O prazer sexual - Questões de Teologia Moral (SERMO 55)

O PRAZER SEXUAL FORA DA PROCRIAÇÃO É PECADO?

Questões de Teologia Moral

Muitas pessoas, cristãos que sabem que sou um moralista (especialista em teologia moral) vem me perguntar a respeito do prazer sexual dentro do matrimônio. Em geral questionam porque há um certo mal-estar a partir de declarações de alguns segmentos das Igrejas, que vinculam o prazer sexual exclusivamente ao ato da procriação. Se está orientado para a procriação, tudo bem, se visa apenas a satisfação, é pecado. Será?

O assunto, pelas nuanças que oferece e pela gama dos debates que suscita, por incrível que pareça, não é pacífico. Sim, dizem uns; não, bradam outros. E agora? Esta, por incrível que pareça, também é uma questão que ainda se escuta por aí, em pleno século XXI, a partir, não de jovens solteiros, mas de pessoas casadas, gente de mais idade, gente com boa vivência em Igreja.

Essa confusão tem uma origem identificada. Há questão de alguns anos atrás, o papa João Paulo II declarou, na Europa, mais precisamente em uma visita à Holanda (transcrito em B. Bennàssar. Ética civil e moral cristã em diálogo. Ed. Paulinas, 2002), que

...o prazer gratuito é contrário ao plano de Deus [...]; todo

ato sexual deve estar aberto à vida.

Isso equivale a dizer, conforme algumas interpretações – a partir da menção aberto à vida – que a sexualidade humana tem por fim exclusivo a procriação, e que não é lícito usá-la como outro objeto que não seja o de gerar filhos. Não é esta, outra forma de dizer que só haverá ato sexual lícito caso haja a disposição e a possibilidade de colocar outro ser na terra? Sim, pois um ato sexual que não leve, seja pelo motivo que for, o casal à geração de uma nova vida, segundo a interpretação daquela advertência, está fadado à ilicitude, quando não ao pecado, pois “é contrário ao plano de Deus”. Não é assim que parece?

Ao que tudo indica a declaração do antigo Santo Padre se prestou para muitas controvérsias, talvez por uma questão de má interpretação de suas palavras. Há que se observar em que contexto ela foi proferida; em uma visita à Holanda, país onde o laxismo moral e a liberdade sexual se acentua cada vez mais.

A questão acendeu a polêmica, em face da hierarquia de quem partiu a afirmação, e pelo cunho do texto, que pareceu ignorar os interesses do casal. Isso evidencia, da parte de alguns segmentos, seguramente celibatários, a tentativa de implantação de um regime de terror, a partir de uma religião anti-sexual e repressiva, tal qual fora na Idade Média, em que o ato sexual dos casados era visto como um “pecado venial”. Idéias desse tipo conduzem as pessoas, não à santidade, mas aos complexos de culpa e a muitas frustrações.

A insistência excessiva sobre a teologia da cruz não deve

condenar ninguém a um estado de permanente e amarga

frustração, esquecendo que a “ressurreição e a vida” já

estão presentes e ativas no coração do mundo e de cada

homem (Bennàssar, Idem).

Se a declaração do falecido Papa (que é uma opinião pessoal e não é dogmática!) for levada ao pé da letra, o resultado será que a maioria das relações sexuais de um casal passarão a serem vistas, sob aquele prisma de moral, como ilícitas.

Manifestações posteriores se apressaram em declarar que houve interpretações apressadas de alguns segmentos, que teriam distorcido o sentido original da afirmativa, onde o aberto à vida estaria ligado à questão do aborto e, sobretudo ao enriquecimento do amor, do que o sexo livre e instintivo é a antítese. Acredita-se como condenáveis e moralmente desordenadas aquelas relações não baseadas no amor, em que o outro é usado como simples instrumento da satisfação de necessidades circunstanciais.

