neste trabalho analisar teoricamente a importância da variação linguística no ensino de língua portuguesa na escola posta aqui como um conjunto de variações que uma língua apresenta, de acordo com as condições sociais, culturais, regionais e históricas em que é utilizada e, dessa forma, buscar compreender pela ótica sociolinguística a realidade linguística que permeia o cotidiano de nossas práticas sociais.

Com o avanço dos estudos sociolinguísticos e o surgimento de uma nova conceituação de língua como sistema intrinsecamente heterogêneo, em que se entrecruzam fatores lingüísticos e extralinguísticos condicionando a variação, constatou-se que a língua se sustente numa constante oposição diversidade/uniformidade, esta ultima resultante de forças disciplinadoras presentes dentro da comunidade lingüística e mantida através de acordos explícitos (norma prescritiva) ou tácitos (norma normal) mantidos pelos falantes.

Afirmamos, então, que a Sociolingüística tem por objetivo desvendar e verificar como as variações se organizam e o modo como os fatores lingüísticos (internos) e extralingüísticos (externos) estão correlacionados ao uso de variantes nos diferentes níveis da língua. Sendo as línguas um tipo de comportamento social (assim como tudo em uma cultura), pode-se afirmar que elas variam e a existência de várias línguas no mundo é o concreto indício dessa heterogeneidade.

Consideramos, pois, que a variação ou diversidade linguística, de acordo com a perspectiva sociolingüística, é um fenômeno constitutivo das línguas. Dessa forma, poderíamos afirmar que no caso da LP, por exemplo, em decorrência da variação, não existe uma língua portuguesa, mas várias línguas portuguesas, porque o que se convencionou chamar de Língua Portuguesa, na verdade, nada mais é do que um feixe de variedades linguísticas que caracterizam regiões, grupos sociais, faixas estarias, graus de escolaridade, profissões, situações. (ALMEIDA; ZAVAM, 2000, p. 634.).

Presumiu-se aqui que os modos diferentes de falar acontecem porque a língua portuguesa, como qualquer outra língua, é um fenômeno dinâmico, isto é, está sempre em evolução. Pelos usos diferenciados ao longo do tempo e nos mais diversos grupos sociais, as línguas passam a existir como um conjunto de falares diferentes ou dialetos, todos muito semelhantes entre si, porém cada qual apresentando suas peculiaridades com relação a alguns aspectos linguísticos. (CAGLIARI, 1991).

Todas as variedades, do ponto de vista da estrutura lingüística, são perfeitas e completas em si. O que as tornam diferentes são os valores sociais que seus membros possuem na sociedade. Ainda segundo o autor, os dialetos de uma língua, apesar de serem semelhantes entre si, apresentam-se como línguas específicas, com sua gramática e usos próprios. Na medida em que se diferenciarem muito uns dos outros serão reconhecidos como línguas diferentes. Um bom exemplo será o que ocorreu com o latim, que por intermédio de seus dialetos acabou por gerar o português, o francês, o espanhol, o italiano. O uso da variedade lingüística dialetal não constitui um erro, e sim uma diferença pelo uso de um outro dialeto.

A variação linguística e a escrita

A língua como um fenômeno social é caracterizada pela heterogeneidade e variabilidade. Em cada comunidade de fala ocorre o uso de formas lingüísticas variadas. Todas as línguas variam, isto é, não existe nenhuma sociedade ou comunidade na qual todos falem da mesma forma (TARALLO, 1986). Em uma nação grande e extensa como a brasileira, a variação lingüística se constitui em um fato natural e inevitável, se considerarmos a heterogeneidade social e os diferentes graus de contato intergrupal das diversas comunidades aqui existentes.

Por variedades lingüísticas deve-se entender, segundo Soares (1983), as modalidades da língua, caracterizadas por peculiaridades fonológicas, sintáticas e semânticas, determinadas, de um modo geral, por três fatores: o geográfico, o sócio-cultural e o nível da fala. O fator geográfico seria responsável pela variedade lingüística entre comunidades fisicamente distantes, resultando nos dialetos ou nos falares regionais. O responsável pela divergência lingüística entre diferentes subgrupos de uma comunidade local seria o fator sócio-cultural, estando entre os aspectos distintivos a idade, o sexo, a classe social, a profissão, o grau de escolaridade. Por fim, o nível da fala ou o registro de uso, que se refere ao nível de formalidade da situação em que ocorre a comunicação.

