Por que os recasados nao podem receber a Eucaristia? (SERMO XCIII)

POR QUE OS RECASADOS

NÃO PODEM RECEBER A EUCARISTIA?

Este tema, por esbarrar em muitos radicalismos e puritanismos talvez seja o mais polêmico, complexo, delicado e que esteja a exigir de todos um maior senso de discernimento pastoral. É o grande desafio da Teologia Moral. O Sínodo dos bispos, em 1980, há quase vinte e cinco anos atrás, considerando as mudanças na situação sociocultural e os avanços da exegese bíblica desde os tempos de Alexandre III († 1181), peticionou a João Paulo II, empossado no trono de São Pedro dois anos antes, que cuidasse para que a Igreja, na pastoral dos divorciados, estivesse aberta ao diálogo e ao aprendizado, levando em conta a longa tradição da Igreja Ortodoxa (eslava e grega).

Para os Padres Sinodais, o pedido tratava especificamente da admissão dos divorciados à Eucaristia, de acordo com um pensamento mais diferenciado. A resposta do papa, a este e outros pleitos, de teólogos, psicoterapeutas, bispos e pastores, foi uma ducha de água fria: “sem exceção!”. Os postulantes, aturdidos por esta lacônica negativa, advertiram que, com isso, o segundo casamento, a união de fato, e até de direito (que não deixaria de existir por causa do rigor papal) estariam igualmente condenados ao fracasso. É claro que a idéia dos postulantes, assim como dos mais modernos segmentos de Teólogos moralistas, não é abrir o casamento, nem liberalizar o troca-troca. O que foi pedido é que, dentro de um espírito eminentemente pastoral, se aplicasse, como em outros casos, a epiquéia.

As Igrejas ortodoxas e reformadas desenvolveram com bom senso e sem maiores traumas, essa versão pastoral. Deve-se fazer tudo para manter o casamento, mas sabemos que muitas vezes esse fazer tudo não é insuficiente. E aí, o que fazer? Duas pessoas vão coabitar a mesma casa, em permanente estado de beligerância, nociva a eles, aos filhos e familiares, apenas para se manter fiéis ao “até que a morte nos separe”? Não seria racional. Vejamos o que diz um B. Haering, dos maiores moralistas (especialista em Teologia Moral de nosso tempo:

Como sacramento, o matrimônio morto não obsta

absolutamente à realização de um novo casamento,

justamente porque a essência da sacramentalidade está

na “união de vida e de amor” (In: Livres e fiéis em Cristo).

Na prática, muitas pessoas, por se sentirem pastoralmente abandonadas, trocam de religião, mentem sobre sua situação de recasados ou traumatizam-se pela impossibilidade de uma aproximação da Eucaristia. Alguns até comungam, alimentando um pesado complexo de culpa, enquanto outros, absolvidos por suas consciências, crentes de que não contribuíram para a ruína de seus casamentos, comungam normalmente. Nesses casos, a exceção dita normas à regra.

Em ocasiões dessa natureza, o discurso da Igreja – perdoem – não é eficaz nem pastoral. Em geral surge uma gama de conselhos: vá à missa, leia a Bíblia, faça caridade, mas não comungue! É como levar o garoto à confeitaria e impedi-lo de comer os quindins que acenam desde a bandeja. Nesses “encontros eclesiais”, que existem por aí, casais desse tipo ficam alijados porque “não podem comungar”. Será que Jesus seria tão rigoroso assim?

Uma vez, eu dava um curso de teologia em uma paróquia em Porto Alegre. Era um conjunto de aulas noturnas, durante uma semana. Nos intervalos, além do café, se desfrutava o convívio e a companhia das pessoas. Numa noite, um rapaz, de seus trinta anos, aproximou-se de mim, revelando que tinha um problema grave. Ele fora casado por quatro anos, e a esposa sumariamente saiu de casa, foi para outro estado e deu por finda a relação. Legalmente ele conseguiu o divórcio, por abandono de lar. Tempos depois conheceu uma jovem, apaixonaram-se e planejaram o casamento. Ele freqüentava a Igreja, fazia parte de um movimento leigo e mantinha uma vida de fachada. Digo de fachada, pois conforme ele confidenciou, freqüentemente precisava desfrutar dos “carinhos” de alguma prostituta. Antes do fim-de-semana procurava o perdão de Deus e domingo comungava normalmente.

Esse tipo de vida – segundo o rapaz – o incomodava. Ele precisava de uma esposa, amiga, companheira, amante, e não andar do jeito que andava. Conheceu a moça, namoraram e marcaram o casório. Ele foi advertido pelos “notáveis” de sua comunidade, que se assim agisse, seria excluído do movimento de catecumenato, e que os “ministros” lhe negariam a Eucaristia. Ao mesmo tempo, pessoas de seu grupo, começaram a desenvolver, com ele, um trabalho pastoral, no sentido de “reforçar” seu lado espiritual, para que ele, além de não casar, vivesse de forma casta e celibatária. Será que Jesus seria tão rigoroso assim?

