Os quatro cavaleiros do Apocalipse (SERMO LIV)

OS QUATRO CAVALEIROS DO APOCALIPSE

Para que se compreenda o núcleo ideológico onde o livro do Apocalipse foi gerado, é salutar que se compreenda tratar-se de uma leitura que era realizada nas comunidades primitivas da Igreja. Nesse aspecto é prudente saber que sua mensagem, por pastoral e escatológica, é urgente. Os primeiros quatro selos que são abertos pelo Cordeiro apontam para a história da humanidade daquele tempo dominada pelo mal (o pecado e a opressão do império romano). Ali estão inclusos, através da simbologia dos quatro cavaleiros e seus cavalos, os fatores do terror da época, como guerra, competição, fome e morte.

As calamidades

Os “Quatro cavaleiros do Apocalipse” aparecem no capítulo 6 do Livro da Revelação e revelam os diferentes estágios de calamidades que irão assolar a mundo, antes do julgamento. Na verdade, os cavaleiros aparecem, pela ordem, o branco, o verde (em algumas traduções protestantes falam em amarelo, mas o certo é verde, pois o termo original, no grego é xlorós, o negro e o vermelho. O cavalo cor de cloro (verde ou esverdeado) e seu cavaleiro correspondente, surgem após o quarto selo (6, 7-8), aberto pelo Cordeiro.

Os chamados “Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, que intrigam tanta gente (o tema já inspirou até uma obra de Hollywood), correspondem à primeira visão escatológica de Zacarias (1,8). Eles vêm montados cada um em um cavalo de cor diferente. São flagelos infligidos à humanidade, ligados à abertura dos sete selos (6, 1-8), que prefiguram o final dos tempos.

O cavaleiro branco

O cavalo branco é um sinal de vitória. O branco, na Antigüidade, tinha esse significado. Os vencedores romanos vinham montados em cavalos brancos. Aqui se trata do mal vencendo o bem, refletido na perseguição, na fome e na perda da fé. O cavalo vermelho – do mesmo segmento – do qual falaremos mais adiante, representa o sangue derramado nas guerras. Cavalo e cavaleiro brancos, ligados à abertura do primeiro selo, evidenciam, pela cor, o cavalo de um vencedor.

Aqui o vidente João não entra no mérito a respeito dessa vitória; limita-se a dizer que ele vem para vencer. O arco tem um sentido, primeiramente, de distância. A vitória do cavaleiro atingirá lugares muito distantes. O arco também era a arma característica dos bárbaros, especialmente dos exércitos assírios e babilônicos, portanto, inimigos. A coroa é símbolo da autoridade.

A figura bélica evocada pelo primeiro cavaleiro, dentro do contexto dos demais, nos remete à conclusão de algo mau, ameaçador, como guerras e morte (cf. Zc 1, 8-10; 6, 1-3). A aparente vitória do mal, em nosso tempo, nos faz crer na missão maléfica do cavaleiro branco. Ainda que parcial e temporalmente limitada, sua vitória é terrível.

Modernamente (fins do século XIX), alguns segmentos da exegese alemã, numa interpretação atenuada, passaram a ver no cavalo branco a figura de Cristo. No arco, vemos o Evangelho anunciado a todos (Mt 28,19) até os confins da terra (At 1, 8), e na coroa, a realeza de Jesus, Rei dos reis (Ap 19, 16). É mais "acomodação" que hermenêutica.

No entanto, inserido no contexto maléfico dos demais cavaleiros, resta-nos interpretar sua figura como relativa à vitória, ainda que rápida, do mal. O cavaleiro que indica a vitória de Cristo e sua Igreja, está dissociado deste trecho de pragas, aparecendo em 19, 11, na celebração da vitória: “... o cavaleiro se chama Fiel e Verdadeiro. Ele julga e combate com justiça”. Esse cavaleiro, com poder universal e ciência divina, não é mais uma entidade do mal, mas o próprio Cristo vencedor. A espada em sua mão é o Evangelho que julga a conduta de todos.

O cavaleiro verde

O cavalo verde (ou esverdeado) e seu cavaleiro correspondente, como já vimos, surgem após o quarto selo (6, 7-8), aberto pelo Cordeiro. Se de um lado a simbologia do cavaleiro negro é a opressão econômica, no terreno da carência dos alimentos e da fome, o verde significa diretamente a morte. O verde, ou esverdeado, é aqui empregado para indicar a cor exangue dos cadáveres. O próprio autor sagrado define esse cavaleiro como a Morte e o Hades (a região dos mortos).