Dentro dessa rede de diversidades lingüísticas, uma delas é eleita ao status de língua padrão, por fatores de prestígio social e convenção. A língua padrão, também chamada variedade padrão, norma culta, língua culta e erudita, fala de prestígio, é uma variedade da língua que é normalmente usada na imprensa e que é geralmente ensinada nas escolas e a falantes não nativos.

Pode-se dizer que a língua padrão tem uma gramática e um vocabulário amplamente aceitos e codificados. A diferença entre padrão e não-padrão não tem nada a ver, em princípio, com diferenças entre linguagem coloquial e formal ou com conceitos como má linguagem. Como a língua está estreitamente ligada à estrutura social e aos sistemas de valor da sociedade, variedades lingüísticas são avaliadas de forma diferente. A variedade padrão é geralmente considerada como correta, bonita, fina. Outras variedades não-padrão são freqüentemente tidas como erradas, feias, devido à indolência, à ignorância ou à falta de inteligência.

A variante padrão

Na perspectiva aqui adotada, a língua padrão deve ser vista como uma variedade da língua dentre muitas, embora uma variedade particularmente importante. Falando do ponto de vista lingüístico, ela não pode ser considerada legitimamente melhor que as outras variedades. Seja qual for a língua em questão, seu vocabulário é suficientemente rico para expressar as distinções consideradas importantes pela sociedade que a utiliza. Segue-se que juízos de valor relativos à correção e à pureza das variedades lingüísticas não-padrão que as faça inferiores. Qualquer inferioridade aparente é devida somente à sua associação com falantes de grupos não-privilegiados, de status social baixo.

Em outras palavras, atitudes em relação a variedades não-padrão são atitudes que refletem a estrutura social de uma sociedade. Ao buscar as relações entre aprendizagem da língua materna e variedades lingüísticas, devem ser consideradas como particularmente importantes as variedades sócio-culturais, para que se possa pensar na questão que se mostra imperativa aos profissionais da área educacional: a integração entre sociedade, escola e linguagem.

Soares (1984) aponta que quase todos os estudiosos que se dedicam à análise do sistema de ensino e da escola como instrumentos de reprodução das hierarquias sociais, mostram o importante papel que a língua desempenha no processo de discriminação social que se desenvolve no contexto escolar.

Os altos índices de analfabetismo, evasão e repetência, aparecem na literatura científica como positivamente correlacionados com o baixo nível sócio-econômico dos indivíduos. Isto sugere que a nossa escola tem se mostrado incompetente para a educação dos alunos pertencentes às camadas populares, acentuando e justificando desigualdades sociais. Entre as principais causas do fracasso escolar dessa população estão os problemas de linguagem: a escola, muitas vezes, desconhece a realidade lingüística do aluno e de seu grupo social. Não tendo uma suficiente compreensão do papel da variação lingüística no processo de ensino/aprendizagem da língua materna, passa a ver o aluno que não utiliza a fala padrão como falante de segunda categoria. Nesse sentido, a escola tem sido intolerante com as diferenças dialetais, trabalhando com o normativo, isto é, com o certo e o errado, não deixando lugar para o diferente.

O fenômeno da variação lingüística na escola: do ensino a concepção de variedades

Tradicionalmente, a linguagem utilizada na escola coloca em evidência as diferenças entre grupos sociais e gera discriminação e fracasso: variantes lingüísticas socialmente estigmatizadas, usadas por alunos provenientes de camadas populares, provocam preconceitos linguísticos e resultam em dificuldades de aprendizagem. A escola usa e quer ver usada a variante padrão socialmente prestigiada (SOARES, 1991).

Para Cordeiro (2005, p. 29-30) mesmo ocorrendo significativas mudanças no pensamento lingüístico, a questão da variação lingüística, dentro do ensino de língua materna, tornou-se, um ponto fundamental de discussão e estudo. Travaglia (1997) nos mostra que há dois tipos de variedades lingüísticas:

Dialetos: variação que ocorre em função das pessoas que utilizam a língua. Segundo este autor, esta variação pode ocorrer em seis dimensões: territorial, social, de idade, de sexo, de geração e função profissional.

Registros: variedades que ocorrem em função do uso que se faz da língua, conforme a situação em que o usuário e interlocutor estão envolvidos.

As variações de registro, segundo Travaglia, podem ocorrer em três dimensões: grau de formalidade (forma/informal), modo e sintonia (de acordo com tecnicidade, cortesia). Detalhando, temos que:

1. O grau de formalismo representa uma escala de formalidade entendida como um maior cuidado nos usos dos recursos da língua. Desta forma, quanto maior for o grau de formalismo, mais próxima a variedade utilizada estará da variedade padrão e culta.