No presente caso, o jovem estava desesperado. De um lado, sua fé, seu contato com as atividades de Igreja, especialmente a Eucaristia, dava-lhe um apoio considerável à sua vida. De outro, sua natureza, de homem de trinta anos, cuja opção de vida não foi pelo celibato, fazia o contraponto, tornando a questão de difícil solução. Sabem como terminou a história? Ele se casou no civil e trocou de religião, onde numa dessas seitas pentecostais foi acolhido, sem reprimendas.

O matrimônio cristão assemelha-se ao amor de Cristo por sua Igreja, e assim deve ser, permanente, durar para sempre. Eu disse deve ser, para usar uma expressão idealista, porque na verdade nem sempre é. Primeiro porque não é cem por cento válida a comparação do amor de Cristo (divino) com o amor dos esposos (humano). Depois, porque vários fatores interferem tornando a relação insuportável. Vão se aturar em nome de uma fé que muitos nem conhecem direito? Ou vão ficar condenados (especialmente o cônjuge inocente, abandonado) a um celibato forçado, contrário à sua natureza? A esse respeito, e sobre o “sem exceção” do papa, é interessante a palavra de B. Haering:

Raramente na história, a virtude da epiquéia (interpretação de

uma lei segundo o seu sentido e não segundo o seu teor) teve

tão ruim relevo nestas questões como quando da posição

tomada pelo papa João Paulo II. Aparentemente, ele não a

reconhece (a epiquéia) como virtude, apenas a teme como

evasiva (In: Minha esperança para a Igreja).

Diante da questão que titula este item, “por que os recasados não podem receber a Eucaristia?”, a resposta legal, formal é relativamente simples: não podem porque o matrimônio é indissolúvel. Quem, sendo casado e casar com outra pessoa, comete adultério, e assim passa a viver em pecado. Como se trata de um pecado continuado, ele não pressupõe arrependimento, e por isso, as pessoas nessa situação não podem receber o Cristo eucarístico. Na visão bíblica, alguns textos surgem para aparentemente fortalecer essa proibição:

1. Portanto, o que Deus uniu, não se deve separar (Mt 19, 6)

Trata-se aqui do maior argumento a respeito da indissolubilidade do sacramento do matrimônio. De fato, o casamento entre um homem e uma mulher deve ser planejado a fim de durar para sempre, eterno como é o amor. A realidade, no entanto, nos questiona: certos amores , bem como certas vocações, que se vê por aí, são eternos? Ora, se o amor é a essência, se não há/houve amor, não aconteceu casamento.

Ora, a “matéria” sacramental do matrimônio é o amor. Se ficar constatado que não houve amor, Deus não uniu nada, o casamento não ocorreu de direito, houve um “erro de pessoa” e por isso, o ato jurídico (e seus efeitos) é nulo de pleno direito. Os tribunais eclesiásticos têm declarado nulidade matrimonial em muitos desses processos. De outro lado, observa-se que atualmente, os casamentos, em geral duram menos e estão expostos a muitos perigos.

Na maior parte dos países, aproximadamente um terço dos

casamentos fracassa irremediavelmente. E o divorciado

solitário fica, com demasiada freqüência, exposto a graves

problemas psicológicos e morais (In: B. HAERING, Livres e

Fiéis... op. cit.).

Esse um terço levantado por Haering, em 1996, quando foi escrito o livro (ele morreu em 1998), não careceria hoje, seis anos mais tarde, de um retoque? Em uma situação de separação sofrem todos. No entanto, esse sofrimento pode ser definido através de alguma gradação. Alguém, em geral, parte atrás de uma aventura, sonho ou busca de felicidade ao lado de outra pessoa. Conhecemos centenas de casos assim. Nesse caudal de paixões, fica o outro(a), sozinho, sob a vergonha do abandono, com filhos, quem sabe, para cuidar e nutrir. Se em nome de uma moral demasiadamente rígida, não estaríamos punindo esta pessoa duas vezes (com o abandono e com a intransigência), ao impedirmos que ela reconstrua sua vida? Será lícito condenar uma pessoa jovem ao celibato, só porque a outra(o) foi embora?

A pessoa jovem que casou uma vez, dificilmente pode adaptar-se ao celibato. Em último caso, vai dedicar-se, em nome de uma moral discutível, à masturbação, cuja essência hoje é controvertida. Casar de novo, diz a regra, ela não pode. Mas, se tiver casos pode confessar na sexta e comungar no domingo? Isso é hipocrisia, de quem age assim e de quem empurra a pessoa para essa evasiva. Jesus seria tão rigoroso assim?

2. Por isso, todo aquele que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor. Portanto, cada um examine a si mesmo antes de comer deste pão e beber deste cálice, pois aquele que come e bebe sem discernir o Corpo, come e bebe a sua própria condenação (1Cor 11, 27ss.).