Vemos, até com certo temor, que ainda viceja na Igreja um tabu medieval sobre a sexualidade humana. Lembram do “pecado venial” que falei antes? Tanto assim que a maioria dos santos, até o início do século XX, padres, freiras e monges são celibatários. O grande ícone da Igreja, a Virgem Maria, nos foi apresentado como uma pessoa assexuada. Ela teve uma concepção virginal (Escritura) e permaneceu virgem até sua morte (afirmação da Igreja). Com isso constata-se que a Igreja quis passar uma idéia de pureza associada à virgindade, como se as pessoas casadas não fossem puras,

Ora, como sabemos que a sexualidade é uma das pilastras do casamento humano, se a retirarmos, porque o casal não deve mais praticá-la, uma vez que não quer/não pode mais ter filhos, a ruína é iminente, tornando-se uma porta aberta à infidelidade, à separação e a tantos descaminhos. O leigo, homem e mulher não foi feito para o celibato.

As Igrejas protestantes não usam a imagem do crucificado, mas apenas a cruz nua, lembrando o sacrifício, sim, mas apontando para a ressurreição e rejeitando qualquer idéia mórbida. A felicidade, o prazer, é direito e dever do ser humano, máxime dos casados. Toda a pessoa é desejosa de ser feliz (direito) e de fazer feliz (dever). A ventura, a alegria, o gozo são direitos pessoais e sociais, motor e meta; graça e tarefa.

O cristão diz um sim fundamental a toda a realidade criada,

em particular ao corpo e às paixões. Todavia, é consciente

também da fragilidade de sua condição pecadora e, mais

ainda, de necessidade de redenção integral (B. HAERING,

Disciplina e moderação, in Mysterium Salutis, V/2, Ed.

Vozes, 1984.).

A sexualidade é um dom mútuo que realiza a união carnal de duas pessoas que se amam, homem e mulher. Aqui está acolhida uma dimensão espiritual a partir dos dois que se tornam “uma só carne”. É através do ato conjugal que se realiza a doação-entrega-recepção. Nesse sentido, somente o amor divino conhece uma união amorosa mais profunda. Santo Tomás de Aquino chega a dizer que a união sexual de um casal tem para Deus o sabor de uma oração de louvor. Ele explicita que através do matrimônio o homem e a mulher formam uma comunidade de amor com a finalidade de se ajudarem em todos os segmentos da vida-a-dois.

A dimensão amor-unitiva e a dimensão procriadora se encontram fundidas em um só ato, e são inseparáveis. O ato sexual de um casal, por ser um ato de amor, deve estar ordenado à vida biológica, sim, mas também à vida de união e ao bem-estar do homem e da mulher, conforme ensina o Vaticano II:

O matrimônio não é somente para a procriação, mas a

natureza do vínculo indissolúvel entre os cônjuges e o bem da

prole exigem que o amor mútuo dos esposos se manifeste e

amadureça (GS 50).

São tidas como universais, pelo menos a partir da civilização judaico-cristã, as exigências da moral quanto à sexualidade humana. A Igreja sempre primou por mostrar o caminho do bem, do bom e adequado uso da natureza e dos instintos, para que a pessoa (homem e mulher) seja feliz, se realize sem excessos ou atitudes moralmente desordenadas.

O cristão, nessa época pós-puritana em que se vive, embora desfrutando de forma moderada, não pode repudiar a beleza, a arte, a comida, o prazer e muitas outras coisas, sem esquecer do próximo, com quem está em sintonia e diálogo, e por sua causa precisa manter uma escala de valores.

O homem e mulher não se casam para satisfazer a

concupiscência, nem para a procriação. Eles se casam

porque são seres sexuados, e a união duradoura, formando

um casal, é o âmbito mais apropriado para realizar em

plenitude todos os aspectos, pessoais c comunitários, da

sexualidade e do amor (Bennàssar; idem).

Distorções pedagógicas a respeito da sexualidade matrimonial, geraram no passado (e pode haver remanescentes até hoje) condutas errôneas, de cunho jansenista, como o da mulher que cede aos desejos do marido, pas plaisir, mais devoir (sem prazer, mas por dever) Uma relação assim está condenada ao fechamento, ao embrutecimento e até à infidelidade e ruptura.

Ainda segundo a declaração de João Paulo II aludida, os casais que, tendo um número adequado de filhos, exercendo uma paternidade responsável, ou não podendo mais ter sua prole, ou tendo relações fora do chamado período fértil estão em desacordo, e por isso deveriam suspender sua atividade sexual, pois usando o sexo fora do projeto da geração de filhos, estariam incorrendo numa atitude desordenada, intrinsecamente ilícita, capitulando até, quem sabe, uma situação de pecado. Acho inadmissível este tipo de pensamento!

