ENCANTAMENTO
O professor da USP, Clovis de Barros Filho, na sua excelente entrevista ao Jô Soares no mês passado, me surge falando em ineditismo da vida e pamonhas. Você, meu leitor, já deve estar se perguntando o que tem a ver alhos com bugalhos, sobretudo se não teve a oportunidade de se deliciar com a entrevista deste respeitável mestre de ética e filosofia, mas explico-me.
Não posso me estender demais sobre a entrevista de mais de meia hora, pois o texto se tornaria longo demais para um espaço que, nas circunstâncias, é exíguo. Todavia, sintetizo esclarecendo que, depois da excelente preleção versando sobre Sartre e vários outros pensadores do nosso tempo, Clovis de Barros passou a uma ilustração cotidiana útil da razão pela qual devemos nos encantar com a extraordinária potencialidade do ineditismo de nossa vida, em todos os momentos, exemplificando com o caso de uma pamonha que, se num momento em que estamos azuis de fome nos fascina, diante da oportunidade de devorá-la, num segundo momento, com a fome já meio saciada, porém a tal pamonha não nos encantará mais como acontecera minutos antes. Porque a vida é fluxo, é processo! E o que nos encanta em determinado instante haverá de, talvez, não nos encantar num segundo. Assim como - ele arremata - pode acontecer, noutra ocasião, com o matrimônio. Para os apreciadores de pamonha, mal comparando, o período da lua-de-mel é uma senhora pamonha! Cinco ou seis anos depois - e, grifo meu, por mais se goste de pamonha! - uma tal afinidade por pamonha já passou pelas transformações naturais do dia-a-dia, e o que teremos, então, será, digamos, e nas palavras do professor, um "curauzinho"!
Fácil de entender - e a menção, à primeira vista pueril e algo hilária, suscita que estendamos sua aplicação para uma extensão enorme de fatos do nosso cotidiano!
Vida é movimento contínuo, dentro e fora de nós. É modificação ininterrupta das horas! E isto constituí toda a maravilha do ineditismo gratuito que a existência nos confere, para que nos permitamos, na condição humana exclusiva, a criação de momentos felizes, em simultaneidade com o que de novo vem espontaneamente ao nosso encontro, de forma que devemos entender o que este excelente pensador quis dizer! Não quis, deste modo, comparar de modo algum um relacionamento afetivo, muito mais complexo e ricos das nuances, e das potencialidades contextuais dos históricos afetivos e espirituais envolvidos, a uma mera pamonha! Quis, sim, significar que, dentro de cada contexto que elegemos para a construção de uma vida feliz, há que se colocar em patamar privilegiado a fidelidade à validade autêntica das situações! No caso de quaisquer relacionamentos, portanto, deve-se ter em consideração a soberania absoluta do livre arbítrio e da integridade de cada ser envolvido; ou, em caso contrário, o que se evidenciará será ausência de vida real, de autenticidade; e, por conseguinte, daquela felicidade tão ambicionada!
Na arte da convivência e de se viver, portanto, deveremos estar cuidadosos do nosso modo de agir, observando não somente nossos desejos egoísticos, mas também as realidades de quem nos cerca, na intenção de se evitar mágoas e ressentimentos? Certamente. Mas, como em tudo, toda situação vivenciada deverá encerrar validade, utilidade construtiva, em si! Ou ficaremos atolados em prevenções e pressões externas, sem realizar, no fim das contas, nada de proveito e prazeroso, nem para nós mesmos, e nem mesmo para quem nos cerca!
Assim, deve existir o encantamento por cada escolha que elegemos no nosso percurso existencial! Amo, por exemplo, a publicação de cada um de meus livros! Confesso que me arrepio de prazer, ao vê-los ali, de capa e conteúdo tratados com carinho e inspiração, bem produzidos - sobretudo, quando caem nas mãos de leitores que me retornam com seus comentários e impressões sobre o conteúdo! A partir disso, então, afirmo, cheia deste tal encantamento, que sou escritora! Mais - psicógrafa, em parceria de criação com os autores interdimensionais que me cercam! Assim, o ineditismo único da vida se faz presente em cada livro, cada qual um filho - único e inimitável! Assim como o ineditismo se fez presente há algum tempo atrás, quando menos esperava, arrastando-me para o mundo da música no qual hoje aprendo violino clássico - e, novamente, com o mesmo encantamento, deliciada, afirmo que dei continuidade à minha faceta artística musical, executada em fases anteriores da minha vida!
O resumo de tudo é que devemos acordar! Até que ponto não estamos renovando os nossos dias, em função de condicionamentos inúteis, apegos contraproducentes? No caso da pamonha, podemos mesmo, com o passar do tempo, desgostar de pamonhas; e então, ainda que esvaídos de fome, elas não mais nos satisfarão! Afinal, em quantos detalhes já não teremos nos modificado? Mudanças de opinião, de gostos, de percepção da vida! Trata-se de um direito inalienável! E ninguém pode nos cercear a abertura dos nossos portais interiores a este ineditismo fabuloso da Vida, que, generosamente, nos impulsiona no rumo evolutivo do progresso, da felicidade! Amanhã ou depois, posso estar encantada com novo aspecto desta renovação diária incessante. Talvez não mais publique livros - a fase pode passar! Talvez, venha a fazer parte de um quarteto de cordas! Com a consciência definitiva de que encantamento nenhum resiste a uma tumba mental ou emocional. Nisso, inclusas nossas mais diminutas opções, e sobretudo, o amor! Pois amor de nenhuma espécie, amigos, sobrevive confinado ao féretro de um único ser!