Algumas pessoas da Igreja, pródigas em dizer o que é certo e o que é errado, aqueles que se arvoram em dizer que conhecem a vontade de Deus, têm sua hermenêutica pessoal a respeito do advérbio indignamente. Na verdade, por nossa condição de pecadores, pessoas frágeis, de extrema vulnerabilidade, é difícil vivermos efetivamente, de uma forma totalmente digna perante o Digno. O ser humano se move e se orienta para fins e metas, pelos valores ou bens que sua intenção percebe nos objetos, de acordo com as circunstâncias, e avaliando as conseqüências. Uma vez escutei um bispo, en petit comité, questionar: “Meu Deus, será que toda essa gente que se acotovela na fila da Eucaristia, está preparada e recebe o sacramento dignamente?”.

Nesse enfoque, surge-nos a questão filosófica: o que significa a expressão dignamente? Somos dignos, diante de Deus, ou relativamente dignos? Muitas vezes, os “santos” contemporâneos se acham dignos porque não matam, não roubam e não têm casos fora do casamento. Será que só isso justifica a pessoa, a ponto de torná-la digna diante de Deus? Será que o amasiado é menos digno que o maçom? Ou será que a injustiça daquele que casou só no civil é maior que a do sonegador, ou do patrão que explora? Será que por viver um segundo casamento, a pessoa não tem o discernimento de enxergar sob as espécies do pão e vinho o corpo e sangue do Senhor?

Eu fico horrorizado quando escuto, durante a Missa, na hora da Eucaristia, algum comentarista recomendar: “Agora, os que estiverem preparados podem se aproximar...”. Ora, considerando a incoerência do nosso ser-humano, preparado, de fato, naquele momento, ninguém está. Eu disse: ninguém!

Em seus primeiros tempos, a Igreja teve uma posição mais pastoral e menos legislativa. É só a partir de Alexandre III (séc. XII) que surge uma linha mais dura no trato dos separados que voltaram a se unir com outra pessoa. A partir daí ficam excluídos dos sacramentos.

Nessa conformidade, surge uma questão pastoral mal respondida pela maioria dos pastoralistas. Sabe-se que todos os sacramentos (exceto, claro, o da Reconciliação) devem ser recebidos em “estado de graça”. Assim, será que um “amasiado” não pode receber o batismo, a crisma nem a unção dos enfermos?

A razão moral nos atos humanos – vimos isto nos capítulos pretéritos – é eminentemente teleológica, isto é, está sempre de frente para o telos, o objetivo da vida de cada um, que é ser feliz. Na deontologia, o homem atua na obediência da lei, mas olhando o objeto da ação. Dentro dessa premissa suficiente, Deus cria o ser humano para ser feliz. Será que o Criador fica satisfeito ao vê-lo preso a uma situação constrangedora, humilhante, sufocante, que pode colocar, inclusive, a salvação em jogo? Certos casamentos configuram esse risco.

O bem objetivo que deve ser feito é o bem real, concreto e

novo de cada situação e momento irrepetível. Sua

complexidade e originalidade exigem uma ação determinada,

que constitui o bem concreto e próprio (B. BENNÀSSAR, Ética

civil e moral cristã em diálogo, Ed. Paulinas, 2002).

É certo que não se pode profanar a pessoa de Cristo, tornando-o comunhão com pecadores solertes ou ímpios recalcitrantes. O Teólogo, por múnus e função, não pode postular esse tipo de liberalidade. Isto seria um abuso e um sacrilégio, como que “jogar pérola aos porcos”(cf. Mt 7, 6). No entanto, a visão pastoral nos leva a pensar, ou re-pensar, tomando por base a misericórdia divina, que nem tudo pode acontecer ao sabor da frieza das letras da lei, muitas vezes sujeita a hermenêuticas temporais. Jesus é menos legalista do que nós. Contudo, é um desafio que o esforço pastoral lança à Teologia Moral.

Há ainda um outro aspecto que precisa ser abordado. Se um genocida qualquer, um Pablo Escobar, traficante, ou um algum general Pinochet que mandou torturar e matar milhares de pessoas, se confessar, pode receber a Eucaristia. Agora, se um casal que vive honestamente, só porque suas relações anteriores fracassaram, esses ficam excluídos pela vida afora? Não há aí uma ponderável dose de incoerência e até de hipocrisia?

Some-se a isto a permissividade social que existe hoje em dia, em que os jovens não casam para viverem juntos para sempre, mas “enquanto der”. Já casam (isso quando casam) de olho na porta-aberta da separação. Historicamente, e devido ao despreparo gertal, muitos se casam sem saber o que estão fazendo.

Biblista e Doutor em Teologia Moral. Escritor, autor de mais de cem livros, entre eles “Teologia Moral Trocada em Miúdos” e “Temas Polêmicos na Teologia Moral”, ambos pela Editora O Recado, São Paulo.