Igualmente, o sexo quando a esposa já atingiu a menopausa, então, nem pensar. Não estaria havendo aí um exagero nessa restrição? Ora, sabemos que é difícil mesmo para alguém decidido pelo celibato, manter essa continência, como exigi-la, então de um casal jovem, com trinta e poucos anos, cujo projeto de vida não inclui o celibato, e que não pretende ter mais filhos que já tem?

Tais proibições ou restrições, ao invés de ajudar, geram tabus, pensamentos confusos, idéias distorcidas, comportamentos maliciosos e, invariavelmente, traumas. Ainda há quem vincule – por mais incrível que possa parecer – as relações sexuais de um casal ao pecado original, à desobediência e à rebelião dos anjos. O pensamento medieval, de cunho escolástico, bateu forte na sexualidade, e alguns de seus axiomas se fazem sentir ainda hoje, como a manifestação de um teólogo inglês (J. E. KERNS, Les Chrétines, le Marriage et la Sexualité, Paris (Du Cerf), 1966):

O instinto sexual é um efeito do pecado original e é

indelevelmente marcado por sua origem. Permitir que esta

força se expresse livremente seria perpetuar a rebelião

primeira. As relações sexuais precisam de uma desculpa. O

prazer que elas pressupõem pode ser tolerado, mas jamais

desejado.

A natureza do ser humano dotou-o de um mecanismo de prazer agregado ao mistério e ao dom da sexualidade. Apenas homem e mulher têm prazer no sexo e o praticam fora das possibilidades reprodutoras. O homem, pela renovação dos espermatozóides, pode procriar até idades avançadas. A mulher não. Esta, em média, depois dos quarenta e cinco anos não pode mais ter filhos.

A suspensão da função geradora, no entanto, não lhe tolhe, de forma alguma a libido e a capacidade de sentir prazer. Estaria a natureza errada? Não creio! Enquanto os animais não têm prazer e só usam a sexualidade para a reprodução, o mesmo não acontece com o ser humano, que alia a função sexual ao amor e ao enriquecimento do convívio.

Além disto, se o prazer fosse pecaminoso (como afirmam alguns poucos), os humanos não viriam dotados dessa faculdade. Se, assim fosse, já que o homem só consegue ejacular (para fecundar) num clímax de prazer, esse prazer seria desnecessário às mulheres, que são capazes de fecundar com ou sem prazer. Há mulheres que tem dez ou doze filhos e nunca experimentaram uma única vez, o prazer sexual.

Então, se também a mulher nasce dotada de uma misteriosa capacidade e aptidão ao prazer, e que tais faculdades são desnecessárias para a procriação, constata-se uma abertura copiosa ao prazer, ordenado e no âmbito da relação amorosa estável, levando-a a unir-se ao marido, para que ambos vivenciem tudo o que o amor, em termos físicos, afetivos e psicológicos pode lhes proporcionar.

Há muitas questões, também quanto à prática do sexo fora daquela esfera considerada padrão, pênis/vagina. Hoje em dia toma vulto, entre muitos casais o “sexo total” (vaginal/oral/anal). A conduta dos orientadores situa-se, geralmente, na liberdade e no respeito. Algo pode ser feito ou rejeitado, observando-se a vontade dos dois, a liberdade em fazer ou deixar de fazer e – sobretudo – o respeito à pessoa humana. A maioria dos especialistas considera válidos os atos que dêem prazer a ambos e sirvam – em comum acordo – para estreitar os laços de amor e companheirismo do casal.

Há tempos, escutei o relato de uma senhora, pela boca da própria, cujos valores, oriundos de uma rígida criação estavam em conflito com as investidas pouco ortodoxas do marido. Ao que parece, o que o marido sugeria, em termos de atividade sexual não era nada demais, mas constrangida por um complexo de culpa que lhe fora inculcado no rigor da formação religiosa vetusta, ela tinha problemas de consciência, e decidiu aconselhar-se com um confessor.