Foi-lhe dado um grande poder destrutivo, com autoridade sobre um quarto da terra, para matar pela espada, pela fome, pela peste e com as feras. Essa tétrica narrativa revela, segundo a maioria dos exegetas, desastres que aconteceram ou vão acontecer na história humana. O quarto selo, que aqui personifica a morte, pode estar perfilado à idéia judaica do “Anjo da morte” ou a Plutão, o deus grego das regiões inferiores e da morte.

Alguns segmentos da hermenêutica vêem aqui a pessoa de Satanás, já que o conjunto cavalo/cavaleiro é, ao mesmo tempo, Morte e Hades (região dos mortos). Outros concebem aqui a idéia da praga, por ser este um simbolismo usual na Antigüidade. A idéia do flagelo (guerra, fome e peste) é como que uma repetição do apocalipse de Ezequiel (cf. Ez 14, 21). Se o primeiro cavaleiro, o branco, é o anticristo que vem vencer; o segundo, o vermelho, é a guerra; o terceiro, o negro, é a fome; o quarto, objeto deste tópico, o verde, é a morte decorrente da ação demoníaca dos três anteriores.

Muitos especialistas das ciências bíblicas acham que o assalto dos “quatro cavaleiros” refere-se a fatos históricos anteriores, como a destruição de Jerusalém e as perseguições romanas. Há, no entanto, quem veja nessa devastação, coisas que vão acontecer. E se a gente for olhar hoje, basta ler os jornais, será que não encontra muitas coisas semelhantes? E as mortes nas guerras, as chacinas, a fome, as doenças, a Aids, os atentados terroristas, a poluição e os desmatamentos? Não há um fundo maléfico por detrás delas? Que sinal Deus nos revela com esses fatos diários, bem à nossa frente?

A verdade é que as visões constantes do último livro da Bíblia não apontam para fatos de futuro remoto, mas eventos que já estavam acontecendo naquele tempo, como perseguições, mortes, guerras e fome. O Apocalipse não é um livro de futurologia, mas de narrativas, em linguagem reservada, de fatos atuais ao tempo em que foram escritos. Não se deve buscar no futuro as imagens daquela profecia, mas na época em que estava ocorrendo. O vidente usou uma linguagem como que esotérica, reservada aos que entendiam os fatos ocorrentes.

O cavaleiro negro

E as ameaças não param por aí. “O cavaleiro negro”, que vem montado num corcel preto, trazendo na mão uma balança, e que a exegese moderna vê como o poder econômico, o neoliberalismo, globalização, as reservas de mercado, os monopólios, etc. nos passa uma idéia de carência e de exclusão socioeconômica.

Uma pesquisa nessa área não é muito fácil, visto não haver bibliografias mais ou menos padrão, e cada teólogo, cada exegeta que se aventura a escrever sobre a Revelação, tem opiniões diversas e, muitas vezes até contraditórias. No capítulo 6, a visão dos “quatro cavaleiros”, é muito controvertida.

Cada um tem um significado e um ensinamento. Refletimos aqui sobre o “cavaleiro negro”, que não é um sinal do bem, mas da injustiça e do mal. Ele vem montado num cavalo preto, com uma balança na mão, e o texto diz que, por sua ação, o preço do trigo sobe, enquanto o do vinho e do azeite fica estável e até diminui.

A balança, segundo a hermenêutica moderna, representa uma grande crise que aponta para a ambição do poder econômico e da justiça manipulada. Os elementos trigo, vinho e azeite são mais ou menos indicadores de classes econômicas e sociais do tempo em que João, o vidente de Patmos escreveu o livro.

O trigo, ligado ao pão, alimento padrão dos povos antigos, caracterizava a alimentação de todos, especialmente dos mais pobres. O azeite e o vinho, muitas vezes importados da Pérsia e das regiões de cultura grega, já eram símbolos dos mesas mais abastadas e das pessoas de um melhor poder aquisitivo. Mais precisamente: dos ricos.

Nesse particular, o Apocalipse informa que a chegada do “cavaleiro negro” traz uma crise econômica sem precedentes, onde o preço do trigo (alimento do povo) sobe muito, enquanto o do vinho e do azeite (consumo dos ricos) fica estável e até baixa. Nessa perspectiva, só os ricos gozam... Não parece uma profecia para os dias de hoje?

Não que o preço das utilidades para os pobres seja diferente das ofertadas aos ricos. A diferença, hoje, não está no preço dos bens, mas nas benesses e retribuição do trabalho, o salário. É uma questão que aponta para a injustiça do chamado “poder aquisitivo” a partir da má distribuição da renda. Enquanto as elites ganham muito, alguns até demais, desproporcional a seu pouco rendimento, as classes mais pobres, trabalham muito, mais que aqueles, e ganham uma miséria: quase nada.

