Aula de democracia?

Wilson Correia

Quando ‘democratas’ invadem a opinião pública passando descompostura em estudantes que usam a ocupação de prédios públicos em meio às próprias lutas, asseverando que tais ‘invasores’ deveriam ‘ter aula de democracia’, ponho-me a pensar no assunto.

Na ‘República’ do aristocrata Platão a democracia figura como forma de governo baseada na desordem, devassidão, inconseqüência, imoralidade e luta entre partidários disso e daquilo. Na ‘Política’, de Aristóteles, a democracia equipara-se ao desgoverno por fragmentar o poder.

Rousseau, em ‘Do contrato social: ensaio sobre a origem das línguas’, preconiza a democracia como o governo que supera a arbitrariedade individual pela participação direta do povo no poder, o que se torna fulcro da igualdade, da vontade geral e da soberania política.

Daí em diante, vários pensadores (Norberto Bobbio, por exemplo) mostram que a democracia pode ser desqualificada pela tecnocracia (ritual mecânico do processo eleitoral) e pela indiferença do ‘qualunquismo’ (o ‘tanto faz’ do ‘qualquer a ser eleito’).

Ainda que pese a fragilidade da democracia, faz-se necessário compreender que ela é diferente do despotismo, sempre imperativo, estático e igual a si mesmo, por caracterizar-se pela dinamicidade e pluralidade. Democracia é contínua ‘trans-formação’.

Nesse sentido, democracia é a forma de exercício de poder que, em lugar de sufocar, asfixiar, aniquilar ou extinguir direitos, oferece condições concretas para que direitos sejam criados, em uma relação virtuosa pela qual a criação de direitos funciona como limitação do poder.

Óbvio que isso implica o entendimento de que individualidade e coletividade não se colocam no plano político com base na verticalidade, mas, sim, de modo a privilegiar a horizontalidade nas relações e processos que envolvem valorações e decisões afetas ao exercício do poder.

Trata-se da relação dialógica. Pelo diálogo, um fala e é falado. Ouve e é ouvido. O outro, idem. É a alteridade possível que reconhece a legitimidade recíproca para evocar razões, vocalizar entendimentos e formular proposições o mais razoavelmente possível.

Nessa perspectiva, contrariamente ao entendimento liberal que afirma a ideia de que ‘a liberdade de um vai até onde começa a do outro’, os direitos, deveres e liberdade de um vão até onde vão os direitos, deveres e liberdade alheios, frutos da mutualidade política.

No entanto, amiúde, assistimos ao atropelamento desse processo, concretizado quando, em uma universidade, por exemplo, o sujeito que não foi o mais votado é nomeado reitor, em que a canetada substitui a vontade dos eleitores (justo aquele que cultua valores ditatoriais).

Curioso é ver essa gente sugerir ‘aula de democracia’ aos outros quando o próprio quintal está infestado de tirania. Nesse tipo de cabeça eu identifico o ‘L'État c'est moi' (o Estado sou eu) de Luís XIV. Ora, faz sentido essa gente pedir alguma ‘aula de democracia’?