Aí ocorre um grande perigo. Dependendo da linha, mais ou menos conservadora, o conselheiro poderia tê-la aconselhado de forma negativa, e o casamento de muitos anos, como um todo, estaria em xeque. Para o equilíbrio da sexualidade conjugal, é preciso descobrir aquilo que o consagrado moralista brasileiro A. Moser chama de “evangelho da sexualidade” (In: O Enigma da Esfinge: a Sexualidade. Ed. Vozes, 2001):

Daí resulta a necessidade de desvelar o “evangelho da

sexualidade”. Este evangelho, que nos faz penetrar no mistério

escondido desde a eternidade, e resgata a sexualidade

como “sacramento primordial da criação” e conjuga

harmoniosamente elementos que aparentemente se excluem:

a cruz e a ressurreição, o “eu” e o “tu”, o humano e o divino.

É lógico e mais que isto, é bio-lógico, que a sensação de prazer advindo do sexo tem outras ramificações, que às vezes passam despercebidas por quem não vive a sexualidade em sua vida. A verdade é que a sexualidade, com ou sem fins procriativos faz parte da essência psicológica do casal. Privá-los disso é colocar em perigo a continuidade da relação, a partir da quebra do interesse e da fidelidade, recíprocos.

A moral deve entrar no prazer. Mas também o prazer tem que

entrar na moral. A “absolutização” do prazer no sistema moral

leva ao erro da “desorbitação”: aí reside a vulnerabilidade dos

sistemas éticos fechados sobre o hedonismo. De outra parte,

a “negação” do prazer no universo moral conduz a

uma “mutilação” de um traço da realidade humana: aí reside

a “inumanidade” dos sistemas éticos que se fecham à realidade

do prazer. Todo sistema moral autêntico assinala um lugar

específico ao prazer e, consequentemente, exige certa dose de

hedonismo (IN: M. Vidal: Moral de Atitudes. Ed. Santuário,

1999).

Nos textos do moralista espanhol A. Hortelano vamos encontrar mais luzes para o nosso debate:

Uma sexualidade biológica, que não passa de biologia, tal como

estão programados os animais, é má sexualidade, que sequer

funcionará como sexualidade. No ser humano a sexualidade

biológica, que nele nasce automaticamente e sem lhe pedir

licença, deve tornar-se humana, expressando o amor

interpessoal do casal, dando-lhe consistência (Moral

alternativa; Ed. Paulus).

No próprio São Paulo, em algumas coisas bastante ortodoxo e radical, vamos encontrar uma abertura dinâmica sobre o assunto. Ele lembra que os esposos devem viver em plena comunhão, física e espiritual:

Para evitar a imoralidade, cada homem tenha a sua esposa e

cada mulher o seu marido. O marido deve cumprir o dever

conjugal para com a esposa, e a esposa faça o mesmo com o

marido. A esposa não é dona de seu próprio corpo, e sim o

marido. Do mesmo modo, o marido não é dono de seu corpo, e

sim a esposa. Não se recusem um ao outro, a não ser que

estejam de comum acordo e por algum tempo, para se

entregarem à oração; depois disto voltem a unir-se, a fim de

que Satanás não os tente por não poderem dominar-se

(1Cor 7, 2-7).

Com isso, o apóstolo nos mostra que o matrimônio é lugar por excelência, da vida, do amor, da unidade e da vida sexual, feita de dom e disponibilidade recíproca (cf. Ef 5, 4-33). É preciso que o casal descubra, através do amor e do entendimento, todos os caminhos que favoreçam sua união e sua satisfação. Essa busca de ajustamento não é coisa fácil, mas os frutos dessa conquista são os responsáveis por uma vida alegre, feliz e construtiva.

Desta forma, no término desta reflexão, entende-se que o sexo deve estar ligado à vida, sim. À transmissão da vida, pela procriação e ao cultivo da vida conjugal, feliz e generosa, pela prática de um sexo amoroso, recíproco e capaz de unir o casal, cada vez mais.

A felicidade é parte integrante da vida. Uma sexualidade organizada, afetiva e encarada como instrumento de união, faz parte da vida do casal, mesmo quando o aspecto procriativo não esteja em questão. Precisamos encarar a sexualidade como uma riqueza e não como uma ameaça ou um pecado gerador de culpa. Deus não dotaria o ser humano de uma bênção que servisse para seu tropeço.

Resumo de um retiro que o autor ministrou a um grupo de casais, em Porto Alegre em maio de 2009. O autor é Doutor em Teologia Moral, conferencista e pregador de retiros de espiritualidade. Autor, entre outros, do livro “A casa sobre a rocha”, Ed. Vozes, 1999, sobre a temática familiar.