Para esses, o preço do pão sobe, enquanto para os outros, pelo aumento dos ganhos, o preço do azeite e do vinho (leia-se uísque, caviar, carros importados, viagens internacionais, mansões de luxo e depósitos no exterior) baixa cada vez mais. É a questão do “poder aquisitivo”. Aos pobres sempre coube, historicamente, a parte mais podre da laranja. Chamados a amparar o sistema, eles sempre ficam fora das benesses. Desde a Antiguidade, o esforço é coletivo mas a distribuição do lucro é privativa, sempre a favor dos donos das riquezas.

O “Cavaleiro Negro”, como fica claro é, nada mais nada menos que o capitalismo exacerbado, o neoliberalismo e a globalização. A pax romana, semelhante às práticas liberais modernas, significava bem-estar para os seus e miséria para os demais. No texto, a voz forte, vinda do trono do céu, anuncia um julgamento e a ruína desse cavaleiro. É uma profecia sobre a derrocada da injustiça e da discriminação.

O cavaleiro vermelho

O último dos “quatro cavaleiros” é o vermelho. Como vimos anteriormente, o branco representa a vitória, ainda que efêmera, do mal. O cavaleiro negro é aquele que traz a fome, e o verde é responsável pela praga da peste e, por conseqüência, a morte. Pois o vermelho, que vem junto com a abertura do segundo selo (Ap 6, 3s), também tem uma ponderável ligação com a morte. E morte violenta!

O vermelho é a cor do sangue, da violência e da guerra. Representa também Roma, pois era a cor do manto dos seus soldados. A pax romana, junto com a iréne grega, como a globalização moderna, trazia o bem-estar para os cidadãos de Roma e miséria para as classes pobres e também para todos os povos subjugados.

A missão de tirar a paz da terra é a conseqüência das guerras. No confronto da verdade desmascarando o mal, o próprio Cristo vem, através da exigência de uma definição de conduta, tirar a paz da terra (cf. Mc 13, 7s). A grande espada, na mão do cavaleiro vermelho retrata o alcance das guerras e o grande número de morte que elas semeiam (cf. Ez 21, 14ss). As grandes guerras são hoje chamadas de “mundiais”, tamanho o envolvimento das nações que delas participam, bem como a destruição que ocasionam.

O vermelho, cor com que a tipologia bíblica refere-se ao pecado, lembra a luxúria (era esta a cor dos vestidos das prostitutas do Egito, de Roma e da Babilônia), e modernamente o sangue derramado, o terrorismo, as chacinas e o aborto. A figura da “grande prostituta” refere-se historicamente à antiga Caldéia, sede de opressão e pecado, responsável por uma página negra da história de Israel. Refere-se também à Roma opressora, no tempo em que aconteceram as visões de João.

A prostituta vestida de vermelho, no colo da Besta, é símbolo de uma cultura imoral e idolátrica, do passado e do presente. Sempre houve essa relação do Maligno com as mais diversas formas de prostituição, sejam elas sexuais, políticas, ou econômicas. Na época, Roma era a capital da idolatria (adoração ao imperador e aos deuses pagãos) e do vício moral. Babilônia (Babylón), antes de caracterizar uma cidade, refere-se à terra de Babel (cf. Is 14, 4-223; Jr 51, 63), lugar de pecado e desobediência à lei de Deus. Babel que dizer desordem, confusão. A Besta de cor escarlate (Ap 17, 3) é a mesma Besta do mar (cap. 13), cuja existência aponta para os poderes demoníacos.

A exemplo das cortesãs daquele tempo, a mulher lembrada na Bíblia usava vermelho, caracterizando o sangue, a luxúria e o poder. Por que poder? Porque a bandeira romana, com as letras SPQR era vermelha. As jóias e o cálice lembram as festas pagãs, orgias e bebedeiras. O cálice é também uma paródia infernal à paixão de Cristo.

Atualizando suas figuras, os cavaleiros do Apocalipse representam os males que assolam a humanidade por todos os tempos. A personalização do mal é uma constante no confronto com o Cristo vencedor e seu povo fiel. O cristão deve estar atento às investidas do mal, preconizadas pelo inimigo.

Resumo do curso sobre Apocalipse ministrado na Paróquia Santo Antônio, Canoas (RS) em 2000, composto de 22 aulas (uma para cada capítulo).

Galvão é escritor, autor de uma centena de livros de teologia, espiritualidade e estudos bíblicos, entre os quais “O Apocalipse ao alcance de todos” (Ed. Recado, 2001).

Para adquirir o trabalho, conferências ou cursos, e-mail: kerygma.ag@terra.com.br ou oxx51-3472-2973 ; 9813-9191

O autor é biblista com especialização em exegese, Doutor em Teologia Moral, pregador de retiros espirituais (padres, leigos, religiosos, casais e jovens) e conferencista internacional.