2. A variação de modo encontra-se na contraposição entre língua falada e escrita. Tanto a língua falada como a escrita apresentam variedades de grau de formalismo. Porém, cada uma apresentaria um conjunto próprio de variedades, a partir do que a relação que se faz entre o oral como sendo uma modalidade informal e a escrita uma modalidade formal, seria falsa. Podemos observar o uso da língua na modalidade oral com um alto grau de formalismo e vice-versa.

Assim, em um mesmo país, que se apresenta como monolíngüe, pode haver e há variações — variedades em uso. Um mesmo vocábulo pode ser usado de maneira diferente dependendo do lugar, do espaço físico- geográfico do falante (variação diatópica); da situação de fala (variação diafásica) ou, ainda, de acordo com a identidade, sexo, idade, o nível social e econômico do falante (variação diastrática). Mesmo coexistindo, essas “diferenças” não impedem a ocorrência da comunicação entre os usuários porque reconhecem os elementos usados como pertencentes ao mesmo sistema lingüístico. Um mesmo elemento do mundo pode ser referido, em uma mesma língua, por mais de um termo lingüístico coexistente (mandioca, aipim, macaxeira). (MOLLICA, 2003).

Os tipos de variantes linguísticas

Sabemos que os fatores extralinguísticos ou sociais, por sua vez, são extremamente relevantes na configuração da variação. Os falantes adquirem as variantes lingüísticas próprias de sua região, de sua classe social, faixa etária, sexo, escolaridade, etc.

A variação geográfica ou diatópica está ligada ao espaço geográfico de origem do falante. Ex: - nível de variação lexical - bicha (PP) e fila (PB); banheiro (PP) e salva-vidas (PB). Ex: nível de variação sintático - no Nordeste a negação tem a seguinte estrutura: vou não ou não vou não, ao passo que no Centro-Sul, o advérbio antecede o verbo não vou ou não vou não. Ex: nível de variante fonológica – em Fortaleza temos a realização dos fonemas /t/ e /d/ seguidos pelo fone [i] articulados como palatoalveolares [t∫, dz] como em tia (tchia), dia (dchia); no Cariri a pronuncia dos mesmos fonemas nos mesmo contextos é alveolar [t, d], assim temos tia (tía) e dia (dia).

A variação social ou diastrática pode ser influenciada por fatores ligados ao falante (idade, sexo, classe social, escolaridade, profissão), ou a situação (grau de formaç9idade, grau de conhecimento entre interlocutores, intenção, tema) ou a ambos simultaneamente. Ex: nível sintático - o pessoal foram pra festa./ o pessoal foi pra festa. Ex: Nível lexical – bicicreta ~ bicicleta; lampa ~ lâmpada; probrema ~ problema. Ex: vamos pra balada. Ex: Machuquei meu dedinho. (M)/ machuquei meu dedo. Ex: ganhei um cachorrinho liiiindo! (M)/ ganhei um cachorrinho lindo! (H).

A variação diafásica é relacionada com a diferente situação de comunicação, variação relacionada com fatores de natureza pragmática e discursiva, em função do contexto, um falante varia o seu registro de língua, adaptando-o às circunstâncias. O idioleto é a maneira própria de cada falante usar a língua, o uso preferencial de determinadas palavras ou construções frásicas, o valor semântico dado a um ou outro termo, etc. Há tantos idioletos quantos os falantes.

Referências

ALMEIDA, Nukácia Meyre de A; ZAVAM, Aurea S. Variação lingüística e Ensino. Formação Continuada de Professores da Rede Pública. Português 3. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2000.

CAGLIARI, Luis Carlos. Alfabetização e lingüística. São Paulo: Scipione, 1991.

CORDEIRO, Dilian da Rocha. Variação lingüística: o que pensam e fazem os professores. (Dissertação de Mestrado em Linguística). 175f. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2005.

MOLLICA, Maria C. Fundamentação teórica: conceituando e delimitando. In: MOLLICA, Maria C. e BRAGA, Maria L. (orgs.). Introdução à Sociolingüística: o tratamento da variação. São Paulo: Contexto, 2003, p. 9-14.

SOARES, Magda Becker. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1991.

________. As muitas facetas da alfabetização. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, (52): 19-24, 1985.

________. Travessia: tentativa de um discurso da ideologia. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, 65 (150): 337-68, mai./ago.1984.

TARALLO, Fernando. A pesquisa sócio-lingüística. São Paulo: Ática, 1986.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no primeiro e segundo graus. São Paulo: Ed. Cortez, 1997.

Jeimes Paiva
Enviado por Jeimes Paiva em 07/10/2009
Código do texto: T1852534
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